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Geopolítica e soberaniaObservatório da Defesa e Soberania

Soberania Popular em três tempos  

Um projeto popular nacional exige a superação da vulnerabilidade estrutural e das pressões e ameaças em diversos setores.

 

Por Ana Penido e Olívia Carolino 

 

Diante da trágica retomada da ofensiva do Imperialismo sobre os povos que insistem na sua autodeterminação – particularmente na América Latina – e da farsa do Estado que se levanta contra a Nação, a soberania popular é uma condição fundamental para um projeto de país.

Neste 3 de outubro, a Petrobras, símbolo de enfrentamento aos interesses do Imperialismo e uma conquista do povo brasileiro em torno da bandeira de luta “O Petróleo é nosso”, celebra seu 67° aniversário. Depois de tantos anos, vemos a retomada sistemática de um conjunto de medidas que afrontam a soberania nacional desde o golpe de 2016, como a entrega de empresas públicas estratégicas, a desindustrialização e desemprego em massa, a destruição da Amazônia, a privatização da educação e saúde, os “tarifaços” nos alimentos e demais serviços públicos, como luz, água, gás de cozinha e combustíveis, e a transformação do Brasil em um vassalo dos Estados Unidos.

Com a finalidade de contribuir com os atos em “Defesa da Soberania e contra as privatizações”, organizamos alguns pontos que ajudam a refletir sobre a soberania popular em três tempos: no primeiro, abordamos 10 afirmações sobre o conceito “soberania” e o entendimento político do termo “Soberania Popular”; já no segundo, apontamos 10 considerações sobre a soberania no Brasil e, por último, levantamos outras 10 provocações sobre os ataques à soberania brasileira pelo governo de Jair Bolsonaro.

 

O conceito de soberania e a soberania popular

1. Em uma primeira aproximação, podemos dizer que o significado de soberania é supremo poder. No senso comum, a ideia de soberania está ligada ao território de um Estado, especialmente às fronteiras, ou a de um poder absoluto acima dos demais. A forma como empregamos os termos Estado e soberania surgem concomitantemente no final do século XVI, quando o Estado moderno se impõe sobre a organização feudal. Esse processo é caracterizado por uma enorme concentração de poder, reunindo o monopólio da força num determinado território e sobre sua população. Esta movimentação se desenvolve de duas formas: para dentro, com o monopólio do poder e da força atribuído ao Estado, que tem como responsabilidade garantir a paz entre os cidadãos do reino; e para fora, unindo seus cidadãos para defender o Estado contra um inimigo estrangeiro, utilizando-se, caso necessário, da violência e da guerra. Esse duplo sentido guarda em si a guerra e a paz. Essas unidades decisórias (Estados) atuam em uma arena internacional competitiva, que, ao menos em teoria, não tem um Estado superior aos demais. É desta caracterização que Immanuel Kant realiza o debate sobre a Paz Perpétua e os arranjos políticos que acabaram se materializando na Organização das Nações Unidas (ONU). No âmbito externo, todas as soberanias são teoricamente iguais; no interno, todos os súditos devem obediência ao mesmo soberano. Cabe ainda pontuar que esse movimento foi fundamental para o desenvolvimento e expansão do capitalismo, pois possibilitou a concentração da força e a capacidade de arrecadar tributos e acumular excedentes no Estado.

2. Há diferentes perspectivas sobre como o soberano concentra o monopólio. Há aqueles que defendem que o soberano tenha o monopólio do direito mediante o poder legislativo e, a partir dele, o monopólio da força e da violência, como expressaram Jean Bodin e Jean-Jacques Rousseau. Outros acreditam que o soberano, como caracterizou Thomas Hobbes, é responsável por impor o direito ao deter o monopólio da força ou da coerção física. Há também a perspectiva de John Locke, cujo Estado exerce seu poder soberano por meio das leis e da força. Alguns desses poderes podem ser sintetizados na decisão acerca da guerra e da paz, nomear os chefes militares e os magistrados, emitir moeda, suspender impostos, conceder indultos e anistias e julgar em última instância. Em tese, a soberania é absoluta, pois não deveria sofrer limitações por parte das leis; é perpétua pois não está nas pessoas, mas no poder político; e é inalienável por ser uma função pública e não privada, como sugere Norberto Bobbio. Há quem pense a soberania como um poder absoluto, e por isso, inevitavelmente unitário, sendo contrário à tripartição dos poderes. Há também quem pense que a soberania é contrária às leis, uma vez que a sociedade desarmada não conseguiria fazer valer a legislação. Por fim, na teoria pluralista crítica, a soberania é entendida como unitária pelo fato do indivíduo participar de diversos grupos, portanto viver diversas autoridades.

