Quando a fé encontra a luta: as vozes das mulheres evangélicas do MST – Parte 1
Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política
Por Angelica Tostes e Delana Corazza
Essa é a primeira parte de uma série de quatro textos que nascem a partir da escuta de 15 mulheres evangélicas¹ que fazem parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os quatro textos, que serão publicados semanalmente, são frutos de entrevistas realizadas durante o primeiro Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra, realizado em março de 2020. A partir dessa experiência e de seus aprendizados, buscaremos elucidar a ideia de que a fé evangélica e os movimentos populares podem se unir na luta por terra, justiça e dignidade, mesmo com possíveis contradições. Para compreender melhor a relação gênero, religião e MST, foram realizadas quatro entrevistas com dirigentes do movimento de diferentes regiões do país. O caminho a ser trilhado nessa série se iniciará com o resgate da memória mística do MST desde sua fundação, para compreendermos como a religiosidade popular sempre esteve presente nos movimentos populares e influenciaram a sua constituição, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o próprio MST, entre outros. A partir desse resgate histórico, abordaremos a trajetória das mulheres sem terra dentro do movimento, sua luta antipatriarcal e o primeiro Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra. Ainda nessa primeira parte, traremos reflexões sobre o atual cenário religioso no Brasil e como as mulheres são protagonistas deste cenário.
Não queremos, nessas reflexões, estereotipar e tampouco concluir o que é a mulher evangélica do MST, mas refletir sobre as possibilidades de diálogos entre fé e luta, tão presentes na história latino-americana e do Movimento Sem Terra. Nas falas, encontramos deuses diversos, uma fé plural que impulsiona a luta, negociações internas para que a espiritualidade e o movimento social se unam em um só corpo e uma abertura para repensar as categorias de gênero a partir do contato com o MST. Quais as potencialidades e limites dessas múltiplas identidades que se sobrepõem?
A mística do MST: Teologia da Libertação
A luta e a fé popular caminharam juntas na fundação do MST e no desenvolvimento da Teologia da Libertação, movimento religioso que surge na América Latina como resposta das diversas organizações populares formadas no período de avanço da industrialização, em que a massa camponesa se proletariza, aprofundando as desigualdades sociais estruturantes de nosso continente. A década de 1970 consolida essa nova teologia, que será suporte para que as organizações populares, a partir da leitura de um Jesus histórico, construíssem suas práticas na luta contra as injustiças e pela libertação do povo pobre e oprimido.
A partir do avanço dos trabalhos pastorais, surge em 1975 a CPT na cidade de Goiânia (GO), com a tarefa de organizar as lutas do campo optando radicalmente pelos pobres e uma leitura política da Bíblia, entendendo a justiça, o amor e a liberdade como alimento de suas ações. A CPT é a semente plantada nas terras férteis dos campos de nosso país e será pelas suas articulações e pelas lutas no Sul do Brasil que nascerá MST². João Pedro Stedile, em entrevista ao professor Bernardo Mançano realizada em 1998, chama atenção sobre esse nascimento:
Bernardo: Podemos dizer que o MST nasce das lutas que já ocorriam, simultaneamente, nos Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul?
João Pedro: Certo, é uma constatação histórica. Agora há um segundo elemento muito importante na gênese do MST. O primeiro aspecto, como vimos, é o socioeconômico. O segundo é o ideológico. Quero ressaltá-lo porque é importante na formação do movimento. É o trabalho pastoral principalmente da Igreja Católica e da Igreja Luterana. (Stédile e Fernandes, 2012, p. 21)
O corte teológico de construção da justiça social na terra será determinante para a luta camponesa. O papel da organização do campo na conquista da terra – e não mais a espera pela justiça divina – será caldo para uma nova leitura e conscientização da realidade, apoiados também em leituras marxistas. O surgimento do MST só foi possível a partir dessa organização, que culminou na luta concreta pela terra fundada em uma nova visão de mundo, ao se desconstruir a visão mágica das desigualdades e colocar o povo como sujeito de sua própria história.
