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Artigos

Valsinha brasileira 

Ilustração realizada para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas. “Looking Glass Self”, por Charvi Arora (Índia).

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.

 

Por Emmanuel Nakamura 

 

Para o Guerreiro (i.m.) 

A tendência a buscar dentro de si, voltando-se para o interior, o que é justo e bom, e a sabê-lo e determiná-lo a partir de si, aparece, enquanto configuração mais ge- ral na História (em Sócrates, nos Estóicos, etc.), em épocas em que aquilo que vige na efetividade e nos costumes como justo e como bom não pode satisfazer a uma vontade melhor; quando o mundo existente da liberdade tornou-se infiel a essa vontade, ela não se encontra mais a si mesma nos deveres vigentes e deve procurar obter a harmonia, perdida na efetividade, somente na interioridade ideal.¹

 

Cheguei da Alemanha no dia 15 de março de 2020, um dia depois do previsto. Devido à pandemia do coronavírus, as companhias aéreas cortaram vários voos. Só então comecei a perceber que se tratava de algo sério. Chegando ao Brasil fui recebido por autoridades sanitárias. Todos que chegavam do exterior eram obrigados a fazer um teste tipo RT-PCR e eram orientados a entrar em quarentena domiciliar até a divulgação do resultado do exame. A autoridade local prometeu que me informaria pelo celular em até 48 horas. Na prática, tive que esperar 4 dias. Na hora, achei a medida extremamente invasiva. Como o Estado poderia intervir assim em minha liberdade pessoal de ir e vir e me obrigar a fazer um exame? Assim como René Schlott, fiquei impressionado com a boa vontade da população em aceitar a suspensão de direitos pessoais que demoraram anos para serem conquistados. Mais tarde fui saber que vários países estão com dificuldade em realizar esse exame tipo 2 RT-PCR. Graças aos últimos anos de investimento em pesquisa e na saúde pública, o Brasil está à frente na capacidade de realizar e processar esses testes. Fico, no entanto, indignado com a falta de solidariedade internacional do nosso governo. Estamos doando esse tipo de teste aos países do Mercosul, mas e os outros países da América Latina? E a África? E mesmo os países da UE, como Itália e Espanha?

Na terça-feira, dia 24 de março, o governador de São Paulo Bruno Covas determinou a quarentena de 15 dias em todo o estado de São Paulo. Fico ainda impressionado que, mesmo após a revolta social de 2013 e todas as mudanças sociais e políticas do país, o PSDB mantém o seu eleitorado em São Paulo. O governo determinou o fechamento do comércio não essencial e a paralisação do setor industrial, incluído a construção civil, mas manteve aberto os parques públicos – uma preocupação com a saúde psicológica da população. Esta respeitou o decreto do governador. Bruno Covas não decretou o lockdown e apelou para o bom senso da população. O governo, porém, restringiu de maneira radical as nossas liberdades religiosas e de reunião: cultos religiosos foram proibidos e, em parques ou em qualquer espaço público, só é possível a reunião de no máximo 3 pessoas.

Contudo, o apelo moral à quarentena só funcionou por conta da reforma social gigantesca realizada após 2013 no âmbito da habitação. No Brasil, o proprietário de um segundo imóvel tem duas opções. Se bem sucedido, ele aluga o imóvel no primeiro mês pelo preço de mercado. Caso não consiga isso, ele tem a opção de ter de arcar, a partir do segundo mês, com uma multa altíssima pelo imóvel vazio ou então de aderir ao programa de moradia social do governo federal. O proprietário recebe um aluguel social, com o valor máximo correspondente a 30% da renda média individual da população da cidade em questão.

É inaceitável que ainda tenha tanta gente morando em favelas, mas reconheço que estamos bem longe dos quase 13 milhões de 2013. Reconheço também que essa reforma habitacional mudou a cara dos bairros, pelo menos aqui em São Paulo. Moro em Perdizes, que durante muito tempo era considerado um bairro de classe média alta. Além da política para acabar com a farra imoral dos imóveis vazios, o próprio governo federal passou a ser um ofertante de aluguel social, por meio das 3 moradias sociais construídas a partir de 2013. Hoje os bairros de São Paulo já não têm mais essa distinção de classe.