3. A soberania não depende da democracia. O soberano, a rigor, pode ser uma única pessoa, portanto, as duas pautas precisam estar combinadas para que o soberano seja identificado com a assembleia daquele país, com a vontade geral (Rousseau e toda a teoria democrática). É possível ter uma soberania limitada (baseada em leis justas), uma soberania absoluta (a lei é uma ordem técnica, racional, intrinsecamente universal), ou soberania arbitrária (quando uma pessoa, ou uma fração do povo, pretende falar em nome dele, mesmo sem mandato para isso). Assim, a soberania é um poder adormecido, que se manifesta quando se quebra a coesão social e se apresenta com o poder constituinte, por exemplo. Esse poder pode ser por meio de uma ditadura (uma pessoa ou grupo substitui uma Constituição por outra em nome do povo, sem mandato para isso, o que só é possível se sustentado por um Exército que garanta sua obediência e legitimação) ou pela soberania popular (regras e procedimentos para que a nova ordem corresponda à vontade popular).

4. Há também ampla discussão sobre como frear e reduzir o poder soberano por meio dos direitos individuais, do Parlamento, da Constituição ou da resistência. O povo aliena seus direitos para o soberano ou os cede? Na prática, que povo? Quem, em última instância, possui de fato o poder soberano: o povo ou a sua representação? A despersonalização do poder pelo direito acaba por esconder quem realmente manda. Surge, então, uma geração de autores que discutirá como o poder do Estado está, de fato, nas mãos da classe economicamente dominante (Marx), da classe política (Mosca), das elites (Mills), dos grupos sociais (teorias pluralistas), de quem estiver em condições de decidir o Estado de Exceção suspendendo o ordenamento jurídico (Schmitt). Mesmo com as críticas, o desejo de obter soberania é o que inspirou todas as revoluções de libertação nacional e pauta o debate decolonial até os dias atuais. Para um conjunto de nações, essa é a principal pauta reivindicatória hoje em dia, como no caso dos nossos vizinhos da Bolívia, Venezuela e Haiti.

5. No fim do século XX e início do XXI, passou-se a relativizar a ideia de soberania em função do surgimento de atores econômicos, jurídicos e militares que atuariam de forma independente dos Estados, com capacidade para questionar inclusive as estruturas administrativas internas da Nação. A soberania externa se limita, por exemplo, a acordos internacionais, emissão de moeda, subordinação às autoridades supranacionais, novas alianças militares ou limitações de desenvolvimento tecnológico (em áreas como a nuclear ou veículos lançadores); e por atores como as empresas multinacionais, redes de comunicação que formam uma opinião pública mundial, organizações teoricamente multilaterais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA). Esse processo aumentou as distâncias entre as grandes potências que ascendem e depois “chutam a escada”, inviabilizando o caminho para os demais países.

6. Quanto à soberania interna, esta vai se fragilizando em virtude da sua desconexão com a democracia. Todo Estado tem, e terá, conflitos internos, que podem ou não minar a sua unidade política. Quando o soberano usa a força para reprimir esses conflitos, ele perde sua soberania, pois mostra sua incapacidade de garantir a paz entre seus cidadãos. Um soberano autoritário não é um soberano mais forte. Na verdade, ele é um soberano mais frágil, mais incapaz, menos legítimo e, por isso, também mais violento. Nesse processo se estabelece uma luta pela revisão das regras do jogo e pela Constituição de uma nova soberania. Surge, então, o discurso nacionalista totalitário, por exemplo, America First de Donald Trumph, com apelos identitários intolerantes e xenofóbicos, em um cenário de fragilização da hegemonia estadunidense.

