O outro lado da moeda do 1° de Maio
Por Olívia Carolino Pires
Neste 1° de Maio o que está em jogo é o futuro da classe trabalhadora. A crise nos empurrou a outra esfera de reflexão, que não se trata mais sobre o futuro do trabalho diante das transformações do capitalismo. A pandemia causada pelo Coronavírus nos colocou a centralidade na própria defesa da vida das trabalhadoras e trabalhadores, assim como na manutenção da existência dos sindicatos como ferramenta organizativa.
Dinheiro só existe como dinheiro mundial
O capitalismo em sua fase de regime de acumulação por dominância financeira (Chesnais, 1998) data dos anos 70, desde a desvinculação do dólar americano ao ouro com o fim do sistema de Bretton Woods (1944-1971). Este período tornou o dinheiro mundial numa moeda puramente fiduciária, ou seja, dinheiro inconversível, de papel, com vínculo muito tênue – ou até mesmo inexistente para alguns autores – com qualquer mercadoria em termos de valor, o que reduz o dinheiro a sua condição de pura “abstração”. Aparentemente isso colocaria a classe trabalhadora numa situação complicada, visto que ela é quem gera Valor na esfera produtiva e que exige, portanto, que o dinheiro seja uma mercadoria produzida e que contenha um determinado “quantum” de trabalho social, condição que supostamente não é mais preenchida pelo regime monetário contemporâneo.
No entanto, ao recorrermos ao método de Marx e a um estudo rigoroso de O Capital, é possível reconhecer que só como dinheiro mundial o dinheiro consegue alcançar sua vocação de infinito. O ponto de partida de Marx é a troca simples, ou seja, mercadoria portadora de um quantum de trabalho social trocada por outra mercadoria. O primeiro acontecimento histórico é a transformação do equivalente geral em dinheiro. Verifica-se neste acontecimento que a mercadoria-dinheiro conquista o valor de uso ao carregar a relação social de ser equivalente geral das mercadorias produzidas na divisão do trabalho e separar os atos de compra e venda. Num segundo acontecimento histórico, o dinheiro assume o valor de uso de se apropriar de trabalho alheio, a partir do momento em que passa a ser utilizado para acionar o processo produtivo capitalista. O dinheiro se transforma em capital que compra – entre outras mercadorias – a mercadoria Força de Trabalho e passa a expressar a relação social de exploração. O valor de uso da mercadoria Força de Trabalho é gerar mais valor, apropriado de forma privada pelo proprietário de capital. O terceiro acontecimento histórico é o dinheiro se transformar em mais dinheiro por meio da monetização do crédito que impõe ritmo ao processo produtivo operando como capital portador de juros.
Nesta análise categorial do capital de Marx, o movimento se dá por uma tensão permanente entre o concreto e o abstrato, em que o valor abstrato sempre “vence a batalha”. Desde a contradição fundamental entre valor de uso e Valor na forma mercadoria, até a forma dinheiro como critério universal da riqueza, o abstrato vence a batalha. Na contradição entre “capital produtivo” (operante) e “capital fictício”, a determinação abstrata também vence a correlação na lógica de valorização do capital. É neste sentido que compreendemos em Marx que só como dinheiro mundial a forma dinheiro encontra o meio adequado a esse conteúdo do dinheiro (com suas funções de meio de circulação, unidade de medida e reserva de valor). Ou seja, em sua forma abstrata “livre” do processo produtivo e dos limites das formas de moeda emitida pelo poder de senhoriagen dos Estados nacionais.
Nas respostas capitalistas para a crise atual essa forma “abstrata” está sendo a principal aposta dos Bancos Centrais do mundo inteiro ao reduzir permanentemente as taxas de juros e prover dinheiro barato; uma exacerbada política monetária na procura de aumentar a liquidez. As baixas taxas de juros permitem que os mercados financeiros tomem empréstimos em uma situação cujos riscos estão abaixo do preço. Como resultado, tem-se os ativos supervalorizados e a tendência de ampliar a dívida global. Para reverter esta falta de liquidez, o Federal Reserve, além de cortar a taxa de juros, tem aberto linhas de swap de bilhões de dólares à taxas baixíssimas com os Bancos Centrais de diversos países. Tal política está inundando o mundo de dólares impressos, ao apostarem que a riqueza na sua forma mais abstrata resolverá os problemas do capitalismo.
