O apagão educacional brasileiro
Observatório do Capitalismo Contemporâneo
Junho de 2021
Faz um ano que o pastor presbiteriano Milton Ribeiro assumiu o Ministério da Educação. É difícil de acreditar, mas sua gestão não deixa nada a desejar à de seu antecessor, o olavista Abraham Weintraub: corte orçamentário, vacinação atrasada dos educadores, falta de infraestrutura e segurança para a volta às aulas, militarização das escolas e homeschooling. Esse será o seu legado. Enquanto isso, o capital financeiro agradece e segue avançando a passos largos com novas fusões e aquisições.
O pastor e o capitão
Enquanto milhões de estudantes e professores sofrem as consequências de uma crise educacional sem precedentes, o governo segue contribuindo para piorar o que já está ruim. Preocupados com os cortes orçamentários na educação, que está com R$ 2,7 bilhões contingenciados, dirigentes de instituições federais recorreram diretamente ao Ministério da Economia e à Casa Civil para tentar a liberação de recursos. Outro sinal do descaso é que o Plano Nacional de Educação foi completamente abandonado e é provável que menos de 15% das metas do Plano para 2024 sejam atingidas. Mas disso não se fala. Afinal, o governo só tem olhos para a militarização das escolas e para o ensino domiciliar. A previsão é que até o final deste ano sejam implementadas 74 escolas cívico-militares no país, e em 2023 a previsão é que sejam 200 unidades.
Mas o tema prioritário do governo é o homeschooling, ou ensino domiciliar. A primeira vitória se deu na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, liderada pela bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que derrubou o entendimento de que a ausência prolongada de uma criança do espaço escolar se caracteriza como crime de “abandono intelectual” passível de detenção ou multa dos responsáveis. No âmbito estadual as propostas também vão surgindo. Mesmo sem qualquer regulamentação federal, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o ensino domiciliar. Felizmente o governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou que vetará a medida. Já no Paraná, a Justiça declarou inconstitucional o projeto que vinha sendo discutido no município de Cascavel. Em resposta ao avanço das propostas de ensino domiciliar no país, cerca de 400 entidades entregaram ao presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) um manifesto contra o homeschooling e em defesa da educação.
O grupo mais interessado na implantação do homeschooling no Brasil é a bancada da bíblia e o fundamentalismo cristão infiltrado no MEC. Não à toa, ao ser questionado sobre as consequências da medida, o ministro Milton Ribeiro respondeu: “É claro que a escola oferece a possibilidade de socialização, mas existem outras formas de socializar, na família, nos clubes, nas bibliotecas e até mesmo nas igrejas”.
Além do retrocesso educacional que representa, a medida também reforça valores patriarcais e dificulta a repressão à violência doméstica contra crianças e adolescentes. Beneficiam-se bolsonaristas e terraplanistas fissurados na guerra cultural, que consideram a escola um local de propaganda marxista. Não é à toa que os desenvolvedores do aplicativo Mano, utilizado na campanha de Bolsonaro, já estão investindo em aplicativos educacionais.
Dilemas da reabertura
É compreensível o anseio da juventude pelo retorno das aulas presenciais. Afinal, está claro que o ensino remoto emergencial contribuiu para agravar as desigualdades pré-existentes, além de desestimular os estudantes. Estudo do Conselho Nacional da Juventude mostra que 54% dos jovens preferem o retorno às atividades presenciais do que atividades remotas. No entanto, a realidade da educação e da pandemia ainda impedem a realização desse desejo.
A vacinação dos professores avançou, mas ainda está longe de ser completa, com as duas doses necessárias à imunização. A rede pública do Paraná, por exemplo, já registrou a morte de 200 professores por Covid-19 desde o início da pandemia. Segundo estudo do Dieese, no Brasil o número de profissionais da educação mortos entre janeiro e abril deste ano foi 128% maior do que no mesmo período do ano passado. Infectologistas de São Paulo alertam para os riscos de apressar a retomada de atividades presenciais e os professores exigem a vacinação completa como condição para o retorno às salas de aula no estado e em outras regiões do país.
