Territorializar e racializar a pandemia
Por Stella Paterniani e Lauro Carvalho
Começamos hoje uma série de textos que abordarão experiências, questões e análises sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus nas periferias. Buscaremos priorizar temas que muitas vezes passam desapercebidos ou não são priorizados em muitos debates, bem como reforçar a rede de pesquisa, informação e produção de conhecimento comprometida com a vida das pessoas nas periferias. Entendemos este conceito tanto quanto periferias do sistema-mundo, o chamado Sul Global, como o Brasil, como as periferias dessas periferias: regiões e pessoas tornadas vulnerabilizadas por condições produtivas estruturais e conjunturais e que, no entanto, produzem suas vidas e seus modos de conhecer e de estar no mundo para além das urgências e da miséria do presente e do possível. Este texto, o primeiro da série, retrata a relação entre raça, território e as taxas de letalidade da Covid-19.
1. Territorializar e racializar a pandemia
Já faz mais de três meses que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil. No início dos casos, lemos e ouvimos considerações e análises de intelectuais que reforçavam como o vírus seria democrático, por contaminar qualquer pessoa, independente de sua classe social, raça ou gênero. Essa interpretação foi cedendo lugar a outra, conforme o vírus foi se alastrando: análises sobre como o vírus aprofundava e desmascarava ainda mais as desigualdades no nosso país. As vítimas da pandemia têm se concentrado nas periferias: seja o Brasil, periferia mundial; os estados do Norte e Nordeste do Brasil, periferias nacionais; e os bairros e regiões mais negras, vulnerabilizadas pela menor oferta de serviços públicos e estatais. Neste texto, nos basearemos especialmente em dados das Secretarias Estaduais de Saúde, que, mesmo apesar da imensa subnotificação por conta sobretudo da baixa testagem, nos indicam que, ainda que o vírus seja democrático em seu contágio, ele não o é na produção e distribuição de mortes. Iremos abordar duas dimensões fundamentais da desigualdade da distribuição de mortes por Covid-19 no Brasil: raça e território, e sua imbricação com a classe.
A formação social brasileira tem na colonialidade uma da suas principais marcas. Ela se expressa desde o colonialismo – com a plantation como modelo de ocupação e exploração da terra e com escravidão e monocultura para exportação – até a desigual concentração de terras e a organização de nossas cidades nos dias atuais. Um momento fundamental de nossa formação social e de atualização da colonialidade foi a institucionalização da propriedade privada, por meio do que muitos intelectuais chamam de nossa “acumulação primitiva”: a Lei de Terras de 1850. Com a posse da terra até então orientada pelo sistema das sesmarias, que envolvia concessão mediante uso da terra, a Lei de Terras implementa a obtenção da propriedade de terra mediante a compra. É nesse momento que porções de terras de todo o território brasileiro são leiloadas e vendidas. Vale lembrar que a abolição da escravidão ocorreria apenas alguns anos depois, em 1888. Sendo assim, quem é que podia comprar terras em 1850? Dizer que a Lei de Terras consolidou o latifúndio não basta: é preciso dizer que esse latifúndio é branco.
Essa desigualdade no acesso à terra segue se atualizando em nossas cidades. Dados do IBGE e da PNAD Contínua 2018 nos mostram que 13% de brasileiros, cerca de 27 milhões de pessoas, vivem em domicílios com pelo menos alguma inadequação, como ausência de banheiro de uso exclusivo, paredes construídas com material não durável, adensamento excessivo ou ônus excessivo com aluguel. Mostram-nos também que 35,7% da população brasileira, mais de 74 milhões de pessoas, vive em domicílios sem coleta de esgoto sanitário. A distribuição territorial desses dados também apontam como os estados do Norte e do Nordeste apresentam os piores índices. Tanto em relação às inadequações habitacionais como em relação à ausência de saneamento. As proporções registradas são maiores entre pessoas negras do que entre pessoas brancas, e são mais elevadas entre pessoas com menos escolaridade e com trabalho informal.
Se o fato do Estado ter possibilitado que os donos da terra no Brasil tivessem cor, não faltam políticas estatais que seguem reforçando as desigualdades no mais fundamental dos direitos: o direito à vida. Segundo o Atlas da Violência de 2019, produzido pelo IPEA, 75,5% das vítimas de homicídio no país foram pessoas negras. A pesquisa também mostrou que a taxa de letalidade entre pessoas negras subiu 33% na última década (2007 a 2017), enquanto entre pessoas brancas subiu 3,3%. Esses são apenas alguns números que nos revelam o que hoje intelectuais e militantes têm chamado de racismo estrutural na conformação da sociedade brasileira.
Na situação de pandemia, pessoas e territórios mais afetados são aqueles que já eram atravessados por condições estruturais de desigualdade – no caso brasileiro, marcados por raça e classe como fatores indissociáveis. É o que revela o estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio, que concluiu que pessoas negras sem escolaridade têm quase 4 vezes mais chances de morrer de Covid-19 do que pessoas brancas com ensino superior. De acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS são negros. Na periferia brasileira, a região Norte é a que tem apresentado as maiores taxas de letalidade, cerca de 10 vezes mais do que a região Sul, segundo o Ministério da Saúde. Os estados do Amazonas e do Pará são duas das três unidades da federação em que mais de 20% da população necessita de até quatro horas de deslocamento para chegar ao município mais próximo que ofereça condições de atendimento para casos graves de Covid-19.