7. Portanto, em última instância, soberania pode ser entendida como autonomia decisória, não ter constrangimentos para tomar decisões (Saint-Pierre). Por sua vez, povo soberano diz respeito ao povo que decide dentro do território do Estado nacional.

8. Mas, o que é uma nação? Esse é o título de uma conferência proferida por Ernest Renan na Sorbone em 1882, Nesta ocasião, o pensamento ocidental recusa os critérios da raça, língua, religião ou geografia para afirmar que “uma nação é um plebiscito de todos os dias”, ou seja, é uma solidariedade construída pelo sentimento dos sacrifícios que se fizeram e ainda fariam; é portanto uma decisão expressa de continuar a vida em comum. Na formulação de Benedict Anderson (1993), uma nação é entendida como uma comunidade política imaginada como inerente, limitada e soberana; as nações sonham em ser livres e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano. Eric Hobsbawnm (2008) vai dizer que a Era das Revoluções Burguesas equaliza Nação – Estado – Povo, cujo significado moderno de nação passa a ser um corpo de cidadãos em que a soberania coletiva os constituía como um Estado concebido como sua expressão política. Reunimos esses três autores para circunscrever o tema da Soberania Popular no sentido do povo decidir sobre um destino comum, ter um horizonte de liberdade coeso e expressá-lo politicamente.

9. No Brasil, consolida-se, no final dos anos 1990, o que chamamos de campo Político do Projeto Popular, que se conforma em torno da necessidade de um projeto nacional e popular e da compreensão do Brasil como país. Nesse processo foram forjados os chamados cinco compromissos de um projeto popular de país, cuja ideia de Soberania está entre eles. Em “Um passo à Frente na Consulta Popular”, cartilha n. 10 (2000), o compromisso com a Soberania representa “a determinação de dar continuidade ao processo de construção nacional, rompendo com a dependência externa e dando ao Brasil um grau suficiente de autonomia decisória”. No livro “Brasil é um sonho (que realizaremos)”, de César Benjamin (2002), a Soberania é apresentada dentre os cinco compromissos do Projeto Nacional, Democrático e Popular nos seguintes termos: “Soberania é independência de verdade, é a capacidade de decidir o próprio destino. Quem tem soberania diz para onde quer caminhar. Quem não tem, caminha puxado por outra coleira. Nos últimos anos, o Brasil perdeu soberania. Em vez de representar os interesses do nosso país lá fora, o governo atual representa os interesses dos estrangeiros aqui dentro. Obedece a eles, e não ao nosso próprio povo. Está entregando nossa economia e nossas riquezas. O compromisso com a soberania afirma a nossa vontade de continuar a construir uma nação, dando ao Brasil a autonomia que ele nunca teve. Custe o que custar”. Nessa perspectiva, o Projeto Brasil Popular (2016) se refere ao termo “Soberania Nacional e Desenvolvimento”, entendida enquanto “um caminho para o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde os compromissos sociais submetam à lógica da economia de mercado. Além de formular um projeto nacional que possibilite ao nosso país crescer com soberania”.

10. Portanto, de uma forma sistematizada podemos dizer que Soberania Popular é o poder do povo para protagonizar os rumos da construção da capacidade de autonomia decisória do Estado nacional. Essa perspectiva é especialmente importante em países como o Brasil, cujo movimento de independência contou com pouca espessura social, ou seja, uma baixa participação do povo na formação do Estado-Nação. Tal característica ainda permanece presente e é amplamente interpretada de maneira elitista, sob a lógica de que “o povo não sabe votar”. .

 

A soberania no Brasil

1. Do ponto de vista normativo, a Constituição de 1988 determina que o primeiro fundamento do Brasil como Estado Democrático de Direito é a soberania (Artigo 1°). Ainda no artigo 1, a Constituição declara que todo Poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente. Assim, cabe aos três poderes, junto ao povo, defender a soberania brasileira. Deriva deste artigo o entendimento da soberania como o direito que tem um povo independente de determinar suas organizações política, econômica, militar e social – como no caso do meio ambiente e direitos humanos, por exemplo – de acordo com seus objetivos de desenvolvimento, de democracia, de direitos para todos, sem interferência externa. Não entendemos a soberania enquanto um objetivo nacional estanque e permanente. Na verdade, as diversas classes, setores e segmentos têm visões distintas sobre os interesses nacionais brasileiros, e portanto, interpretações diferentes sobre o que representa um ataque à soberania. Por isso, é necessário pensar cada campo da soberania sob a ótica popular.