A revolta iniciada em 2013 pelo Movimento Passe Livre realmente mudou o país. Começou com uma reivindicação contra um aumento de 20 centavos no preço do transporte público. Os governos Fernando Haddad e Geraldo Alckmin cederam à pressão popular, mas logo a revolta ganhou uma dimensão nacional com toda a população pedindo hospitais, escolas e serviços públicos em geral com o «padrão FIFA». Era uma palavra de ordem vazia, mas o que esperar de um povo que vinha de 21 anos de ditadura militar e um processo de redemocratização com uma lógica em que PT e PSDB apenas concorriam para administrar o condomínio político do PMDB? Dilma 4 Rousseff percebeu que o «discurso da pacificação» e da «reconciliação nacional» tinha chegado ao seu fim. Ruía um acordo autoritário de democracia que impediu, durante os anos 80 e 90, o livre desenvolvimento de uma sociedade civil. Se por um lado as reivindicações a partir do mote «padrão FIFA» pareciam ser abstratas, os novos sujeitos sociais de 2013 sabiam que precisavam (1) de espaços livres dentro da sociedade civil para formular reivindicações sociais de maneira livre, independente, coletiva e concreta e (2) de uma reforma política, acompanhada de uma renovação do sistema partidário e das regras tácitas do jogo político. 5

Dilma Rousseff foi muito astuta em chamar uma reforma radical do Estado social brasileiro, como tentativa de atender às demandas sociais dos protestos. Considero um pouco injusta e hipócrita a maneira como a população brasileira jogou nas costas de Lula toda a responsabilidade pelos problemas sociais do país em 2013. Injusta pois, se por um lado seus programas sociais eram muito tímidos em relação à reforma social empreendida no governo Dilma Rousseff, tivemos durante os seus dois governos alguns avanços sociais. Hipócrita porque a própria população que agora condenava Lula pelos gastos supérfluos com estádios de futebol antes havia comemorado a escolha do Brasil como sede para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas. O fato foi que a resposta de Dilma Rousseff conseguiu salvar o PT de uma morte certa, com imprevisíveis consequências para o país. 7

Hoje não consigo entender como esse país tolerou até 2013 tanta desigualdade social, um sistema tributário tão injusto e que a lógica do mercado dominasse esferas tão básicas da vida social como educação, saúde, transporte e moradia. O MPL não consegui até hoje o direito ao passe livre a todo cidadão, mas o sistema de transporte melhorou muito de lá para cá. Para começar, acabou com o absurdo da indexação de aluguéis e de preços de serviços básicos a indices de inflação que garantem a remuneração de investidores do mercado financeiro. Para um estrangeiro pode parecer esquisito que o MPL atue hoje próximo ao Partido dos Povos da Floresta (PPF). O fato é que a crise hídrica, que atingiu principalmente o estado de São Paulo entre 2014 e 2016, foi entendida como uma crise climática. As comunidades ribeirinhas e indígenas, que já estavam descontentes com o início da construção da usina de Belo Monte, se organizaram junto com movimentos sociais e ONGs em torno da questão ecológica para criar um novo partido. Até hoje Lula também é criticado pelos impactos do início das obras de Belo Monte na região do rio Xingu. Além das demandas da população ribeirinha e dos povos indígenas8, o partido permitiu que várias questões ecológicas tomassem conta do debate público. Foi então que, nos centros urbanos, a reivindicação pelo passe livre ganhou força como forma de reduzir a frota de veículos em circulação. Só mesmo ainda uma «plebe rica» – com a sua procura para alcançar «reconhecimento por meio de demonstrações exteriores» e extravagantes – para continuar 9 andando de carro hoje em dia. Viajo frequentemente para visitar os meus pais e não vejo muita diferença com os trens regionais que pegava na Alemanha.

Escrevo no final do outono e fico impressionado com a velocidade de regeneração da natureza. Após a crise climática de 2014–2016, o Brasil parece que aprendeu a ouvir a comunidade científica, que chamava atenção para o perigo do desmatamento da Amazônia e para a necessidade de «reflorestar áreas em várias regiões do Brasil». Quando vejo essa garoa constante que cai sobre 10 São Paulo no outono e na primavera lembro de um amigo meu. Durante 2009 e 2010 fui várias vezes visitá-lo em Gramado–RS. Certa vez ele estava em pé, colado à janela olhando a garoa cair no inverno de Gramado, e comentou que gostava desse clima para estudar e que São Paulo costumava ser assim. Queria que ele estivesse entre nós para ver essa garoa que cai hoje em São Paulo.