A ligação umbilical entre as lutas do cristianismo popular e o MST constitui órgão vital para “as referências, simbologias e práticas de origem crist㔳 dentro do Movimento. Para Marco Fernandes, pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, o uso da palavra “mística”, que tem o significado de “mistério” e é historicamente ligado à religiosidade, pode ser compreendido como “algo que percebemos, sentimos, mas não necessariamente ‘entendemos’ fazendo o uso da razão”[4]. Nesse sentido, é difícil definirmos aqui o que seria a “mística” que envolve todas as ações do MST – seja no início de uma reunião, de uma assembleia, nos espaços de formação e nas ocupações. A mística, como momento, é uma lembrança cotidiana e concreta que alimenta a luta e faz compreender o motivo dessa luta, se abastece da história, da arte e cultura do nosso povo, mas não se trata apenas de um momento específico; ela envolve todas as ações do MST – está presente nos símbolos, na construção estética, nos valores, nos alimentos plantados, colhidos e compartilhados.
Essa mística laica, esse milenarismo profano, são apresentados nos rituais, nos textos, nos discursos e na formação política dos militantes dos movimentos. Eles representam um tipo de investimento da “energia crente” dos militantes na utopia revolucionária do MST. [5]
A mística do MST se mistura com as místicas das espiritualidades dos companheiros e companheiras que constroem o movimento. “Estes elementos […] animam e dão mais força para lutar, ao conformar e fortalecer vínculos entre os integrantes do MST e criar uma identidade coletiva que foi fundamental para seu avanço político e organizativo”[6]. Lucineia Freitas, do Setor de Gênero do MST/RJ, observa que a base do movimento é fortemente religioso. Nos assentamentos há a presença de igrejas católicas e evangélicas, porém, se nos acampamentos pelo Brasil (mesmo que em risco de despejo) porventura não tiver, as pessoas saem, de alguma forma, em busca da espiritualidade. Em entrevista ao Instituto Tricontinental, Lucineia diz:
Nas jornadas de luta, a gente sempre tem celebração, prezamos a celebração na perspectiva ecumênica, ou macro ecumênica. […] se você pegar a programação dos grandes eventos do MST, sempre tem religiosos e religiosas, atos religiosos e ecumênicos, não tem uma atividade nacional ou estadual que não tem atividade relacionada à religião.
Atiliana Brunetto, da direção nacional do MST, pontua a relação da mística religiosa e o povo: “nós perdemos um pouco esse processo e acho que isso fez nos afastar um pouco, e agora a gente volta a ter esse debate da religião”. Nessa retomada da discussão das religiosidades populares é impossível não pensar nas mulheres que constroem a luta e a fé no cotidiano da vida. Uma fé, que Atiliana pensa da seguinte forma:
Essa fé vai me fazer acreditar nas potencialidades da minha capacidade e que não estou sozinha. Faz acreditar mais nas pessoas – eu, acreditar em mim mesma e é muito além de um modelo único de ser, mas respeitando todos os processos das pessoas. Ela não me torna individual, me torna um ser coletivo que necessita dos outros para sobreviver.
“Ser uma mulher Sem Terra é ser mulher liberta”; a luta das Mulheres Sem Terra
Somos mulheres, somos guerreiras, não naufragaremos!
Seremos um mar de bandeiras.
A luta das mulheres do MST se faz nas resistências de um patriarcalismo estruturante que permeia as relações cotidianas e institucionais. Mulheres que por meio do MST ressignificam suas trajetórias muitas vezes marcadas por violências de gênero, divórcios e relações abusivas. Elas buscam também novos sonhos, uma vida melhor para suas famílias, construindo novos saberes e culturas e conquistando um espaço para viver e trabalhar [7]. Dulcinéia Pavan aponta duas fortes motivações para que as mulheres ingressam na luta do MST: a primeira delas é a perspectiva da conquista da terra, do sonho de uma vida de tranquilidade e fartura; a segunda é a perspectiva de uma saída da situação vivida, seja na cidade ou no campo, que o MST possibilitaria. [8] Para a dirigente Atiliana, as mulheres politizam o que vivem no cotidiano; o que antes era um sonho distante, vira luta contra os sistemas opressores: “A gente tem uma frase que as mulheres não vêm para a luta se elas não compreendem. Quando elas compreendem a ação desse sistema na vida delas, elas vêm (ao MST) e não saem.”
Claro que ao entrar no movimento não significa que elas estarão livres de contradições, afinal a luta se fez (e se faz) também dentro do MST e suas estruturas. Hoje é possível encontrar muitas mulheres na direção e coordenação do MST, mas nem sempre foi assim. A partir dos anos 1990 houve uma maior preocupação com as mulheres dentro do movimento e foi criado o Coletivo Nacional de Mulheres do MST. “O reconhecimento da necessidade de participação das mulheres no MST é fruto de um processo complexo e contraditório ainda em andamento” [9]. Os desdobramentos desses processos renderam produções de cartilhas e livros, como “A questão da mulher no MST” (1996), “Compreender e construir novas relações de gênero” (1998), “Mulher sem terra” (2000) [10]; a criação do Setor de Gênero a partir do Encontro Nacional do MST dos anos 2000 desaguou no 1° Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra, realizado em março de 2020 em Brasília, que contou com cerca de 3500 mulheres.