Além da vacinação lenta, outro problema é a ausência de infraestrutura, planejamento e segurança sanitária. Em Minas Gerais um grupo de diretores de escolas questiona o calendário apresentado pelo governo estadual e denuncia diversas insuficiências, dentre elas a falta de um protocolo para o revezamento na utilização dos espaços da escola, desorganização do quadro de professores e ausência de medidas preventivas para evitar contaminações. Um estudo realizado por pesquisadores da USP aponta que até mesmo protocolos básicos, como o uso de máscaras, ventilação, imunização, testagem, transporte, ensino remoto, distanciamento e higiene são falhos na rede escolar dos cinco estados brasileiros analisados.
Com a lentidão da vacinação, o setor privado já entendeu que, pelo menos no Ensino Superior, não haverá retorno às salas de aula no segundo semestre deste ano. O sinal de que o impasse prossegue é que o projeto de lei que propõe tornar a educação uma atividade essencial e proibir o fechamento das escolas patina no Senado.
Futuro roubado
Nos últimos anos, tanto o Enem quanto o Fies minguaram. Depois do fracasso do Enem passado, ocorrido em janeiro deste ano, o próximo Exame previsto para novembro também já tem problemas. Até mesmo a aposta do MEC na ampliação da prova digital parece que fracassou.
Evidentemente, parte do problema deve-se à crise econômica, à pandemia e à falta de uma perspectiva de ascensão social através da educação. A pesquisa “Juventudes e a pandemia” feita pelo Conselho Nacional da Juventude aponta que 74% dos jovens se sentem despreparados para fazer o Enem, índice maior do que no ano passado. Outro sinal da ausência de perspectivas é que quase metade dos jovens afirmam que deixariam o Brasil e tentariam a vida em outro lugar se pudessem. Este é o Brasil de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e Milton Ribeiro.
O governo tem motivações político-ideológicas para enfraquecer ou modificar o Enem. Em sua paranoia, Bolsonaro vê no Exame um instrumento de guerra cultural. Por isso, o pastor ministro Milton Ribeiro afirmou que vetaria pessoalmente questões que considerasse inadequadas. Mesmo tendo recuado dessa ideia absurda, o Inep chegou a criar uma instância para filtrar “questões subjetivas” e dar atenção a “valores morais” no Enem. O Psol denunciou a medida ao Ministério Público por entender que ela seria uma espécie de “tribunal ideológico”. A oposição também pretende tornar o Inep uma autarquia de regime especial, afastando-o da ingerência do MEC.
Ao mesmo tempo, o Inep já discute mudanças no perfil do Enem e do Encceja, que incluem a periodicidade dos exames, o conteúdo abordado e o formato da avaliação. Segundo a presidente do Conselho Nacional da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, o atual modelo do Enem está “ultrapassado”.
Além de milhões de jovens que dependem do Enem e do Fies para estudar, o setor privado também se interessa pelo tema. Afinal, estas políticas públicas aportam um grande montante de recursos nas corporações educacionais. Prova disso é que a recente manifestação do Ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a possibilidade de refinanciamento da dívida dos estudantes com o Fies gerou otimismo no empresariado educacional. No mesmo sentido vai o projeto de lei aprovado pelo Congresso que dispensa os estudantes beneficiários do Fies de pagarem as prestações até o fim de 2021.
Abismo digital
As tecnologias da informação e comunicação se tornaram ferramentas indispensáveis no processo educacional. Neste âmbito, as desigualdades são cada vez mais agudas. No ensino privado, as modalidades de ensino à distância não param de crescer. Abrem-se novos nichos de mercado a serem explorados, como a oferta de serviços de vestibular digital para as instituições de ensino superior, a exemplo do que vem fazendo a Fundacred. No setor privado, enquanto as matrículas presenciais caíram 8,9%, as matrículas EaD aumentaram 9,8% este ano. E a tendência deve continuar mesmo depois da pandemia. Já se vislumbra uma transição ano que vem, quando o número de matrículas EaD deve superar as presenciais. Comentando este contexto em tom triunfalista, o executivo do grupo Ser Educacional Joaldo Diniz afirma que “o ensino não voltará a ser 100% presencial”.
