O Partido Militar no governo Bolsonaro em números
Observatório da Defesa e Soberania
Por Ana Penido¹ e Suzeley Kalil²
Em nossas últimas análises, exploramos o conceito de Partido Militar para entender como se desenvolve a relação entre militares e o governo do presidente Jair Bolsonaro. Concordamos com a ideia³ de que não há nada de anormal na participação dos militares na política, pelo contrário. “Seria mais prudente admitir que não há nada de natural na subordinação dos militares e que, tal como ocorre nos países de democracia consolidada, o controle civil nunca é dado e muito menos assegurado com conversa e charme, pelo contrário, ele é sempre problemático” (Coelho, 2000, p.26-27). Rouquié (1990)4 estava certo quando apontou que, mesmo com o fim do regime dos generais, o Partido Militar continuaria existindo e se rearticularia.
Porém, vale destacarmos três ressalvas sobre este assunto. Perceber que os militares se organizam para atuar na esfera política, mantendo e ampliando seu poder político, não implica em afirmar que estão se organizando em um partido político, como o caso do Partido Militar. Tampouco implica dizer que o Partido Militar prepara um golpe. Além do mais, o Partido Militar dificilmente buscará se oficializar com a definição de uma legenda registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ferreira (2000)5 aponta que a finalidade principal do Partido Militar6 não é a eleição dos seus, mas funcionar enquanto um centro aglutinador, aproximando-se do modelo do partido de quadros de Gramsci. Embora a adesão ao Partido Militar ocorra por motivos diversos, quando organizado, seus militantes deixam a generalidade do conceito “militares” e passam a atuar dotados de uma ‘vontade única’, a do próprio partido.
Quanto à estrutura, acreditamos que o Partido Militar reproduza as características do mundo castrense, como a hierarquia e a disciplina. Portanto, não é uma associação voluntária em torno de uma ideologia (Weber, 1984, p. 229)7, mas uma organização ao redor de referências das Forças Armadas (FFAA), notadamente generais de quatro estrelas. Dessa forma, como nos partidos de quadros, a estrutura do partido é piramidal, mas ao invés de organizações (locais > regionais > nacionais), a pirâmide segue a estrutura das FFAA (praças > oficiais intermediários > oficiais superiores).
Também não acreditamos que o Partido Militar tenha sido fundado como instrumento para objetivos pessoais. Embora esse possa ser um desejo, entendemos que o principal objetivo do Partido Militar são as reivindicações da corporação, quase numa lógica sindical. Assim, o poder do partido é mensurado pelo número de cargos que ocupa na administração pública e pelas conquistas que oferece às suas bases militares. Nesse sentido, diferente do que se espera da formação de um partido político – uma organização que surge quando se reconhece ao povo o direito de participar do poder político -, a lógica de formação do Partido Militar parte do entendimento que a sociedade e sua representação, especialmente a popular, é ineficiente para representar os ‘reais’ interesses nacionais, identificados com os das FFAA. O Partido Militar, como outros, conforma amplas alianças para aumentar seu poder de atuação na esfera política.
Em síntese, o Partido Militar é composto por membros cuja origem estão nas FFAA, com predominância do Exército; sua principal aliança é com o Partido Fardado, composto pelos membros das forças de segurança, como membros das polícias militares estaduais, corpos de bombeiros militares, polícia federal, entre outros; a existência de um conjunto de funcionários públicos que usam farda, embora não pertençam às FFAA, é o que nos leva a optar pelo conceito de Partido Militar e não por Partido Fardado, diferente de Ferreira (2000). Cabe pontuar que o Partido Militar é menor (em termos quantitativos) que o Partido Fardado, mas o Partido Fardado é subordinado ao primeiro, que tem maior capacidade de formulação, mais relações com as elites civis, autoridade moral (e por vezes legal) sobre os demais e domínio do maior aparato de violência.
Defendemos, portanto, a existência de um Partido Militar organizado como um partido tradicional, com seus quadros e sua base, sua forma organizativa interna, tendências, interesses corporativos, intenção de disputar a opinião pública e a hegemonia da arena política, indicação de quadros das próprias fileiras para diferentes cargos e opinando sobre assuntos diversos.
Em outros textos aprofundaremos como o Partido Militar se relaciona com o sistema político, com a Instituição FFAA, com o Partido Fardado e com o Legislativo. O tempo da produção acadêmica é distinto da análise da conjuntura política. Por isso, divulgamos esse resumo ampliado elaborado a partir da exploração empírica de alguns desses temas.
A fonte deste texto é a resposta da Casa Civil da Presidência da República ao Requerimento de Informações no. 660/2020, de autoria dos deputados Patrus Ananias, Ivan Valente, Helder Salomão, Nilto Tatto, João Daniel e Valmir Assunção. Em seu documento, a Casa Civil oferece uma listagem dos 341 militares (incluindo as forças de segurança) nomeados em cargos comissionados na Casa Civil, Secretaria de Governo, Secretaria de Assuntos Estratégicos, Secretaria Geral da Presidência da República, Gabinete Pessoal do Presidente da República e do Gabinete de Segurança Institucional. Ou seja, daqueles que constituem o círculo mais restrito em torno do presidente da República, 341 são militares comissionados.