A cidade de São Paulo foi o grande epicentro da pandemia, concentrando, até agora, mais de 75 mil casos1. Apesar do alto número de casos, a letalidade na cidade é de 6,5%, pouco acima da média nacional, de 5,19% (dados da consulta à plataforma Brasil.io a partir dos informes das Secretarias Estaduais de Saúde. Esse número, no entanto, mascara a desigualdade da distribuição de mortes na maior e mais populosa cidade do Brasil. Até o início de junho, Brasilândia, bairro da zona norte da cidade de São Paulo, era o mais atingido do país pela Covid-19, com 5.479 casos suspeitos da doença e mais de 156 mortes até 2 de junho. Em 18 de junho, a letalidade em Sapopemba, bairro da zona Leste da cidade, ultrapassa a da Brasilândia com 300 mortes, ante os 277 óbitos do bairro da zona norte. Alguns bairros da Zona Sul apresentam números bastante próximos e preocupantes, como o Grajaú, com 267 mortes, o Jardim Ângela, com 240, e o Capão Redondo, com 237.
Esses bairros têm algumas coisas em comum: são periféricos e concentram uma população de pessoas autodeclaradas negras (isto é, autodeclaradas pretas ou pardas) muito maior que a média do município (32,1%). De acordo com o Mapa da Desigualdade, elaborado pela Rede Nossa São Paulo em 2019, 41,7% dos moradores de Sapopemba se autodeclaram negros; esse percentual na Brasilândia é de 50,6%; Grajaú, 56,8%; Jardim Ângela, 60,1%; e Capão Redondo, 53,9%. Na Brasilândia, a proporção de leitos hospitalares é de 0,01 para cada 1 mil habitantes – inferior à recomendada pela Organização Mundial da Saúde (2,5 a 3,0). O tempo de espera para uma consulta com um médico clínico geral é o segundo maior da cidade.
O mapa abaixo mostra como aglomerações – como nos transportes coletivos para deslocamento – são elementos fundamentais para a disseminação do vírus. Ainda que a escala do mapa seja nacional, sabemos que aglomerações e deslocamentos se expressam também nas escalas municipais para o contágio pela Covid-19. Ambos os elementos estão presentes nas periferias. Os moradores das periferias são, em alto número, empregadas domésticas que continuaram pegando metrô para chegar às casas de suas patroas; técnicas de enfermagem negras que também seguem se deslocando para o trabalho, muitas vezes trabalhando sem EPIs; entregadores de aplicativos que rodam a cidade em bicicletas alugadas e ganhando, em muitos casos, menos de R$ 5,00 por dia de trabalho. Parte da periferia é que mantém a possibilidade do isolamento social funcionar: são os trabalhadores destes locais que compõem muitos dos chamados serviços essenciais, como destaca em entrevista Preto Zezé, da Central Única de Favelas (CUFA).
O conjunto desses dados nos revela que, se o coronavírus tem na sua rápida transmissibilidade um dos motivos de sua alta letalidade, a qualidade do atendimento médico e o acesso à saúde se torna um dos fatores que ameniza o número de mortes. Embora a Covid-19 tenha chegado ao Brasil de avião, pelos bairros elitizados e corpos brancos, vemos como em regiões mais brancas e com mais infraestrutura o percentual de mortes é menor do que nas periferias negras. Para além das grandes capitais com seus números ultrapassando as marcas de dezenas de milhares de casos, e considerando a região Norte como a mais afetada, uma análise mais aproximada nos permite observar que a letalidade e a concentração de casos tem sido mais alta em três tipos de territórios.
Primeiro, nas periferias das cidades e de regiões metropolitanas, como os já citados bairros da Brasilândia e de Sapopemba, em São Paulo. É o caso também das cidades de Osasco e Guarulhos (SP), com mais de 5 mil casos em cada região, e taxas de letalidade de 8% e 10%, respectivamente. Algo semelhante acontece na região metropolitana de Belém, no Pará, na cidade de Ananindeua, com mais de 4 mil casos e uma taxa de letalidade de 8%. (dados da consulta à plataforma Brasil.io a partir dos informes das Secretarias Estaduais de Saúde em 29/06/2020)
Os municípios pequenos, com até 50 mil habitantes, são o segundo tipo de território mais afetado pela pandemia em termos de percentual de letalidade. São municípios com precário acesso a serviços públicos essenciais, seja na zona urbana ou na rural, e afetados pela interiorização da doença, que chegou a cada estado da federação pelas capitais e cidades maiores. Pernambuco é um estado que tem tido uma interiorização muito intensa, com 182 de seus 184 municípios com casos de covid-19 e alta taxa de letalidade. Os municípios de Ribeirão e Aliança, ambos na zona rural, com 47 mil e 30 mil habitantes, respectivamente, contam com quase 100 casos de Covid-19. À primeira vista, é um número pequeno de casos, se comparado às dezenas de milhares de casos em capitais como Rio de Janeiro e Recife, ou mesmo se olharmos os números absolutos em outros municípios do estado, como Cabo de Santo Agostinho, com mais de 700 casos confirmados; Vitória de Santo Antão, com mais de 600; e São Lourenço da Mata, com cerca de 500. Nessas, a taxa de letalidade já é pelo menos o dobro da média nacional: entre 12% e 15%, o que já indica uma situação dramática. Mas nas cidades pequenas, as taxas de letalidade são altíssimas. Em Ribeirão e Aliança, a letalidade é de mais de 30%. (dados da consulta à plataforma Brasil.io a partir dos informes das Secretarias Estaduais de Saúde em 9/06/2020).