Seremos 3000 mulheres, vindas dos 24 estados onde estamos organizadas pelo Movimento e mais aproximadamente 500 convidadas. Esta será uma grande atividade de nosso Movimento, que tem caráter organizativo, formativo, de unidade e de luta, entendida como os resultados de um processo de trabalho de base, trocas de experiências, intercâmbios, construção de unidade com outras mulheres do campo popular e fortalecimento do nosso 08 de março. [11]
Esse Encontro e as tantas vozes e corpos de mulheres evangélicas nos permitiu elementos para a construção dessa reflexão: o encontro da fé com a luta e da luta com a fé.
“Conheci muitas mulheres, com vozes diferentes, com pensamentos diferentes, linguagens diferentes, mas um propósito só”; o Encontro
Em março de 2020, nós fomos ao 1° Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra cumprir a tarefa de conversar com as evangélicas presentes. O Encontro foi marcado pela mística, pela arte e cultura das mulheres do MST, pelas diversas atividades de formação, pelos espaços de cuidado e autocuidado, pelas lutas em marcha e pela ocupação do Ministério da Agricultura, denunciando as ações do atual governo em relação à terra, agricultura e economia.
Imersas na mística, buscamos esses contatos com as dirigentes dos estados e nos locomovemos de canto a canto para encontrá-las no meio do som alto das falas e canções. Paramos e respiramos enquanto elas dividiam parte tão importante de suas histórias. Nesse contexto, ainda que nosso papel de pesquisadoras fosse o motivo de nossa presença, fazíamos parte de um enorme coletivo de mulheres. Foi possível, enquanto companheiras, conversarmos com diversas mulheres que carregam tão fortemente a marca da fé e da luta em suas vidas. O fato de estarmos juntas, imersas nesse espaço, fez com que as conversas fossem fluidas, permeadas por esperança, contatos e olhares cúmplices – algumas vezes inundados.
“o que a gente vive aqui é a humildade, você olha e vê as pessoas realmente como elas são. (…) As pessoas colocam o coração para se dedicarem ao conhecimento. (…). Eu aprendi muito nesses dias que estou aqui, é tudo tão rápido como se montam as oficinas e eu penso ‘meus Deus, que coisa mais linda!’, as fotos, o cabelão daquela mulherada com aqueles laços, então você vê cultura, tudo que tem de bonito. (…) Você luta e vai abrir caminhos, o MST é uma conquista para mim, muito lindo. A gente tá aqui e tá participando de uma festa maravilhosa. (Rosana – Assembleia de Deus – acampamento rio Negrinho – SC)
A identidade dessa Mulher Sem Terra se fez presente em todo o Encontro, desde a organização dos ônibus percorrendo as dimensões continentais de nosso país, dormindo e acordando juntas durante cinco dias, ao simples ato de comer, se formar e dançar. O longo percurso, permeado de músicas e palavras de ordem, foram alimentando o que seria esse grande momento. Os diversos formatos de olhos, as diversas texturas de cabelo, as diversas cores e as tantas e tantas falas e seus sotaques, assim como os cheiros e cores das comidas, demonstraram a dimensão do Encontro. As refeições eram espaços não só de alimento, mas também de memórias e histórias divididas a partir de experiências tão distintas que, ainda que conectadas pela luta, traziam suas especificidades regionais e culturais, tão marcadas em nosso gigante país. O sentimento de Andréa, do acampamento Leonir Orback, em Santa Helena de Goiás, e membra da Assembleia de Deus, é expresso quando diz: “Estou muito feliz de estar aqui! Conheci muitas mulheres, com vozes diferentes, com pensamentos diferentes, linguagens diferentes, mas um propósito só. Não falam todas iguais a mesma coisa, mas tudo significa a mesma coisa!” Essas histórias e sentimentos estavam expostos por meio das cartas que 200 militantes enviaram, fruto da organização e mobilização para o Encontro:
“[…] Ser uma mulher Sem Terra é ser mulher liberta, emancipada, valente, bonita, alegre. É ser uma mulher que chora, que sente dor própria e da outra e do outro, mulher com pertença, enaltecida, solidária. O MST me fez mulher, me fez um ser harmônico, que tem orgulho de viver. E tudo isso e um pouco mais é o que a cada dia me fortalece para seguir firme e convicta de que estamos do lado certo da história”. [12]
A luta foi a possibilidade de um reencontro consigo mesma e elaboração de tantos traumas sofridos a muitas mulheres. Mas como veremos, a luta não é o único espaço de refúgio e reorganização da vida destas trabalhadoras. A fé, tão imbricada na história do nosso povo, também tem sido alimento para a superação das mais diversas violações sofridas pelas mulheres empobrecidas de nosso país. Luta, fé e mulheres; três palavras que se confundem, que convergem, que se contradizem, e que podem ser expressa na frase da companheira Maria Lurdes: “Eu acredito que Deus me ajudou, através do MST, a conquistar minha terra.”