2. A soberania está umbilicalmente ligada ao poder do Estado, que depende das características da sua população, do sistema econômico, do comportamento das suas elites, do poder militar, do dinamismo tecnológico e da sua capacidade de exercer influência cultural e política em outras sociedades. É importante ter todas essas dimensões, já que ataques à soberania nacional não vêm necessariamente pela força (como invasões armadas externas), mas também pela pressão política e econômica, exercida por interesses públicos e privados externos, muitas vezes com cooperação interna (Florestan Fernandes).

3. O sistema internacional não é formado, na prática, por soberanias de igual valor. Existem grandes potências, particularmente o Império estadunidense, que fazem o possível para dificultar a emergência de novas referências, mesmo que apenas regionais. Quanto maior capacidade um Estado tem para se tornar uma potência, como é o caso do Brasil, maiores serão as dificuldades impostas pelos países que detêm a hegemonia para evitar que isso ocorra. Isso também se agrava no caso de possíveis potências em áreas tradicionalmente dominadas por alguma nação, como é o caso dos EUA sobre a América Latina (Samuel Pinheiro Guimarães). Esse quadro piora com a acentuação da disputa entre EUA e China. Quanto maior a força dos pólos, menor o espaço para o exercício da soberania dos demais países, especialmente aqueles de grau intermediário, como o nosso, pois o poder mundial fica mais concentrado. Como nos lembra um provérbio chinês, “quando dois elefantes brigam, quem sofre é a grama”. Da mesma maneira, mais agressivos ficam os pólos, o que justifica golpes, inclusive militares, que os EUA estão dando na América do Sul, buscando um alinhamento completo do continente à política estadunidense. Aos países não alinhados, cabe toda natureza de sanções.

4. Os objetivos estratégicos dos EUA para o Brasil (ou para as províncias, nas palavras de Samuel Pinheiro Guimarães) são: evitar que o Brasil sozinho, ou em aliança com outros Estados, reduza a influência dos EUA na América do Sul; ampliar a influência cultural/ideológica estadunidense nos meios de comunicação; incorporar a economia brasileira à economia estadunidense; desarmar o Brasil e transformar suas forças armadas em forças policiais; impedir a cooperação, em especial militar, com a Rússia e a China; impedir o desenvolvimento autônomo de indústrias de tecnologia avançada; debilitar o Estado brasileiro; e eleger líderes políticos favoráveis aos objetivos dos Estados Unidos.

5. Mas não se trata apenas dos EUA. As grandes potências, por meio do Conselho de Segurança da ONU, têm o direito de determinar quais Estados podem romper ou ameaçar a paz mundial, podendo aplicar sanções. Todos os membros da ONU têm que cumprir suas decisões, mesmo não tendo participado delas. Por exemplo, as potências se armam, mas impõem tratados de desarmamento aos demais países, inclusive na área cibernética e nuclear. Na ONU, o poder do Estado também é reflexo de sua soberania: em geral, quanto maior a autonomia em termos de poder decisório interno, maior é seu poder de decisão sobre o conjunto dos Estados.

6. Por muito tempo (e até hoje), setores brasileiros alimentaram a ideia de que nos tornaríamos um “subimpério” na América Latina se nos alinhássemos aos EUA. Os EUA alimentaram ilusões similares em outros países, como o caso da Argentina, mas não é possível ser um país soberano baseado em uma autonomia relativa. Desde o fim do regime dos generais, as relações Brasil-EUA transitaram entre diferentes concepções: um período de autonomia pela integração subordinada (Collor e FHC), de política altiva e ativa (Celso Amorim) dos governos do PT, da política omissa e submissa (Temer, formulado por Marcelo Zero), e pela atual política de alinhamento subordinado automático do governo Bolsonaro. A verdade, porém, é que o Brasil nunca deixou de ser um país periférico com uma economia subdesenvolvida, seja do ponto de vista do mercado interno, estrutura produtiva, exploração de recursos naturais ou de uma sociedade extremamente desigual; o país do eterno porvir, das possibilidades de futuro. Os interesses brasileiros não são compatíveis com os interesses das grandes potências, e a grande chave de interpretação é a divisão internacional do trabalho. Mesmo com o Brasil vendendo apenas commodities, as grandes potências alegam razões de soberania alimentar ou ambiental para proteger suas próprias agriculturas.

