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FuturoPesquisa sobre os Evangélicos e a Política

O tsunami pentecostal brasileiro

A explosão do número de fiéis pentecostais demonstra que tais igrejas vêm sendo capazes de responder a necessidades concretas /Crédito: Governo do Estado de São Paulo.

Por Marco Fernandes*

Não é exagero dizer que um dos fenômenos sociais mais importante da sociedade brasileira nas últimas três décadas é o quase inacreditável aumento do número de seguidores de igrejas evangélicas, com implicações que certamente transcendem o campo religioso e têm consequências culturais mais profundas. Tais quais os pães e peixes milagrosamente multiplicados por Jesus na famosa passagem bíblica, as igrejas evangélicas não param de crescer. Em 1990, de acordo com o censo oficial do governo (IBGE), elas eram frequentadas por 9% da população. Em 2000, já eram 15,4%. Em 2010, se tornaram 22,2%, e alguns respeitados institutos de pesquisa no país já estimam que o censo de 2020 deve indicar que mais de 30% do povo brasileiro se converteu a alguma das centenas de denominações que se espalham pelo território nacional, sobretudo nas periferias das grandes metrópoles brasileiras, onde vivem as classes populares.

Necessário dizer que esse crescimento evangélico avassalador é fruto, sobretudo, da expansão das igrejas pentecostais, cuja visão teológica, práticas litúrgicas e formas de organização têm feito todo sentido para a vida de milhões de brasileiros. Os evangélicos se dividem basicamente em dois grandes campos : 1) os evangélicos de missão ou protestantes históricos (luteranos, anglicanos, presbiterianos, metodistas, batistas etc.), igrejas tradicionais surgidas a partir da Reforma Protestante no séc. XVI em diante e 2) os pentecostais , cujo universo é muito heterogêneo e que, no país, se dividem em algumas grandes denominações (entre as principais estão a Assembléia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça Divina, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular etc.) e incontáveis pequenas denominações. No último censo, em 2010, os “evangélicos de missão” eram somente 4% da população, já os “pentecostais” eram 13,3% (e outros 4,8% se disseram somente “evangélicos”), mas as estimativas mais recentes calculam que mais de 20% da população já tenha se convertido ao pentecostalismo.

Mas o que explicaria uma mudança tão profunda no perfil religioso do povo brasileiro nas últimas três décadas ? Como em todo todo fenômeno social dessa magnitude, não há respostas simples e elas não cabem em um artigo curto. Mas aqui vão algumas hipóteses…

Evidentemente, a explosão do número de fiéis pentecostais demonstra que tais igrejas vêm sendo capazes de responder a necessidades concretas (de ordem subjetiva e objetiva) de parcelas cada vez maiores do povo brasileiro em tempos de neoliberalismo. Aliás, não deve ser coincidência o fato de que a implementação de políticas neoliberais no Brasil tenha sido inaugurada com o governo Collor, no inicio dos anos 90, e que seja justamente essa a década que marca a primeira grande guinada no aumento do número de fiéis pentecostais no país. É neste cenário psicossocial que se dá a ascensão das igrejas pentecostais, que pode ser entendida como uma tentativa da própria classe de lidar com os imensos desafios de sua vida cotidiana, qual seja : como sobreviver no Planeta Favela?

Não se pode perder de vista que o universo das igrejas pentecostais é muito heterogêneo e há diferentes formas de organizar os cultos e as próprias comunidades. Há igrejas muito ricas e espalhadas por todo o território nacional (algumas delas já se expandiram até para dezenas de outros países), que celebram cultos em igrejas suntuosas de grandes avenidas e contam com meios de comunicação próprios, formando a base de verdadeiros impérios econômicos (com empresas em diversos setores) administrados por pastores milionários com status de celebridades midiáticas.

Mas também há igrejas tão pobres quanto seus fiéis, que existem somente em seu próprio bairro, fazem cultos em pequenas garagens de casas pobres e cujos pastores se assemelham a lideranças comunitárias, conhecem a fundo cada um de seus fiéis e contam as moedas pra pagar as contas da igreja no fim do mês, inclusive seu modesto salário. A maior parte dos crentes, segundo o censo do IBGE, frequentam igrejas menores, que mais parecem associações comunitárias.