Porém, cabe ressaltarmos dois fatores. Primeiro, há regras constitucionais (Art. 37, inciso 5) e da administração pública (Dec. 973219) que estabelecem critérios e número máximo de cargos que podem ser ocupados por pessoas externas àquele serviço público específico. Militares na ativa são funcionários públicos, enquanto militares da reserva são externos à administração. Segundo, é parte da lógica de sistemas políticos representativos a distribuição de cargos na administração aos seus partidários, independente da ideologia orientadora dos mandatários. São os considerados cargos políticos, e no Brasil não é diferente.
A seguir, apresentamos 10 assertivas gerais para a análise política a partir dos dados disponibilizados.
1. Da amostra total de 341 postos, entendemos que aqueles comissionados recrutados externamente para cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), particularmente os de alta remuneração, são os quadros do Partido Militar destacados para a condução do governo Bolsonaro;
2. Desse universo total, quase 90% são militares das FFAA, podendo-se deduzir que a subordinação dos membros das outras forças de segurança ao Partido Militar é quase absoluta, contrariando a base eleitoral histórica do deputado Jair Bolsonaro;
3. Olhando para a hierarquia das FFAA, afirma-se que o Partido Militar monopolizou as indicações de comissionados e favoreceu os oficiais (quadros do Partido), já que praças e oficiais subalternos não chegam a 18% da ocupação dos cargos. As patentes de oficiais superiores somam 51%, com predomínio de coronéis e seus correlatos na Marinha e Aeronáutica,8 com quase 50% dos cargos. Quanto aos oficiais generais, existem 21 comissionados. Esses números indicam alto comprometimento institucional e que o modus operandi do Partido Militar é o mesmo da Instituição FFAA, baseado na hierarquia e disciplina;
4. Entre as pastas analisadas, predominam militares comissionados no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o que indica a militarização do setor de inteligência brasileiro;
5. Depois do GSI, o local com mais militares comissionados é a Secretaria Geral do Governo, única que não tem à frente um membro do Partido Militar, e sim do Partido Fardado (Polícia Militar do Distrito Federal). O ministro Jorge Oliveira Francisco está literalmente cercado pelo Partido Militar;
6. Quanto às três Forças, 71% dos comissionados tem origem no Exército. A presença da Marinha e da Aeronáutica têm praticamente a mesma proporção, com 15% e 14%, respectivamente;
7. Quando analisados apenas os altos DAS (militares comissionados recrutados externamente recebendo salários acima de R$ 10 mil), identificamos 94 pessoas, 72% delas da reserva. Entre as pastas analisadas, continua o predomínio do GSI. Quanto às patentes, duas mudanças diante do quadro anterior: aumento considerável da proporção de coronéis – o que nos leva a identificá-los como os principais quadros intermediários do Partido Militar -, e a presença de apenas quatro generais da ativa (e seus pares nas Forças); 3 deles no GSI, além do Almirante Flávio Rocha na Secretaria de Assuntos Estratégicos. Também é possível verificar o crescimento da presença do Exército e diminuição da Aeronáutica entre os altos quadros comissionados. Todos os militares nomeados na Casa Civil com altos DAS, por exemplo, vem do Exército;
8. Quanto ao Partido Fardado, três dados chamam a atenção. Primeiro que 80% dos comissionados vem das Polícias Militares, a maioria do Distrito Federal. A segunda é a inexistência de indicados da Polícia Civil; e a terceira é a presença de apenas um policial militar do Rio de Janeiro.
9. Quanto às patentes desses assessores, o Partido Fardado é mais horizontal, indicando mais militantes da baixa hierarquia quando comparado com o partido militar: 42% são praças e não há nenhum Coronel ou Tenente-coronel entre os indicados.
10. Confirma-se a predominância masculina das Forças no Partido Militar: Apenas 11 mulheres (3%) foram encontradas em toda a lista; ao contrário do que acontece com a ocupação de cargos em geral, a minoria pertence ao Exército. A mesma afirmativa vale para o Partido Fardado.
¹ Bolsista Capes de pós-doutorado do Instituto de Políticas Públicas em Relações Internacionais (IPPRI – UNESP), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Instituto Tricontinental.
² Professora Associada em Relações Internacionais (FCHS-Unesp; Programa ‘San Tiago Dantas’), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq-PQ2).
³ COELHO, Edmundo C. Em busca de identidade. O Exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2000.
4 ROUQUIÉ, Alain. Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro, Record, 1990.
5 FERREIRA, Oliveiros S. Vida e Morte do Partido Fardado. São Paulo, Editora Senac, 2000.
6 O que chamamos de Partido Militar é o que Ferreira define como Partido Fardado. Nós, ao contrário, distinguimos duas organizações partidárias, a Militar e a Fardada.
7 WEBER, Max. Economia y Sociedad. Mexico (DF), FCE, 2ªed., 1984.
8 Optamos por utilizar a nomenclatura de cargos do Exército por dois motivos: 1) esta é a força que detém o maior número de membros e maior participação no governo civil, 2) as patentes e postos do exército são as mais conhecidas no mundo civil