Foi assim que passei a crise da pandemia do coronavírus, tocando em casa a minha pesquisa de pós-doutorado enquanto a garoa caia lá fora. Além do apelo moral à quarentena, do fechamento dos setores não essenciais, das regras de reunião em espaços públicos, o governo federal decretou o uso obrigatório de máscaras em espaços públicos. No começo, achei todas essas medidas invasivas, mas mudei de opinião em razão da transparência com que os políticos transmitiram à população uma percepção da «necessidade» dessas medidas. Para qualquer um iniciado nas leituras de Marx 11 deveria ser claro que «um reino da necessidade» deve sempre continuar existindo, já que o «metabolismo com a natureza» permanece sendo uma «necessidade» «em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis»: «o verdadeiro reino da liberdade […] só pode florescer com base nesse reino da necessidade.» A crise da pandemia do coronavírus nos mostra que a relação ¹² com esse Outro, a natureza, é uma necessidade insuperável, por mais que a abstração social das relações capitalistas tente nos convencer do contrário – p. ex. levando cadeias de produção para regiões onde só deveriam existir florestas. Após a crise climática de 2014, o Brasil avançou muito 13 nesse aspecto. Uma prova disso aqui em São Paulo foi que, por conta do restabelecimento do cinturão verde, não houve crise de abastecimento e nem os preços dos alimentos sofreram aumento durante a crise da pandemia do coronavírus. O mundo discute apenas agora a necessidade de revalorizar a produção local enquanto os brasileiros tomaram consciência disso muito antes.

A regulação mais racional do metabolismo com a natureza não poderia surgir sem a mudança profunda na estrutura social e política do país após 2013. A sociedade civil tomou consciência de que precisava de espaços livres para a formação de interesses específicos próprios. Junto com a maneira mais horizontal de organização do MPL, se desenvolveu a consciência de que as organizações da sociedade civil precisariam ser radicalmente democratizadas, dando nova vida aos sindicatos, associações cooperativas das mais diversas espécies e partidos políticos. A revitalização dos espaços livres da sociedade civil ganhou ainda um segundo impulso depois do movimento dos estudantes secundaristas de 2016. A crise da pandemia do coronavírus deixou mais claro a importância dessa movimentação. Enquanto a maioria dos nossos vizinhos sul-americanos precisam lidar com a desigualdade entre o ensino privado e público e a pressão das escolas privadas para o retorno das atividades letivas, nós aqui tivemos que lidar com outros problemas talvez de ordem menos estrutural14. O governo adiou todos os exames de ingresso ao ensino superior pelo tempo correspondente ao da crise. Como apenas uma porcentagem muito pequena da população permaneceu em escolas privadas depois das reformas de 2016, o impacto foi mais ou menos homogêneo em toda sociedade.

Enquanto os países vizinhos começam a discutir só agora o retorno do ano letivo, no Brasil se começou a fazer isso muito antes. Primeiro porque o número de casos de infecção permaneceu pequeno durante toda a pandemia e, em segundo lugar, por conta da consciência generalizada de que o ensino público é um espaço por excelência para desfazer desigualdades de oportunidades na formação do cidadão e que, por isso, a sua retomada deveria ser uma prioridade. Acho, contudo, que os 15 governos deveriam ter lidado melhor com a oferta de creches para pais que trabalham em serviços essenciais e de escolas com crianças com alguma carência especial.