Podemos dizer que a grande virtude dos pentecostais é a sua capacidade de se organizarem sob a forma de comunidades. Em pleno neoliberalismo, um momento histórico de hegemonia de valores individualistas e privatizantes, de destruição do tecido social, no qual os indivíduos se sentem sozinhos e fragilizados diante de um sistema que parece indestrutível, sobretudo nas grandes cidades, talvez nada seja mais urgente e desejado do que fazer parte de uma comunidade. Essa é a base social de todo o suporte material e psíquico que a igreja é capaz de prover a seus fiéis. Qualquer instituição capaz de fazer o mesmo, há de mobilizar as massas.

Nos cultos, a comunidade é instituída e renovada a cada semana. Ao contrário da igreja católica e das protestantes históricas, com cultos bem formais e muitas vezes frios (correspondente a formas culturais da Europa Ocidental), os pentecostais foram hábeis em incorporar os elementos catárticos da religiosidade popular brasileira (algo presente no catolicismo popular, mas nunca absorvido pelo catolicismo oficial). Seus cultos são festas populares, repletas de músicas, danças e pregações de alta carga emotiva. É o espaço de lazer e de fruição estética, em bairros onde não há teatro, não há cinema, e há pouquíssima oferta cultural.

E quando a comunidade é abençoada com a presença do Espírito Santo, fiéis entram em estados de transe, falam línguas, anunciam profecias, curam os enfermos. Estes são chamados por muitos de “cultos de louvor”, de onde se sai de alma lavada, fortalecidos para encarar a dura realidade lá fora. Há ainda os “cultos de oração”, em geral durante a semana, mais reflexivos, nos quais os crentes são estimulados a compartilharem seus “testemunhos”. Um “antes” da igreja : vida despedaçada. Um “depois” da igreja : vida reconstruída. Quem ouve, acredita que pode mudar de vida. Quem fala, se sente especial, porque serve de inspiração. O pastor ajuda o grupo a elaborar a experiência a partir dos ensinamentos bíblicos. A comunidade fortalece seus laços e as pessoas adquirem esperança de dias melhores.

Nessas igrejas, a classe trabalhadora precarizada e empobrecida tem alguma chance de elaborar o trauma da humilhação que vem dos patrões, da mídia e do estado e, quem sabe, recuperar algo da dignidade que lhe é roubada numa sociedade marcada por quase quatro séculos de escravidão, agravados pela precarização da vida em tempos neoliberais. Porém, não sem contradições, já que muitos também sonham em ocupar o lugar do patrão, em enriquecer e ascender socialmente. Sonhos muitas vezes manipulados por pastores oportunistas e usados como isca para estimular gordas ofertas monetárias daqueles que tem muito pouco, mas que rezam para um dia ter muito. Afinal, o que esperar de uma sociedade cujos indivíduos raramente têm outro horizonte senão o de tentar vencer no mundo do mercado e das mercadorias ? Fortalece-se então a chamada “teologia da prosperidade”, apregoada por falsos profetas milionários, que ignoram os ensinamentos de Jesus e fazem apologia da riqueza e da ostentação. Há inúmeras contradições neste fenômeno e voltaremos a algumas delas adiante.

Estas igrejas são, portanto : espaços comunitários, lugar de festa, de beleza, de encontros, e, claro, de expressão da religiosidade popular. Onde há quem nos acolha em momentos de crise, nos escute e nos ajude a seguir lutando pela sobrevivência. Nas igrejas menores, pastores e pastoras, ou algum(a) assistente, costumam estar sempre disponíveis aos que mais necessitam. Se falta dinheiro ou comida em casa, há sempre uma cesta básica doada pela comunidade. Não é incomum conseguir emprego graças à indicação de uma irmã da igreja, algo tão decisivo no momento em que há 14 milhões de desempregados no país.

Três décadas de neoliberalismo também trouxeram consequências profundas para o estado psíquico da população. Segundo pesquisa publicada há alguns anos no famoso periódico médico The Lancet, os transtornos psíquicos são hoje, no Brasil, a maior causa de afastamento do trabalho e da vida social [1]. Outra recente pesquisa da OMS sobre transtornos de ansiedade mostrou que o Brasil é o país com o mais alto índice no mundo, pois cerca de 9% da população sofre com esse sintoma [2]. Não é à toa que o remédio mais vendido nas farmácias brasileiras é o clonazepan (23 milhões de caixas em 2015, sendo Rivotril a marca mais popular), um ansiolítico capaz de criar dependência em menos de 3 meses, mas cujo baixo preço facilita o acesso a um alívio imediato das crises cotidianas de ansiedade e garante o sono de quem precisa acordar cedo para trabalhar. [3] No entanto, tais comprimidos certamente não resolvem o problema, muito menos enfrentam as causas de tal ansiedade, que são as precárias condições sociais.