O outro lado da moeda
O “outro lado da moeda” é examinar o movimento dos trabalhadores enquanto classe organizada, uma vez que – assim como o dinheiro – ele só encontra seu conteúdo enquanto movimento mundial.
O triunfo das revoluções proletárias apenas será possível se a classe trabalhadora estiver organizada, seja como parte consciente da sociedade nacional ou internacional, e com isso conduzir-se até a tomada de poder por meio da organização partidária para, a partir daí, estabelecer as bases da sociedade socialista. Com esse entendimento, Marx e Engels, já no início da militância política, interessaram-se por organizar o movimento operário voltado às questões gerais: “Proletários de todos os países uni-vos!”. Dessa forma, dedicaram-se à organização das Associações Internacionais dos Trabalhadores.
As chamadas cadeias globais de valor expressa essa dimensão mundializada do dinheiro e da organização dos processos produtivos. Nunca antes uma trabalhadora brasileira se sentiu tão próxima a uma trabalhadora chinesa, seja pelo suprimento que compõe seu celular ou pelo medo similar em relação à contaminação por um vírus.
Em ocasião do 1° de maio, recorremos ao método de Marx para recuperar a simples e fundamental percepção de que os problemas do capitalismo não podem ser resolvidos com mais capitalismo, e que a superação das contradições do capitalismo só poderá ser realizada pelos próprios produtores diretos: trabalhadores e trabalhadoras que fazem o sistema funcionar de forma concreta, e não pelos que pensam soluções para os problemas criados pelo capitalismo.
Por que os sindicatos?
Marx centra sua análise no processo histórico, e o método de interpretar esse processo não permite perder de vista o antagonismo inerente ao sistema de assalariamento capitalista e, consequentemente, a necessidade de resolver esse antagonismo a favor dos trabalhadores. O pensador alemão se refere à análise histórica da sociedade que se forma na revolução industrial e que pariu violentamente o que chamamos de mercado de trabalho. No início da sociedade capitalista, os assalariados ingressam na produção fabril como escória social, forçados por um sistema de repressão à “vagabundagem”. As fábricas eram vistas como uma prisão pelos trabalhadores, o que levava ao movimento espontâneo de destruição das máquinas.
Como mostramos no nosso primeiro documento de trabalho do Instituto Tricontinental, Nas Ruínas do Presente, durante 100 anos as fábricas e escritórios atraíram grande número de trabalhadores em um ambiente denso de vigilância e produtividade. O capital, faminto por lucro, viu as vantagens de criar fábricas e escritórios gigantescos. Essa vantagem logo se tornou em desvantagem. Ao concentrar um grande número de trabalhadores em uma fábrica, o capital permitiu o diálogo entre eles e o consequente desenvolvimento do movimento sindical moderno.
Em meados do século XX, 100 anos depois do movimento sindical e suas conquistas, o capital recorreu a novos métodos de exploração ao entrar na era da produção desarticulada. Nessa fase mais brilhante do capitalismo, o assalariamento se torna o meio fundamental de ascensão à dignidade. Para Castel (2003), a relação salarial é definida como: 1) “um modo de remuneração da força de trabalho, o salário – que comanda amplamente o modo de consumo e o modo de vida dos operários e de sua família”; 2) “uma forma de disciplina do trabalho que regulamenta o ritmo da produção, e o quadro legal que estrutura a relação de trabalho”.
Tratava-se, portanto, de uma sociedade que se organiza em torno da condição de assalariamento, conferindo ao trabalho um estatuto que produz proteções tradicionalmente asseguradas pela propriedade. A seguridade social procede de uma “transferência de propriedade pela mediação do trabalho e sob a égide do Estado”. Esta “propriedade de transferência” não é incompatível com a propriedade clássica, pois os poderes da propriedade são conservados, porque “só o pagamento individual dá acesso ao direito coletivo”. O Estado torna-se o “fiador da propriedade de transferência”, modelando para si um papel novo que lhe permite “dominar o antagonismo absoluto” entre a classe burguesa e a classe trabalhadora. O assim chamado ‘Estado social’ “começa sua carreira quando os notáveis deixam de dominar sem restrições e quando o povo fracassa ao resolver a questão social por conta própria”, pontua Castel. Por isso, o Estado social “supõe e contorna, ao mesmo tempo, o antagonismo entre classes”.
A complexidade do conteúdo da luta da classe trabalhadora deve ser entendida dentro das contradições que inauguram a sociedade salarial, que oculta a exploração por meio da forma salário. Nesta configuração da luta de classes, é mais difícil definir a classe burguesa do que a classe operária, já que, ao contrário da nobreza, a burguesia não coloca a intenção de definir as fronteiras da sua classe. Ao contrário, ela faz questão de convencer ou coagir os dominados demonstrando a não existência dessa fronteira entre classes sociais; a única diferença entre patrão e empregado seria a eficiência, já que seriam pessoas iguais com empenhos diferentes. O burguês do programa da modernidade se desenha enquanto um sujeito comum. A classe burguesa tem recursos para confundir essa fronteira, e a definição de classe social apenas aparece quando ambas entram em confronto. Ao confrontarem-se, desenha-se os limites da fronteira da classe explorada, enquanto as classes intermediárias são levadas a se definirem.
Apenas no conflito é possível definir as fronteiras de classe, e é imprescindível que apareça a centralidade do poder político. As sociedades antigas ou feudais podem ser analisadas em termos de classes sociais, mas o conflito de classe não é necessariamente o conflito central. É apenas com a dominação do modo de produção capitalista que os conflitos de classe se tornam verdadeiramente centrais, ao mesmo tempo em que as ordens são eliminadas.
Na sociedade capitalista há uma base racional e declarada para os trabalhadores se organizarem. No documento Papel Econômico Imediato dos Sindicatos, Marx explicita essa questão e aponta a razão da existência de sindicatos na sociedade salarial.
O Valor da força de trabalho constitui a base racional e declarada dos sindicatos, cuja importância para a classe operária não se pode subestimar. Os sindicatos têm por fim impedir que o nível dos salários desça abaixo da soma paga tradicionalmente nos diversos ramos da indústria e que o preço da força de trabalho caia abaixo do valor. (…) Consequentemente, os operários se unem para se colocarem em igualdade de condições com o capitalista para o controle de venda de seu trabalho. Esta é a razão (base lógica) dos sindicatos. O que buscam é evitar que sob a pressão direta de uma miséria particular, o operário se veja obrigado a se contentar com um salário inferior ao fixado de antemão pela oferta e pela procura em um determinado ramo de atividade, de maneira que o valor da força de trabalho caia abaixo de seu nível tradicional nesta indústria. (….) São sociedades de segurança criadas para os próprios operários. (MARX, 2008, p. 63)
A grande contribuição de Marx para o sindicalismo está na fundamentação dos motivos que impedem que as reivindicações dos trabalhadores se restrinjam ao aceitável pelos capitalistas. Tal restrição seria uma atitude conservadora que, à longo prazo, destruiria a vida sindical, porque impossibilitaria os sindicatos de assumirem qualquer papel de mudança que atingissem regras supostamente eternas do capitalismo.
A concepção de Marx via uma continuidade na transformação da luta econômica a luta política por um sindicato classista, como uma necessidade lógica do processo geral de organização da classe operária. O desenvolvimento da Associação Internacional dos Trabalhadores apoiava-se no avanço do processo do movimento sindical da época. A Resolução do 1º Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1866 sobre os Sindicatos, apresenta uma alegoria do movimento sindical em relação ao seu passado (origem), presente (luta social) e futuro (vir a ser, a luta por emancipação):
SEU PASSADO
Capital é poder social concentrado, ao passo que o trabalhador dispõe apenas de sua força de trabalho individual. Por isso, o contrato firmado entre capital e trabalho não pode jamais se assentar sobre condições justas, justas nem mesmo no sentido de uma sociedade que opõe a propriedade sobre os meios materiais de vida e do trabalho à força produtiva viva.
O único poder social dos trabalhadores é o seu poder numérico. Entretanto, esse poder numérico é anulado pela desunião. A desunião dos trabalhadores surge e mantêm-se através da inevitável concorrência que sustentam entre si. Os sindicatos vieram ao mundo, originariamente, por meio das tentativas espontâneas dos trabalhadores de suprimirem ou, ao menos, limitarem essa concorrência, com o objetivo de imporem condições contratuais que os elevassem, no mínimo, acima da posição de meros escravos. Sendo assim, o objetivo imediato dos sindicatos limitou-se às exigências do momento, enquanto meio de defesa contra os permanentes assaltos perpetrados pelo capital, em uma palavra : limitou-se às questões relacionadas com salário e jornada de trabalho. Essa atividade dos sindicatos não é tão somente justificável, senão ainda necessária. Não é possível desaconselhá-la, enquanto persista existindo o atual modo de produção. Pelo contrário, essa atividade deve vir a ser generalizada através da fundação e centralização de sindicatos em todos os países. Por outro lado, os sindicatos, sem que se tornassem conscientes desse fato, tornaram-se centros de organização da classe trabalhadora, tal como o foram as municipalidades e comunidades medievais para a burguesia. Se os sindicatos já são indispensáveis para guerra travada entre capital e trabalho, são eles tanto mais importantes enquanto força organizada para a eliminação do próprio sistema de trabalho assalariado.
SEU PRESENTE
Os sindicatos ocuparam-se, até o presente momento, exclusivamente com a luta local e imediata contra o capital e ainda não compreenderam inteiramente que forças representam na luta contra o próprio sistema de escravidão assalariada. Por isso, mantiveram-se muito distantes dos movimentos políticos e gerais. (…)
SEU FUTURO
Apesar de seus objetivos iniciais, os sindicatos devem aprender agora a agir como centros de organização da classe trabalhadora, atuando no grande interesse de sua completa emancipação. Devem apoiar todo e qualquer movimento social e político que se projete nessa direção. (…)
Por que os sindicatos perderam força?
O estudo Nas Ruínas do Presente traz um retrato da decomposição da classe trabalhadora como sujeito histórico, e como esse processo foi prejudicando o sindicalismo.
“O capital adiquiu vantagem sobre as nações, com as cadeias globais de produção. A desarticulação da produção dificulta o sindicalismo, porque o capital agora diz que, se houver greve em uma fábrica, ela fechará e a produção será transferida para outro lugar. Grande parte da produção é terceirizada para pequenos capitalistas em terras distantes.
As novas técnicas de produção prejudicaram o sindicalismo. São também nestas novas, menores e mais dispersas fábricas, que as mulheres trabalhadoras têm se tornado uma entidade crucial, extraídas por menos de uma década de suas vidas, desgastadas pela aceleração da fábrica e, em seguida, enviadas de volta a vida rural de onde vieram – como resíduos da produção do capitalismo contemporâneo. Com os trabalhadores viajando em busca de empregos inseguros, o dia de trabalho se alongou de tal forma que agora o tempo de lazer é mínimo, senão inexistente, e assim o tempo necessário para construir os bastiões da classe trabalhadora e do campesinato foi devorado. Este tempo de busca tem consumido o tempo da comunidade e do sindicato.
A vida social foi erodida, à medida que o tempo foi roubado das pessoas, não apenas pelos empregadores, mas também pela estrutura de insegurança e de trabalhos de meio período. Muitas vezes, mais tempo é gasto procurando trabalho do que trabalhando.
Além disso, a cultura do sindicalismo foi castigada pela cultura de consumo. As pessoas se converteram, cada vez mais, por uma explosão feroz da mídia, da indústria da publicidade e das instituições de ensino, em consumidoras, e não trabalhadoras. Ou seja, a nova identidade, desgastada pela vida psíquica do neoliberalismo, não deve ser vista em relação ao local de trabalho, mas a seus padrões de consumo. Shoppings e propagandas atraem pessoas de muitas classes que se imaginam como outra pessoa. Quando não são shoppings, são os centros religiosos – templos, mesquitas, igrejas – que se tornaram bálsamos para os trabalhadores informais deslocados, cujos corpos e consciências derrotados são agora redimidos através da salvação prometida pelos pregadores de diferentes crenças. O pentecostalismo na América Latina, o cristianismo protestante na China etc., marcaram obstinadamente seu território onde predominava a cultura sindical e socialista. As comunidades são criadas em torno do desejo por mercadorias e em torno da fé.
Em muitos lugares elas se tornaram mais atraentes do que a cultura sindical e as organizações socialistas. O sindicalismo, nesse contexto, parece anacrônico”.
Os sindicatos perderam força conforme a situação da classe trabalhadora foi se degradando a nível mundial. A vitória de Thatcher nos anos 70 sobre a greve dos mineiros na Inglaterra pode ser considerada um marco nesse processo que inaugura o neoliberalismo, que surge para resolver problemas práticos produzidos por mudanças estruturais no modo de produção global. Foi o produto de uma solução burguesa de políticas públicas à crise da globalização.
A vocação de dinheiro mundial e a busca do capitalismo pelo mercado global impõe uma tensão dos Estados nacionais como condição e limite para o capitalismo funcionar. As ambições globais do Capital encontravam os limites da tecnologia. Mas, na década de 1970, algumas barreiras tecnológicas foram superadas, e o poder da classe trabalhadora relativamente reduzido. O Capital estava apto então a subir em sua carruagem e observar o mundo de cima, olhando para baixo através de seus satélites, acumulando informação em seus computadores e em busca dos trabalhadores mais baratos.