A revitalização das organizações da sociedade civil demandou uma renovação do sistema partidário brasileiro. É inacreditável que Dilma Rousseff em seu primeiro mandato tinha que negociar com 22 partidos na câmara dos deputados. Hoje a base de apoio da presidente Sônia Guajajara é composta por 28% dos deputados do seu partido (o PPF), 18% de deputados do PSOL, o partido do vice-presidente Guilherme Boulos, e 16% de deputados do PT. O PSDB lidera a oposição, com 15% dos representantes, junto com Partido Brasil Livre (PBL), com 11% dos deputados. Fico bastante preocupado com os 12% do partido de extrema-direita Aliança para o Brasil. É, porém, um alívio que o discurso populista de extrema-direita reúna o apoio de apenas uma pequena margem social, que, pela disposição de ânimo contra o estado de direito, se encaixa perfeitamente naquilo que Hegel definiu como «plebe» – em geral, são empresários, que operam seus negócios à margem do direito, e uma parcela de pobres, que devido à dinâmica contraditória da economia capitalista perderam a capacidade de sentir e fruir as liberdades e demais vantagens da sociedade civil. O espírito16 populista opera por meio daquilo que Giorgio Agamben chamou de formas modernas de «aclamação» – uma espécie de relação direta entre o chefe de Estado e essa base de apoio «plebeia»17, que, por sua vez, «priva aproximadamente todas as instituições existentes de seus direitos e legitimidade». A condição para a ascensão desse espírito é a dissolução dos espaços de formação 18 da vontade coletiva dentro da sociedade civil. É em razão dessa desinstitutionalização do tecido social que Donald Trump pôde, nos EUA, encontrar nas redes sociais uma forma de aclamação para se eleger e se comunicar com a sua base. Mas o Brasil pós-2013 seguiu exatamente o sentido contrário.

Junto com as primeiras medidas para controlar a disseminação da pandemia do coronavírus, o governo PPF/PSOL/PT determinou a fila única para os casos graves de COVID-19: «O princípio defendido é de que o acesso a cuidados hospitalares durante a pandemia deveria ser universal e igualitário através do SUS, independente da capacidade de pagamento, da condição socioeconômica e étnico-racial dos cidadãos, como prevê a constituição.» Nos últimos anos, os investimentos 19 no SUS permitiram que o país pudesse enfrentar a pandemia com 7,5 leitos para cada mil habitantes. Estamos atrás apenas do Japão (13,05), Coréia do Sul (12,27), Rússia (8,05) e Alemanha (8).

Com os leitos do setor privado, o país passou a oferecer 8,1 leitos para cada mil habitantes. O efeito prático pode parecer pequeno, mas sinaliza a disposição de um povo em enfrentar de maneira unida a pandemia, sem qualquer distinção «socioeconômica e étnico-racial dos cidadãos». Uma reflexão moral sobre os comportamentos durante a pandemia precisa levar em consideração as condições em que a ação individual se realiza. Há duas semanas os governos começaram uma política de reabertura²° das escolas, creches e do setor de comércio. Com certeza, é no mínimo discutível as prioridades e regras que os governos federais e estaduais estabeleceram para a reabertura das atividades sociais.

Reconheço, contudo, que há pelo menos um critério transparente para essa política: a taxa de reprodução da infecção por COVID-19 abaixo de 1 e o número de leitos disponíveis. Assim como a primeira ministra Jacinda Arderm da Nova Zelândia, a presidente Sônia Guajajara tem sido elogiada pela comunidade internacional porque o Brasil deve ser nas próximas semanas o próximo país a zerar os casos de infecção pelo novo coronavírus. Até o final do mês de junho o governo federal, em conjunto com os estados, quer suspender todas as medidas de distanciamento social. Tudo isso ainda me deixa bastante preocupado. 21

A crise da pandemia do coronavírus mostrou que os direitos sociais são uma espécie de centro de gravitação social para lidar com as liberdades pessoais, econômicas e políticas. Países com um Estado social robusto conseguiram lidar bem com a crise sem precisar tomar medidas muito restritivas em relação às liberdades pessoais. Se me perguntassem em torno de qual valor a sociedade²² brasileira se organizou a partir de 2013 eu diria que foi o «princípio da liberdade social», isto é, a ideia de Marx de que «todas as condições da existência humana» precisam ser organizadas «sob a pressuposição da liberdade social». Para os sujeitos sociais pós-2013, a liberdade social se 23 realiza como direito social – «a forma racional de proteção contra os riscos de subsistência na economia de mercado capitalista.» Estranhava como alguns movimentos sociais e partidos de esquerda24 igualavam a crítica da forma direito à da forma mercadoria, caindo em um «romantismo» que era «cego para a necessidade da mediação entre os indivíduos e o [elemento] universal.» Trocava-se, 25 assim, o direito, como forma de mediação objetiva entre o âmbito individual e o coletivo, por um imperativo moral em que a individualidade é dissolvida numa visão coletiva. Mais do que nunca, eles tomaram consciência após 2013 de que as esferas individuais e coletivas precisam de uma mediação objetiva que apenas o direito pode oferecer. A moral diz respeito ao âmbito da interioridade subjetiva. O direito passou a formar então o ponto de partida e de chegada da formação coletiva dos interesses sociais. 26

Foi talvez esse ponto de vista que fez aflorar dentro da sociedade brasileira propostas pela renda básica universal. Não mais a mera capacidade de trabalho ou a propriedade privada de algum meio de produção têm de formar o ponto de partida da ordem econômica. Independentemente da capacidade de trabalho, cada indivíduo tem o direito a acessar as condições objetivas próprias a uma forma de vida particular. A proposta do PT, aprovada em caráter emergencial durante a pandemia, 27 vai talvez nesse sentido. Cada indivíduo tem o direito ao acesso a uma renda básica universal. A aprovação da solicitação não está condicionada a nenhuma análise de situação de pobreza. Junto com o valor de R$1.086,90, cada indivíduo passa a ter direito (1) a um aluguel social pago também pelo Estado, (2) ao transporte público gratuito, incluindo trens regionais interestaduais e (3) a visitar museus, teatros e cinema gratuitamente – além, é claro, do acesso ao SUS. Obviamente, os solicitantes da renda básica ainda não tiveram acesso ao componente lúdico do novo programa social e ainda nem sabemos se tal programa será de fato efetivado como um novo direito social. O aspecto positivo desse programa emergencial é que ele tem como alvo retirar da regulação do mercado meios de vida essenciais à reprodução social. 28

A transformação do caráter emergencial do programa de renda básica universal em um direito social vai certamente depender da movimentação social pós-pandemia. Junto com o direito à renda básica universal, a sociedade civil e o governo PPF/PSOL/PT vão precisar dar uma resposta concreta e abrangente às reivindicações por justiça «racial» e pelo fim da polícia militar, estimuladas29 pela movimentação nos EUA após a morte de George Floyd e pelo racismo histórico e estrutural que permeou a formação da sociedade brasileira. Se por um lado a efetivação de direitos sociais permitiu ao país lidar de maneira serena com a crise da pandemia do coronavírus, o Estado social não deve ser projetado ideologicamente como um fim último harmônico da nossa formação social. Democracias precisam de conflitos. O dia não vai amanhecer em paz.

 

¹Hegel, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse. GW 114. Hamburg: Meiner, 2009, § 138 Anot. Utilizo a tradução de Marcos Müller.

² Cf. Schlott, R. Um jeden Preis? In: Süddeutsche Zeitung, München, 16/03/2020.

³ Em maio de 2019, Kevin Kühnert, dirigente da juventude do SPD, trouxe polêmica ao debate público alemão sobre a política habitacional ao afirmar que «não me parece que seja um modelo de negócio legítimo ganhar a vida com a habi- tação de outras pessoas.» ZDF-Heute. Jeder soll nur Wohnung besitzen, in der er lebt. In: ZDF-Heute, Mainz, 01/05/2019. Disponível em: https://www.zdf.de/nachrichten/heute/juso-chef-kevon-kuehnert-will-einschraenkung-von- immobilienbesitz-100.html. Acesso em: 17/06/2020.

4 Cf. Nobre, M. O condomínio peemedebista. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 15/05/2011.

5 «Diferentemente da característica principal de protestos dos anos 70 e 80, voltados contra a ditadura, a carestia e a ausência de direitos, os movimentos sociais contemporâneos sabem o que não querem, contra o quê lutam, mas também têm conhecimento do que querem. São sujeitos de sua ação, ou seja, produzem seu próprio discurso e determinam em boa medida as suas práticas. E, enquanto sujeitos, têm a noção de ocuparem um outro lugar no cenário político, não mais como mito, nem simples ‹protagonista› do fazer político, mas como um elemento inusitado na democracia representativa do estado de direito.» Teles, E. A distância entre a política tradicional e as práticas de liberdade nas manifesta- ções de junho. In: Pensata, v. 3, n. 1, Guarulhos, nov. 2013, 164–170, 169. Sobre a importância das regras tácitas do jogo político, cf. Nobre, M. Bolsonaro tenta destruir as instituições por dentro. In: El Pais, São Paulo, 04/06/2020. Vídeo disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-03/el-pais-entrevista-ao-vivo-o-filosofo-marcos-nobre-nes- ta-quinta-feira.html. Acesso em: 17/06/2020.