Se por um lado há poucos casos em números absolutos nessas cidades (geralmente até uma centena), por outro, há muitas mortes proporcionalmente ao número de casos. Glória do Goitá, também em Pernambuco, município de pouco mais de 30 mil habitantes, já conta com 95 casos e 16 óbitos. Os números dos estados do Ceará e da Paraíba também indicam esse mesmo padrão de interiorização da doença e alta taxa de letalidade em municípios pequenos com precário acesso a serviços públicos, como é o caso de Santana do Acaraú (CE): uma cidade de 30 mil habitantes, próxima a Sobral, com 41 casos e 12 óbitos, ou seja, uma letalidade de quase 30% (dados da consulta à plataforma Brasil.io a partir dos informes das Secretarias Estaduais de Saúde.
O terceiro tipo de território dos mais afetados pela pandemia são as prisões. O complexo prisional da Papuda, no Distrito Federal, concentra quase 50% dos casos de Covid-19 do sistema prisional brasileiro. Considerando que a população encarcerada na Papuda é de cerca de 15 mil pessoas, e que já há mais de mil casos de coronavírus confirmados entre presos e agentes penitenciários, temos um percentual de 6,6% da população naquele local contaminada. Além do Distrito Federal, prisões em Rondônia, Santa Catarina e Rio de Janeiro tem vivido situações alarmantes de aumento de casos. O Conselho Nacional de Justiça tem recomendado a soltura de presos, e essa recomendação foi reforçada em 12 de junho, diante do aumento de 800% dos casos de coronavírus em presídios de maio para junho. Sabemos como as prisões no Brasil encarceram a população negra e a população branca pobre, como nos revela o último relatório da PNAD, que afirmou que, em 2017, mais de 60% dos presos brasileiros eram negros, em um país em que 51% da população se autodeclara negra.
A segregação racial, o racismo e a necropolítica como política de Estado – isso é, produção de morte racialmente orientada – não são novidades em nosso país. É preciso insistir em racializar o modo como olhamos para as relações sociais no Brasil, o que inclui o nosso olhar para uma das principais marcas da desigualdade brasileira: o acesso à terra, seja para plantar, seja para morar. Seja no campo, seja na cidade. O racismo estrutural também se expressa no modo como diferentes corpos ocupam de maneira desigual as cidades para morar, trabalhar e se deslocar. E os números da pandemia, novamente, têm escancarado essas desigualdades. Nesse contexto da pandemia, em que a máxima “Fique em casa” tem sido repetida à exaustão, o que nossa história nos mostra é que alguns corpos não estão seguros nas suas residências. Pelo contrário: existem pessoas para quem a máxima “fique em casa” consiste em ameaça à vida, seja porque são assassinadas pelo Estado em suas casas, seja porque têm sofrido com políticas de remoções. E essas pessoas têm corpos, cor, raça, classe.
Neste primeiro texto, buscamos trazer alguns elementos para argumentar sobre como as periferias no Brasil são definidas e marcadas pelo racismo estrutural e por uma relação intrínseca entre raça e classe. Os impactos da pandemia escancaram esses marcadores e produtores de desigualdade, com as altas taxas de letalidade concentradas na região Norte do Brasil, nas periferias de regiões metropolitanas e de grandes cidades, em cidades pequenas com pouco acesso à infraestrutura e a serviços de saúde e, portanto, com pouca possibilidade de atendimento e diagnóstico, e nas prisões. Formamos nosso argumento a partir da análise de dados disponibilizados pelas Secretarias Estaduais de Saúde, por coletivos e redes de pesquisa, notícias da mídia, em especial a Alma Preta, por entrevistas com lideranças comunitárias e por nosso comprometimento com uma produção de conhecimento que questione as narrativas hegemônicas e homogeneizantes, tanto do capital quanto da branquitude, sobre nossas cidades e os efeitos da pandemia.
1 Uma territorialização dos casos da cidade de São Paulo pode ser consultada nesta plataforma, elaborada pelo LabCidade, da FAUUSP, a partir de informações do Ministério da Saúde, que destaca a importância de de se pensar estratégias de prevenção e combate à covid-19 bairro a bairro, rua a rua, a partir dos focos de disseminação.