A luta em tempos de financeirização
A financeirização corresponde à mudanças profundas no funcionamento do capitalismo, não apenas em relação à moeda ou ao dinheiro mundial fiduciário, mas com transformações na organização da produção e na regulação do trabalho, com a chamada acumulação flexível. O Estado neoliberal deixa de ser “fiador da propriedade de transferência” do mercado para a sociedade, e passa a ser capturado pelas finanças, que opera a transferência da sociedade para os bancos.
Nessa relação, que expressa o domínio do capital portador de juros sobre o capital produtivo, evidencia-se o aumento de sua exigência na participação da mais-valia. As inúmeras formas de fazer valer sua lógica de rentabilidade de curto prazo nas empresas, e a liberdade de ir e vir alcançada pelo capital financeiro, permitiu que os outros capitais (industrial e comercial) também ganhassem mobilidade, fazendo do mundo objeto de sua açaão e intervenção. Essas condições exacerbaram a concorrência capitalista e colocou, como nunca antes visto, os trabalhadores em concorrência no plano mundial.
A luta da classe trabalhadora se dá num cenário em que o valor fictício dos mercados de ações globais chega a mais de 200% do PIB global, o que altera as condições materiais da luta de classe no que diz respeito ao enfrentamento capital e trabalho. A crise no capitalismo de dominância financeira está gerando outra base para a reprodução da vida. Quando a produção estava organizada a partir de uma base industrial, 75% da riqueza era alocada no investimento produtivo e 25% transferido aos acionistas das corporações. A acumulação financeira predominante no comando do sistema produtivo altera a taxa de investimento e passa a ser ¾ para os acionistas e ¼ para investimento produtivo.
A redução dos custos do trabalho é central para a rentabilidade dos acionistas. Até então, predominava nas agendas de pesquisa comprometida com o pensamento crítico, as investigações sobre novos paradigmas tecnológicos, a Força de Trabalho humana substituída pela máquina e o trabalho substituído pela inteligencia artificial. Agora, a crise nos empurra a outra esfera de reflexão que não o “futuro do trabalho diante das transformações do capitalismo”, mas o futuro da própria classe trabalhadora, a defesa da vida das trabalhadoras e dos trabalhadores, e, junto com ela, a defesa da manutenção da existência dos sindicatos como ferramenta organizativa.
A luta tempos de pandemia
Se a financeirização transformou profundamente a lógica da sociedade fordista, a pandemia impulsionada pelo coronavírus significa de imediato um choque na crise do capitalismo financeirizado. A exigência do isolamento produz queda instantânea das atividades humanas, interrupção da produção e desemprego imediato.
Uma dimensão dramática da pandemia é a possibilidade de eliminar um contingente de Força de Trabalho supérfluo à produção. Estamos nos referindo a uma derrota que o capital infringiu à classe trabalhadora, ao criar um contingente de força de trabalho supérflua que não serve nem para formar o Exército Industrial de Reserva. Ou seja, na crise de processo de acumulação capitalista não há lugar para um contingente de Força de Trabalho, condenados da terra e confinados nas periferias dos grandes centros urbanos.
No Capítulo XXIII de O Capital, A Lei Geral da Acumulação Capitalista, Marx mostra que o desenvolvimento das forças produtivas cria um contingente de força de trabalho supérfluo ao processo produtivo, mas fundamental para a valorização do capital.
Trabalhadores substituídos por máquinas constituíam o chamado Exército Industrial de Reserva, com o papel fundamental de fazer pressão na concorrência entre os trabalhadores empregados e os desempregados, para que o preço da Força de Trabalho vigorasse abaixo do seu Valor (já que haveria mais demanda que oferta de emprego). Os sindicatos existem, portanto, para organizar a classe trabalhadora e impedir que o preço da Força de Trabalho seja remunerado muito abaixo do seu valor.
Em resposta à pulverização, precarização e eliminação do trabalhado no processo produtivo, a cultura da classe trabalhadora é destruída. Esse processo é intensificado na medida em que a máquina, o aplicativo e a mercantilização passa a mediar a sociabilidade. Esse processo gera um enorme contingente de população supérflua para a valorização do capital: seres humanos brutalizados, haptos a eliminação pelo suicídio, genocídio ou migração forçada de refugiados. Nesse processo, a população carcerária e o tráfico de drogas adquire cada vez mais funcionalidade na desmobilização da classe trabalhadora e na geração de Valor.