Em compensação, estudo realizado por pesquisadores da USP demonstra que o ensino remoto na rede pública foi extremamente precário ao longo de 2020. De um índice máximo de 10 pontos, as redes estaduais ficaram com 2,38 e as municipais com 1,6. Outro estudo, desta vez realizado pela Unicef, mostra que 80% dos estudantes brasileiros entre 6 e 17 anos não tiveram acesso às modalidades de ensino à distância ou presencial. Um verdadeiro apagão educacional. Tardiamente, o governo obrigou-se a sancionar a lei que garante os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), depois que o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro. São R$ 3,5 bilhões destinados ao desenvolvimento da conectividade nas escolas.
De olho nos potenciais deste mercado, a Fundação Lemann acompanha de perto a infraestrutura digital das escolas públicas. Junto com outras organizações, eles instalaram medidores de conectividade nas escolas para acompanhar de dentro o que ocorre na rede pública. Uma das constatações do grupo é que somente 3% das escolas têm internet correspondente ao padrão internacional. Evidentemente, o interesse do grupo Lemann é que essa situação dificulta muito a venda de serviços educacionais de ponta para o setor público. Ou seja, do ponto de vista dos interesses privados, é preciso melhorar a conectividade para ampliar o mercado.
Para além da questão do acesso, o ensino à distância vem mudando a forma como os estudantes lidam com as aulas. Verifica-se, por exemplo, um novo fenômeno de estudantes que aceleram as vídeo-aulas no momento de assisti-las. Segundo Andrea Jota, do laboratório de estudos de psicologia e tecnologia da PUC-SP, este comportamento deve-se a uma série de fatores, como o cansaço da tela, a atenção exigida, a dificuldade de se adaptar ao ensino virtual e o desejo de otimizar o tempo.
Cruzando a última fronteira
Aproveitando as oportunidades abertas pela pandemia, as grandes corporações dão novos passos rumo a um novo padrão educacional. Um dos mecanismos de concentração do poder econômico e financeiro são as fusões e aquisições de empresas menores. Segundo a consultoria KPMG, o número de fusões e aquisições ocorridas no primeiro trimestre de 2021 foi o maior dos últimos 20 anos. Sinal de que a crise faz bem para o capital financeiro. O setor educacional ficou em terceiro lugar em número de negócios, atrás somente de empresas de internet e da tecnologia da informação.
Uma das transações mais recentes foi a aquisição do centro universitário UniAmérica, do Paraná, pela plataforma Descomplica. Este negócio indica a possibilidade de um novo movimento do capital financeiro na educação, pois até o momento a Descomplica era uma EdTech que atuava somente no espaço virtual. Agora, com a compra da UniAmérica, ela adentra o mundo físico do ensino universitário com cursos de graduação e pós-graduação. O negócio é resultado do investimento de R$ 450 milhões do gigante japonês SoftBank na Descomplica.
No caminho inverso, a Yduqs adquiriu a plataforma QConcursos que atua no mercado de cursos online preparatórios para concursos e vestibulares. Com isso, o próximo passo da Yduqs deve ser expandir sua plataforma de materiais didáticos, a EnsineMe. Ambos os movimentos, o da Descomplica e o da Yduqs, demonstram uma crescente integração dos negócios em plataformas online e em infraestrutura física educacional.
O mesmo movimento vem afetando o Ensino Básico. O grupo nova iorquino Avenues, que aposta em escolas ultra elitizadas e já atua em 35 países, quer reproduzir no Brasil o padrão norte-americano de ensino 100% online. A proposta é que a modalidade passe a ser ofertada a partir de agosto para estudantes do 4º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Médio em escolas de São Paulo. Com isso, a mensalidade do ensino online seria de R$ 10 mil, enquanto a mensalidade presencial subiria para mais de R$ 12 mil. Evidentemente, a proposta de atividades 100% online no Ensino Básico é ilegal no Brasil e o Conselho Estadual de Educação de São Paulo já notificou a Avenues.