“Companheira me ajuda, que eu não posso andar só, eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”; ser mulher evangélica e ser mulher evangélica no MST
É inegável a força do cristianismo no Brasil e, como Pierucci aponta, nas últimas décadas, o trânsito religioso mais comum é o “converter-se de católico em protestante” [13]. A pesquisa do Datafolha de 2016 corrobora com o comentário do sociólogo, ao apontar que 44% dos evangélicos já foram católicos. Os dados do IBGE demonstram que a pertença católica declinou nos últimos anos, de 83,3% em 1991 para 64,6% em 2010. Nesse mesmo período, o movimento evangélico evoluiu de 9% para 22,2% (IBGE, censo demográfico de 2010). Pode-se dizer que esse crescente evangélico se deu por conta da difusão do pentecostalismo no Brasil, e que desde o último censo, com o decrescente de membros de igrejas protestantes históricas, representam 60% dos evangélicos [14].
Em janeiro de 2020, o Datafolha [15] lançou o resultado de uma pesquisa realizada entre 5 e 6 de dezembro de 2019, com 2.948 pessoas entrevistadas de 176 cidades por todo o país acerca da fé evangélica. Embora o rosto midiático do movimento evangélico seja de homens brancos raivosos, o rosto evangélico, apontado pela pesquisa, é a face de uma mulher negra, visto que 58% dos evangélicos são mulheres, entre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como negra.
Importante o dado que “as mulheres não são um grupo social unitário, mas antes, são grupos fragmentados e fraturados pelas estruturas de raça, classe, afiliação religiosa, sexualidade, colonialismo, idade e saúde”. [16] Cada uma dessas linhas da interseccionalidade costuram diversas formas de ser mulher e de ser mulher evangélica.
Ser mulher no nosso país não é uma tarefa simples. Renata Bugni, pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, relata que no primeiro semestre de 2019 os índices de violência contra as mulheres aumentaram consideravelmente no Brasil liderado por Bolsonaro. Em São Paulo, o número de feminicídios aumentou cerca de 44% do que no ano anterior. A pesquisa de Valéria Vilhena demonstra que 40% das mulheres vítimas de violência da Casa de Acolhimento Sofia, em São Paulo, são evangélicas (2011). “Em um país em que a cada 4 segundos uma mulher é agredida, o investimento em políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres caiu de R$ 119 milhões em 2015 para R$ 5,3 milhões em 2019. As mulheres negras são as mais atingidas por essa realidade: enquanto a taxa de homicídio contra mulheres brancas se mantém, a das mulheres negras cresceu na última década.” [17]
Eu me ajuntava com homem, aí apanhava dos homens, aí largava por que não tinha jeito, aí eu trabalhava muito e casa alheia, aí eu fui perdendo o gosto, o jeito de viver, teve um tempo que eu fiquei arrasada, nada estava dando certo, quando foi um dia, eu fiquei louca, louca, louca, meu irmão correu atrás de mim tudo e eu louca, mas graças a deus eu fiquei boa e disse para ele que nunca mais fazia vergonha para ele. (Fátima, Assembleia de Deus, MST-MA)
Quando pensamos na classe trabalhadora evangélica, em sua maioria estamos falando de mulheres e negras que buscam na religião – em Deus – forças para continuar, para sair de situações de violência doméstica, cuidar dos filhos e filhas, pois muitas vezes são chefes de família. Não poupam esforços para ir à igreja, “buscar a benção”, colocar o nome de alguém para receber oração, serem ungidas para construírem resistência e comunidade. Como diz a companheira Francisca (Assembleia de Deus), de Goiás: “o círculo de oração, a gente bota todos os nomes das pessoas que estão ao redor de nós e aquelas que estão longe, sofrendo, inclusive a gente bota até o Movimento Sem Terra nas nossas orações”. Também buscam nas igrejas um alívio das opressões, como a precarização dos direitos trabalhistas, o machismo e racismo. A teóloga Ivone Gebara nos auxilia nessa compreensão:
A forte presença feminina é devida à fragilização crescente das mulheres pelo sistema capitalista atual, altamente desagregador. Muitas buscam no consolo imediato que uma celebração religiosa pode dar alguma força para enfrentar os problemas do dia a dia. Entretanto, esse consolo imediato, na maioria das vezes, reduz as mulheres a seu papel doméstico e reforça a reprodução de um modelo de dominação masculina a dominação dos pastores ou padres. [18]
Por inúmeras vezes, a religião cristã (abarcando católicos, protestantes e pentecostais de diversas ondas) é instrumento de opressão das mulheres na sociedade. A ideia da mulher como algo de menor valor pode ser encontrada nos escritos teológicos dos “pais da igreja”, sendo então um pensamento fundante da cristandade. Como bem pontua Sandra Duarte de Souza, “historicamente, as religiões não têm protagonizado mudanças sociais no que se refere à superação da noção de subordinação feminina”. [19]
Entretanto, é possível ver algumas fissuras e ambiguidades; a irmãzinha que é oprimida em seu lar, e até por discursos religiosos, têm uma importância na comunidade porque é profetisa, mulher de oração forte. Após essa mudança da base social a formas de cristianismo pentecostais, as mulheres começaram a ganhar espaços na igreja, ainda que ambivalentes. Os discursos da moral, controle do corpo, submissão, continuam. Entretanto, como veremos mais à frente, há um certo protagonismo das mulheres, além da igreja ser um espaço de socialização, acolhida e novos aprendizados. Ao falar das mulheres evangélicas do MST, é importante destacarmos os múltiplos fatores da análise, compreendendo que as identidades se deslocam, se misturam e criam novas possibilidades de ser no mundo como mulheres evangélicas e militantes.
A jornalista Magali Cunha [20] aponta como o fundamentalismo religioso latino-americano criou raízes principalmente nas camadas populares, sendo que o papel da mulher na família e o controle sobre seus corpos tem destaque central contra as pautas progressistas. Na próxima semana abordaremos como as mulheres do MST enxergam e vivenciam, a partir de seus corpos, a igreja em seus múltiplos aspectos: comunitários, espirituais, rede de apoio familiar. Sabemos que para a classe trabalhadora, e principalmente para as mulheres trabalhadoras, a Igreja é um espaço de refúgio e acolhimento contra as mais variadas opressões que vivenciam historicamente. Esse espaço tão necessário para essas mulheres não está imune às contradições e opressões. No entanto, como isso se dá na vida cotidiana das mulheres sem terra? Como vivenciam as tantas possibilidades de luta e fé e suas contradições?
¹ Os nomes das entrevistadas foram trocados
² (MORISSAWA, 2001, p. 105)
³ FERNANDES, 2010, p. 175
4 FERNANDES, 2010, p. 175
5 Lowy, 231
6 FERNANDES, 2010, p. 175
7 (PAVAN, Dulcinéia, 1998, p. 28)
8 (Idem, p. 36)
9 (GONÇALVES, 2009, p. 200)
¹° Disponível em <http://www.landless-voices.org/vieira/archive-05.php?rd=MSTPUBLI109&ng=p&sc=3&th=45&se=0#12 > Acesso em < 08 de set de 2020 >
¹¹ Orientações políticas e práticas, p. 05
¹² (Carta de Missilene ao encontro)
¹³ (Pierucci, 1997a, p. 259-260)
14 (MACHADO, BURITY, 2014)
15 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/cara-tipica-do-evangelico-brasileiro-e-feminina-e-negra-aponta-datafolha.shtml > acesso em < 02 de set de 2020 >
16 (FIORENZA, 2005, p. 24).
17 (BUGNI, 2020, disponível em: https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/as-vozes-das-mulheres-em-luta-no-sul-global/)
18 (GEBARA, 2006, p. 306)
19 (SOUZA, 2007, p. 19).
²° CUNHA, 2020
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