Com isso, cresce o avanço de forças conservadoras, e a barbárie cria a base social do Estado policial para conter violentamente esse contingente de população supérflua à valorização do capital. Os direitos sociais perdem espaço na reprodução da Força de Trabalho conforme são arrancados da classe trabalhadora; a luta pela sobrevivência assume maior relevância.
Queremos chamar atenção para o fato de que o desenvolvimento tecnológico se mostra incompatível com o próprio capitalismo. Marx coteja a abordagem metodológica de que ao longo da História as forças produtivas foram se desenvolvendo, e este desenvolvimento entra em contradição com a relação de produção predominante. Isso abriria a possibilidade de transitar a outro modo de produção que supere as contradições do modo de produção precedente. Na crise atual temos uma situação em que o desenvolvimento tecnológico se mostra incompatível com o capitalismo e sem perspectiva de superação, nos empurrando à barbárie; a tendência de eliminação da classe trabalhadora por um vírus é resultado da ação social, que cria um contingente de trabalhadores sem lugar no capitalismo, e sua morte entra no cálculo de recuperação da economia.
O capitalismo está encontrando os limites da possibilidade de responder à crise por meio da dimensão abstrata da economia, ao imprimir moeda e garantir liquidez. A tendência à interrupção dos fluxos de pagamentos do sistema financeiro e monetário mundial está fazendo com que o FED e o Banco Central da Europa abandonem suas regras, sendo forçados a olhar para a existência, para as condições de produção e reprodução da classe trabalhadora. Isso não quer dizer que o capitalismo irá valorizar a dimensão concreta da vida, muito menos a classe trabalhadora; é necessário que a classe trabalhadora se entenda como tal, valorize-se e lute pela própria vida.
Por um 1° de Maio em defesa da vida da classe trabalhadora e da existência dos sindicatos
Seu passado. Está lá na origem dos sindicatos: “o trabalhador individualmente não tem força para negociar com um poder social concentrado como é o capital”. Na crise com pandemia há o avanço da flexibilização e da individualização dos contratos que fragiliza a classe trabalhadora e afasta os sindicatos. É imprescindível o papel do movimento sindical na valorização das trabalhadoras e trabalhadores e na defesa dos direitos conquistados historicamente.
Para os ramos industriais, é necessário os sindicatos de categorias estratégicas em negociações com as empresas por meio de convenções coletivas sobre a implementação da MP 936, que cria o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, a ser pago nos casos de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário; e suspensão temporária do contrato de trabalho. Se os trabalhadores e trabalhadoras foram mandados para casa (por férias coletivas/individuais/antecipadas) é necessário os sindicatos para orientar e negociar as condições dessa permanência em casa. A atividade industrial não voltará para o que era antes; é preciso negociar as condições do retorno (quais grupo de risco devem ficar em casa, condição de transportes e refeitórios organizados por turnos). O vínculo dos sindicatos com sua base é essencial nesse processo, porque além das reivindicações clássicas em defesa das condições de trabalho, jornada e remuneração, os sindicatos têm um papel na defesa da vida das trabalhadoras e trabalhadores.
Seu Presente. Os sindicatos têm papel de oposição e desgaste do governo Bolsonaro, denunciando as medidas do governo que arrancam direitos conquistados pela classe trabalhadora e a reforma sindical, que reduz violentamente a arrecadação e reduz o número de sindicatos. É necessário a defesa do sindicato como instrumento de organização da classe trabalhadora.
Seu futuro. Os sindicatos têm um papel na luta por emancipação que passa, nesse momento, em escutar atentamente o que a classe trabalhadora está vivenciando em relação ao teletrabalho e trabalho remoto, mensurar o quanto é irreversível para algumas categorias e quais novas condições de trabalho se inauguram. A reconversão da produção deve estar voltada para produzir o que é necessário para vida. Não podemos deixar de imaginar um futuro que estejamos preparados para enfrentar pandemias e salvar vidas em detrimento de uma riqueza abstrata.
Esse é o 1° de Maio da solidariedade e do internacionalismo da classe trabalhadora.
Talvez o mais importante para erguer o punho esquerdo e empunhar em alto e bom som: trabalhadoras e trabalhadores de todo mundo, cada qual em seu isolamento, uni-vos!