7. Por outro lado, embora a nossa Constituição fale de integração com a América Latina do ponto de vista econômico, político, social e cultural dos povos, as assimetrias entre Brasil e seus vizinhos são enormes. Há quem enxergue soberania como algo contrário à integração regional. Porém, avaliamos que as alianças são ainda mais fundamentais para Estados que não são grandes potências. A autonomia decisória passa pela diversificação de parcerias, compradores e fornecedores, particularmente entre nossos vizinhos.

8. A articulação internacional e projetos de integração regional é uma necessidade histórica dos que lutam por emancipação, sobretudo a partir do século XIX. No leito histórico revolucionário latinoamericano, há uma tradição em vincular a luta nacional por soberania, ou a luta por libertação nacional a uma causa latinoamericana, com uma perspectiva internacionalista e anti-imperialista, desde José Martí. Para fazer referência ao período recente – a partir da ofensiva neoliberal dos anos 1990 e da consequente resistência popular aos Acordos de Livre Comércio, às políticas de privatização e à redução dos direitos trabalhistas e sociais – foram impulsionados diversos processos de articulação internacional, com destaque à Campanha Continental Contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) (2001). Depois da realização de massivas mobilizações populares em toda a América, o ano de 2005 marcou a vitória popular que enterrou definitivamente esta proposta imperialista. Também lembramos do Fórum Social Mundial (FSM), que se iniciou em 2001, na cidade de Porto Alegre, no Brasil, sob o lema “Um Outro Mundo é Possível”. Durante mais de uma década, em edições anuais, o FSM reuniu uma ampla diversidade de setores que se opunham às políticas neoliberais e às guerras imperialistas e suas consequências para a classe trabalhadora em todo o mundo. Dentro do FSM, em 2009, ocorreu a Assembleia de Movimentos Populares das Américas, que produziu a Carta de Belém, dando origem à Articulação Continental dos Movimentos Sociais da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA). A Carta de Belém contém a plataforma política comum para a construção de um processo continental de solidariedade e integração dos povos das Américas frente ao imperialismo estadunidense. As vitórias eleitorais a partir de Hugo Chávez permitiram avanços sociais e políticos na região, como também avançou na construção de mecanismos inéditos de integração regional, como a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a ALBA, em 2004. Em suma, a Assembleia Internacional dos Povos, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, as Escolas de Formação Política no Sul Global, como a Escola Nacional Florestan Fernandes (MST) e as ferramentas de comunicação popular fazem parte desse processo.

9. Nessa perspectiva, afirmamos que não há dicotomia entre a luta por soberania popular e a luta internacionalista numa perspectiva de integração dos povos.

10. No cenário nacional, a soberania popular se traduz na prática dos movimentos populares, como por exemplo a soberania alimentar, no caso da Reforma Agrária Popular reivindicada pelo Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); ou a soberania energética formulada pelo projeto de processos produtivos industriais do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB); além da soberania popular na mineração, que se traduz – entre outros temas – no ritmo de extração e nos locais onde se pode realizar a mineração, organizados pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Cabe estender as formulações para todas as áreas, como saúde, educação, segurança pública, etc.

 

Ataques à soberania brasileira 

1. Os ataques à soberania econômica, como a política do teto de gastos, é herança do governo Temer. Bolsonaro e Paulo Guedes foram eleitos para manter essa política, que na prática, reduz o papel do Estado. Ela restringe a soberania ao dificultar aos ocupantes do Executivo o manejo do próprio orçamento do Estado.