6 Cf. Brum, E. Lula, o humano. In: El Pais, São Paulo, 09/04/2018.

7 Cf. Safatle, V. Como a esquerda brasileira morreu. In: El Pais, São Paulo, 10/02/2020; Brum, E. O Brasil está matando o Brasil. In: El Pais, São Paulo, 07/05/2020.

8 Cf. Brum, E. A notícia é esta: o Xingu vai morrer. In: El Pais, São Paulo, 12/09/2019.

9 GW 14,1: § 253 Anot. Cf. Ruda, F. A populaça ou: o fim do Estado Hegeliano. In: Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, ano 16, n. 28, 2019, 1–21, 7 et seq.

10 Marengo, J. A.; Nobre, C. A. et al. A seca e a crise hídrica de 2014–2016 em São Paulo: In: Revista USP, n. 106, São 10Paulo, jul./ago./set. 2015, 31–44, 43.

11 «O fato de as medidas de lockdown serem entendidas, em um sentido problemático, como restrição da liberdade, depende, sobretudo, de os políticos poderem ou não gerar uma percepção da necessidade (Einsicht in die Notwendigkeit). Não se trata de medidas arbitrárias mas de reações a uma catástrofe natural que nenhum de nós escolheu. Formulando de uma maneira exagerada: Eu não compreendo as leis da gravidade como uma restrição da minha liberdade, embora fosse certamente bom poder voar.» Jaeggi, R. Gegen die Krise der Demokratie hilft nur mehr Demokratie. In: Süddeutsche Zeitung, München, 13/05/2020. «O vírus, também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido: os outros existem. Às vezes, eles são chamados novo coronavírus. Ou SARS-CoV-2.» Brum, E. O vírus somos nós (ou uma parte de nós). In: El Pais, São Paulo, 25/03/2020.

12 Marx, K. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. MEGA II,15. Berlin: Akademie, 2004, 794 et 12seq. «A liberdade se refere ao respectivo espaço, historicamente específico, de possibilidades. Marx também define o reino da liberdade como espaço livre – como tempo livre para atividade autodeterminada – para além do reino da necessidade.» Arndt, A. Freiheit. Köln: PapyRossa, 77.

13 Cf. Marques, L. Serão as próximas pandemias gestadas na Amazônia? In: Revista IHU, São Leopoldo, 15/05/2020.

14 Cf. Folha de São Paulo. Escolas particulares querem volta às aulas antes das públicas. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 16/06/2020.

15 Magnoli, D. Pela esquerda ou pela direita, país não dá a mínima para a educação pública. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 12/06/2020.

16 Cf. GW 14,1: § 243–5, 301 Anot.

17 Cf. Agamben, G. The Kingdom and the Glory: For a Theological Genealogy of Economy and Government (Homo Saccer II,2). California: Stanford University Press, 2011, 259.

18 Ruda 2019, 7.

19 Franco, A.; Perez, B. et al. Por que a fila única é a única saída para salvar vidas? In: Folha de São Paulo, São Paulo, 1904/06/2020.

20 A partir do Gedankenexperiment de John Raws sobre o «véu da ignorância», Margarete Stokowski levanta uma reflexão direcionada principalmente àqueles que negam a importância do distanciamento social. Muitas vezes as medidas que vêem de cima são exatamente aquelas que corresponderiam a uma ação solidária não apenas com pessoas próximas mas também com estranhos: «Se, na atual crise do corona, mais seres humanos refletissem quais seriam os seus desejos, carências e medos, caso eles pertencessem atualmente ao grupo de risco particularmente vulnerável (ou os seus familiares), então talvez eles não dirigiriam a sua raiva e desprezo contra aqueles que tentam fazer o mais racional possível dentro do seu círculo limitado e não colocar ninguém em perigo. Mas sim contra uma política que, ao longo de décadas, levou que aqueles que agora são os mais atingidos sejam [exatamente] aqueles que teriam precisado de ajuda muito mais cedo: os pobres, os doentes, os idosos, os ameaçados pela violência doméstica, as famílias monoparentais e as mulheres grávidas, os sem-teto, os refugiados e todos aqueles que imaginam que o seu maior problema não seria a ausência de cerveja gelada recém aberta por um curto período de tempo. Isso seria uma reflexão sistemicamente relevante.» Stokowski, M. Befehl von oben, Befehl von unten. In: Spiegel, Hamburg, 24/03/2020.

