O pastor, o guerrilheiro e a certeza do que esperamos
Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política
Por Delana Corazza*
Instigada pela bela matéria da jornalista Magali Cunha e pelo teólogo Claudio Ribeiro, fui assistir ao filme em cartaz O Pastor e o Guerrilheiro, de José Eduardo Belmonte, uma interessante história inspirada no livro Araguaia, relatos de um Guerrilheiro, de Glênio Sá (Editora Anita Gabibaldi, 2004). Por conta do nome do filme, eu estava na expectativa de encontrar, de alguma forma, o papel dos evangélicos de esquerda na ditadura civil-militar brasileira, mas não é isso que o filme aborda. O longa conta a história de Miguel, estudante de Direito que, em 1973, vai para a Guerrilha do Araguaia, é preso, torturado e em sua cela está um jovem evangélico, o futuro pastor Zaqueu, que é preso (mais ou menos) por engano. Segundo Zaqueu, sua prisão se deu pelo fato de que ele conhecia dois jovens comunistas e seria uma possível fonte de informações para o regime. No meio de gritos e ausências, na fome e na sede, cria-se um laço de solidariedade na cela entre os dois presos. Em paralelo a este enredo, passa a história da também jovem universitária Juliana no ano de 1999, militante do movimento estudantil que conhece a história de Miguel por meio de seu livro de memórias. Juliana, que foi criada pela mãe e pela avó, descobre que é filha de um coronel que foi torturador na Ditadura.
A ideia deste artigo, porém, não é debater o filme propriamente dito, mas suscitar duas questões que são importantes refletir. A primeira, que não aparece diretamente no filme, refere-se ao papel dos evangélicos na ditadura militar. Se defendemos a importância da memória como bandeira política do campo progressista contra as atrocidades realizadas nos anos de chumbo em nosso país – que ressoam até os dias atuais -, é justo resgatarmos a presença dos evangélicos na luta contra o regime autoritário. A teóloga feminista Angélica Tostes, em seu artigo Os evangélicos da libertação: um breve resgate, nos aproxima desse campo muitas vezes esquecido por parte da esquerda não-religiosa, nos lembrando das palavras de Rubem Alves de que a memória traz sempre algo de subversão.
Não é difícil encontrarmos referências católicas na luta contra a ditadura e na maioria das lutas por libertação na América Latina. No entanto, ainda que como minoria, o campo evangélico também esteve em marcha contra o Estado autoritário que seguia torturando e matando qualquer voz que ousasse questioná-lo. Muitos evangélicos foram vítimas do regime, como o metodista Anivaldo Padilha, na época estudante de Ciências Sociais da USP; após ser delatado por dois fiéis evangélicos, ele foi preso e violentamente torturado. Padilha inclusive produziu junto a Jorge Atílio Lulianelli (in memoriam), Luci Buff e Magali Cunha, o livro As Igrejas Evangélicas na Ditadura Militar: dos abusos do poder à resistência cristã (Alameda, 2022), no qual relatam as múltiplas ações desse grupo religioso a partir de documentos históricos, investigações acadêmicas e depoimentos diversos, o que nos ajuda a perceber que se trata de um grupo absolutamente heterogêneo. Também vale ressaltar a história de Manoel da Conceição, fundador do sindicato dos trabalhadores rurais em Pindaré-Mirim (MA) e membro da Igreja Pentecostal Assembleia de Deus. Manoel da Conceição se tornou uma liderança em seu território e por isso foi perseguido pela ditadura. Em uma ação policial, levou um tiro na perna e depois foi preso, tendo sua perna amputada por conta da ferida não tratada. Para além disso, foi vítima de todo tipo de tortura, com sequelas físicas e psicológicas que no entanto não o tiraram da luta. Manoel morreu em 2021, aos 86 anos e seguiu resistindo até o fim, denunciando as opressões da ditadura e atuando nas cooperativas que ajudou a criar.
Além dos tantos evangélicos desaparecidos, presos, torturados, houve aqueles que se silenciaram, contribuindo para que as atrocidades se mantivessem, ou aqueles que, como o pastor Zaqueu, personagem do filme, que por princípios éticos, humanitários e também religiosos, estiveram contra o regime autoritário, ainda que não vinculados ideologicamente à luta.
A segunda questão provocada pelo filme se refere às tantas aproximações entre a fé religiosa e a luta comunista. No longa, há um diálogo muito interessante entre Miguel e Zaqueu dentro da cela enquanto o sangue secava, em uma pausa da dor. Nenhum dos dois está muito aberto a compreender o livro do outro, no caso, o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, e a Bíblia, respectivamente. No entanto, em suas tentativas de convencimento, ficam claras estas aproximações. Zaqueu menciona que “a fé é a certeza daquilo que esperamos”. Nesse sentido, o que move um militante comunista, se não essa certeza? De fato, de concreto, essa nova sociedade justa e igualitária é um sonho ainda distante – em algumas conjunturas, quase tão distante quanto o Reino dos Céus-, entretanto, essa certeza é tão presente, tão palpável, que o militante coloca, no caso explícito de Miguel, a sua própria vida para a construção desse novo. Miguel, ao ser questionado sobre qual a sua fé, responde: “eu sou comunista”; essa é sua fé, aquilo que o move, que o apaixona, a mesma paixão que move Zaqueu quando diz que “a vida não é sobre certezas, é sobre o improvável”. O “improvável” de ambos se aproxima, é um futuro de justiça e sem o grito da tortura.