Quando a situação de um fiel é mais grave, pastores chegam a visitá-lo em sua casa, uma ou mais vezes por semana. São psicólogos populares. Para muitos, estas igrejas são espaços de cura da ansiedade, depressão, alcoolismo, e outros tantos sintomas dos sofrimentos do dia a dia. Penso que os pentecostais foram capazes de desenvolver uma espécie de psicoterapia popular, de razoável eficácia. Já perdi a conta de quantas vezes ouvi pessoas contando que procuraram a igreja pela primeira vez em momentos de crise psíquica, e por lá ficaram. Há diversos estudos demonstrando isso. Muitos chegam mesmo a se referir à igreja como uma “terapia”. Tendo em vista a conjuntura psíquica do país e a falta de acesso da maioria absoluta do povo a tratamentos, é uma benção poder encontrar, ali na esquina, um lugar que funciona como um pronto socorro de saúde mental .

Por outro lado, é evidente que tamanha capacidade de mobilização popular vem fomentando ambições políticas e econômicas de muitas lideranças religiosas, em geral afinados com ideias de direita, que enriqueceram graças às doações de seus fiéis e aos negócios que puderam abrir com o capital acumulado, adquirindo também algum poder político. Na política nacional, pastores e pastoras pentecostais vem conquistando cada vez mais votos e sendo eleitos por todo o país. A Frente Parlamentar Evangélica (FPE), que congrega membros da Câmara dos Deputados e do Senado, era composta por 56 parlamentares em 2007. Nas últimas eleições em 2018, 91 foram eleitos. Até agora, a FPE tem se notabilizado pela atuação agressiva no Congresso em torno de pautas conservadoras contrárias aos direitos das mulheres (principalmente aborto) e da população LGBT, aliando-se à Igreja Católica. Mas para além dessa pauta, dificilmente conseguem manter sua unidade nas votações.

Nas últimas eleições, foram um fator crucial na vitória do candidato da extrema direita à Presidência da República. Jair Bolsonaro obteve 70% dos votos dos evangélicos no segundo turno, o que significou 11 milhões de votos a mais do que o candidato da centro-esquerda (Fernando Haddad) obteve neste mesmo segmento (mais ou menos a diferença de votos entre eles). O católico Bolsonaro contou com apoio de alguns dos pastores mais famosos e explorou, de forma oportunista, um discurso conservador agressivo que agradava a boa parte do eleitorado pentecostal, mas também do católico.

Mas isso significa que o povo pentecostal é de direita ? Devagar com o andor, que o santo é de barro. Antes de Lula ser injustamente condenado e impedido de se candidatar em 2018, ele caminhava para vitória eleitoral com massivo apoio dos pentecostais. Os mesmos que ajudaram a elegê-lo duas vezes em 2002 e 2006 (respectivamente 60% e 53% dos votos no segundo turno), e que votaram para eleger Dilma em 2010 e 2014 (42% e 45%). Portanto, os pentecostais não são, em “essência”, de direita. Parecem sim ser mais volúveis no comportamento eleitoral.

Por outro lado, é verdade que também há uma imensa onda conservadora no país, de tentativa de resgate de supostos “valores da família tradicional” e do patriarcalismo, que parecem surgir como uma reação, de muitos pentecostais, mas também de muitos católicos (é importante lembrar), às novas demandas surgidas de vibrantes movimentos feministas e LGBTs. Tais setores conservadores têm demonstrado enorme dificuldade em aceitar a expansão de novas formas de sexualidades e, sobretudo, de direitos sociais reivindicados por esses grupos. Essa contradição vem sendo maquiavelicamente explorada por inúmeros pastores, cujo espaço na política tem sido construído a partir desta “batalha moral”. Em alguns casos, tem funcionado. Mas também há inúmeras pesquisas demonstrando que não há uma identidade absoluta entre as posições dos pastores e as de seus fiéis, que tendem a ser mais tolerantes.

Claramente, o pentecostalismo veio para ficar na sociedade brasileira. Dia a dia, vão construindo uma importante hegemonia cultural em amplos setores das classes populares, graças ao trabalho de base cotidiano que têm feito há décadas. As forças progressistas e de esquerda, se ainda apostam na transformação da sociedade, terão de encarar de frente esse fenômeno. Como espero ter sugerido acima, esse “tsunami cultural” tem algo a nos ensinar sobre as necessidades concretas das classes populares no Brasil contemporâneo.

*Marco Fernandes é é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Assembleia Internacional dos Povos. Bacharel e mestre em História Econômica (USP) e doutor em Psicologia Social (USP). Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientae e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.