21 O governo PPF/PSOL/PT deveria ter feito uma política para conter a disseminação do coronavírus e não apenas mitigar os seus efeitos. Cf. maiLab. Corona geht gerade erst los. In: YouTube, 02/04/2020. Vídeo disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=3z0gnXgK8Do. Acesso em: 17/06/2020.

22 «Será decisivo poder demonstrar que as sociedades que saírem menos prejudicadas da crise serão aquelas que possuem um sistema de saúde pública, aquelas cujas infraestruturas sociais não foram privatizadas e corroídas por completo, poder provar que a solidariedade e o cuidado mútuo serão os que triunfarão sobre o vírus e não o estado de exceção e a privação da liberdade…» Emcke, C. A pandemia é uma tentação autoritária que convida à repressão. In: El Pais, São Paulo, 23/04/2020. «Obviamente, os EUA estariam agora numa situação menos ameaçadora se tivessem um sólido sistema de saúde pública e melhores estruturas de serviços públicos (Daseinsvorsorge).» Jaeggi 2020.

23 Marx, K. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung. In: Karl Marx: Werke, Artikel, Entwürfe März 231843 bis 1844. MEGA I,2. Berlin: Dietz, 1982, 170–183, 181.

24 Nakamura, E. América do Sul no início do século XXI – O pensamento de Karl Marx ainda tem significado para nós? In: Gmünder, U. Karl Marx y Sudamérica en el sigla XXI. Goethe-Institut: Caracas, 2018, 74 et seq.

25 Arndt, A. Forma direito igual a forma mercadoria? Sobre o método em Paschukanis: Doutrina geral do direito e o marxismo. In: Problemata, v. 10, n. 4, 2019, 52–61, 59.

26 «Desde 2013, a esquerda fugiu da revolta. E fez isso estendendo a bandeira da democracia. Por um lado, podia dizer que os protestos eram um perigo à ordem democrática e justificar a repressão; ao mesmo tempo, podia elogiar as manifestações e enquadrá-las nessa ordem – ao enxergar em junho um movimento por ‹mais direitos› e ‹mais democracia›, apagava o conteúdo concreto e contestatório dos protestos.» Por um grupo de militantes. Olha como a coisa virou. In: Passa-palavra, São Paulo, 25/01/2019. Sem a mediação objetiva de instituições do estado de direito, resta apelar a uma moral (uma consciência de classe ou revolucionária) para tentar estabelecer uma conexão entre o indivíduo e o coletivo, ou seja, conceder que uma ordem externa coletiva deva poder determinar o que é da ordem da particularidade individual-subjetiva. Revoluções modernas partem de um pensamento. Este se volta praticamente e de maneira violenta contra a efetividade de uma ordem existente, porque esta, por sua vez, exercia uma violência absoluta contra essa pensamento. Trata-se de um pensamento da liberdade absoluta que nega de maneira absoluta toda a realidade existente. Mas após destruir essa ordem, esse pensamento precisa, necessariamente, se determinar para poder construir novas instituições adequadas ao novo pensamento da liberdade. Cf. Hegel, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Nachschriften zu dem Kolleg des Wintersemesters 1822/23. GW 27,1. Hamburg: Meiner, 2015, 460. A mera revolta, sem pensamento, contra o sistema traz apenas o ponto de vista, próprio à plebe, do negativo em geral contra a ordem existente e, exatamente por isso, é sempre paradoxal: «contesta a ordem vigente valendo-se dela». Ao não trazer um pensamento (auto)determinado da liberdade para a sua ação, o pensamento da mera revolta pode se estranhar ao se ver no seu outro: «a contestação passou para o campo oposto. Foi a direita quem levou massas às ruas para derrubar um governo». Falta ao pensamento da mera revolta um pensamento (auto)determinado da liberdade. Em suma, falta aos adeptos da mera revolta refletir sobre os valores que querem defender e como estes podem ou devem ser realizados objetivamente na efetividade social.