2. O governo destrói as grandes empresas estatais, como a Petrobras e a Embraer. As vinculações da Lava Jato com os EUA foram bastante documentadas pelas revelações do Intercept, mas bastaria identificar os principais beneficiários da destruição da indústria pesada de construção civil nacional para perceber as vinculações internacionais.

3. O governo desmonta os mecanismos estatais de fomento à iniciativa privada nacional com os créditos nos bancos públicos, particularmente o BNDES, e das políticas de conteúdo nacional vigentes em algumas áreas, como a indústria naval, por exemplo.

4. O governo atenta contra a nossa soberania econômica ao sucatear o Mercosul, assinar um acordo com a União Europeia prejudicial ao país e tentar entrar na OCDE. Embora o nacionalismo econômico tenha ressurgido com força em todo o mundo, em virtude das crises provocadas pela financeirização, o Brasil aposta na sua inserção subalterna às cadeias internacionais de Valor, caminhando rumo a neocolonização. Para isso, o governo atenta contra o futuro com os cortes em ciência e tecnologia, forçando o país a permanecer na situação de subalternidade em que se encontra a largo prazo.

5. O governo atenta contra a nossa soberania territorial, privatizando as jazidas do Pré-Sal existentes na Amazônia Azul e autorizando a venda de partes do território, inclusive de terras na Amazônia. Bolsonaro também atenta contra a unidade territorial ao estimular o conflito com os governadores, especialmente os do Nordeste.

6. O governo atenta contra o próprio Estado ao usar suas milícias físicas e digitais contra os demais poderes institucionais, como o Legislativo e o Judiciário. Também atenta contra o Estado, à exceção do seu poder repressivo, sucateando e desmontando os serviços públicos em diversas áreas. A pandemia do coronavírus se espalhou muito rapidamente e ficou clara a importância da solidariedade e da cooperação entre os países. Assim como o ar, as águas e os ecossistemas, as ciências também transcendem fronteiras e convergem povos diferentes na pesquisa, assim como nas artes, na cultura e nos trabalhos de construção da paz. Por outro lado, a pandemia deixa cada vez mais evidente as responsabilidades de cada país independente em relação à vida, à saúde e ao bem-estar do seu povo (Vijay e coronachoque).

7. O governo atenta contra a soberania nacional ao desmontar quase um século de política externa, especialmente a ação constitucional das últimas décadas de maior cooperação Sul-Sul, subordinando as relações internacionais do Brasil aos interesses estadunidenses. Chegamos ao ponto de emprestar parte do território nacional para que os EUA realizasse agressões contra a Venezuela.

8. O governo atenta contra a coesão social ao estimular a polarização política, a intolerância religiosa, de gênero, raça, e ao fomentar ações violentas contra seus críticos.

9. O governo atenta contra nossa soberania nacional de Defesa ao assinar o acordo da Base de Alcântara, designar um oficial para o Comando Sul Estadunidense, destruir o Conselho de Defesa Sul Americano e politizar as forças armadas brasileiras.

10. O governo tem, nas suas mãos, mais de 130 mil brasileiros mortos. Um Estado soberano, em primeiríssimo lugar, protege a vida de seus cidadãos.

 

Considerações finais

Um projeto popular nacional exige a superação da vulnerabilidade estrutural e das pressões e ameaças no campo econômico, financeiro, tecnológico, ideológico, político e militar. A redução dessas vulnerabilidades depende do aumento da presença nacional nos diversos setores, e na maior capacidade da sociedade influenciar essas áreas.

Ao afirmarmos que a soberania nacional está vinculada à soberania popular, estamos dizendo que, em primeiro lugar, um país soberano cuida bem da sua gente, assegurando a todas as pessoas, famílias e comunidades os direitos fundamentais.

Um povo que percebe que seu país lhe proporciona uma vida boa é aquele que se engaja na defesa da sua soberania diante de ataques externos. Não se defende aquilo que não se sente, que não se tem pertença. Um Estado que se torna inimigo de seu povo, caçando sua soberania para entregá-la a um terceiro, rompeu o contrato original: já não é mais Estado, é só um estado de servidão que capturou a nação. Diante de tantos ataques, gritamos com ainda mais força neste 3 de outubro: “Em defesa da soberania e contra as privatizações: fora imperialistas!