O peruano marxista José Carlos Mariátegui em seu texto O Homem e o Mito afirma que “a força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual”. Essa força, seja pelo céu ou pela terra, divina ou humana, é o que move os dois companheiros (ou irmãos?) de cela e que mesmo se referenciando aos seus dois livros para justificarem o que buscam, é algo que não conseguem explicitar, nem tampouco se contradizer. A Bíblia e o Manifesto ali, no absurdo da dor de Miguel e dos gritos que enlouquecem Zaqueu, não estão em luta, não podem estar. Além disso, há algo da vida concreta que os unem: na disputa entre o Jesus revolucionário ou o Jesus evangélico – aquele que, se por um lado esteve ao lado dos oprimidos, por outro não pegou em armas – Miguel, em sua pergunta, sentencia: “você acha que Jesus estaria de que lado nessa guerra?”. O silêncio de Zaqueu diz o lado que esse Jesus, evangélico ou revolucionário, estaria; neste ponto nenhum dos dois têm dúvidas.
Mariátegui, usando o termo Agonia, de Miguel de Unamuno, nos chama para a necessidade de nos re-encantarmos. Tanto os revolucionários marxistas quanto os cristãos revolucionários foram almas agônicas, em luta por esse re-encantamento (LOWY, 2005). Essa agonia revolucionária, para Mariátegui, se traduz também na superação do antagonismo entre fé e ateísmo, igualando a emoção revolucionária com a emoção religiosa. No filme, Zaqueu não é, como tantos foram, um cristão revolucionário, mas enquanto cristão e ser humano que presenciava as atrocidades sofridas por Miguel, se mostrou uma peça fundamental de solidariedade, uma peça não óbvia nesse processo. Miguel reconhece isso, dedicando seu livro de memórias ao futuro pastor.
Para Mariátegui, o que nos move, seres agônicos por justiça, é mais do que qualquer instituição pode limitar: é um sentimento profundo na busca por algo que ainda não se realizou e que teimosamente buscamos construir como necessidade vital. Nesse sentido, o marxista peruano amplia o conceito costumeiro de falar de religião e nos provoca ao afirmar que uma revolução é sempre religiosa, dialetizando, portanto, o materialismo e a religião, a mística revolucionária e a fé, os cristãos e os marxistas.
Nunca é demais resgatar nossa história tantas vezes contada pelos vencedores e não por aqueles que resistiram. Detalhar como foram os períodos sombrios da ditadura em todas as suas dimensões, assim como punir seus responsáveis, é algo que ainda nos desafia pelo fato de que sofremos as sequelas daqueles tempos até os dias de hoje. A memória ainda é um instrumento de resistência para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça, mas também para que nos provoque a ir além do óbvio; esse é o diferencial do filme. Obviamente estamos convencidos do papel da juventude estudantil e universitária, dos intelectuais, dos militantes dos partidos de esquerda, assim como dos cristãos revolucionários nos processos de resistência. Sabemos também do papel dos generais e torturadores, carcereiros, delatores nesse período. E quem mais? São tantos personagens a serem desvendados, tanto no silêncio cúmplice quanto na voz que salva e que liberta. Colocá-los na memória, como parte indelével dessa história, ainda é um desafio. Miguel, sensível a isso, traz uma importante lição: o que nos une muitas vezes pode ser bem mais forte do que o que nos separa.
Não posso terminar esse texto sem lembrar que no último dia 22 de abril completaram-se dois anos da partida do poeta, escritor, artista plástico e militante Alípio Freire que, assim como tantos companheiros e companheiras, cristãos ou não, foi preso e violentamente torturado nos anos de chumbo de nosso país. Após ter sobrevivido a todo este processo, em 2021 foi uma das milhares de vítimas do descaso do último governo, falecendo de Covid-19. Incansável na luta por uma nova sociedade, dedicou toda sua vida ao nosso povo e, entre risos e afetos, um dos seus grandes legados foi manter viva a memória de resistência dos que lutaram. Nosso velho comunista ateu deixou para nós sua imensa fé – no futuro, no improvável, na utopia da felicidade. Alípio queria mais e disse: “nós queremos o sonho, e como diria Calígula, nós queremos a lua, algo que seja aparentemente impossível, e nós teremos a lua”.
*Delana Corazza é pesquisadora do Instituto Tricontinental, Cientista Social (PUC-SP) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP).