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Artigos

Vertigem: política, economia e sociedade em tempo de pandemia

Ilustração realizada para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas. “Capitalismo: ciclo interminable de explotación”. Crédito: Rebel Politk (Índia). Communist Party of India (Marxist-Leninist) Liberation

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes. Saiba como participar.

 

Por Silvio Romero Martins Machado¹

 

If there’s rage inside you So you cannot think Spit it out If you get so angry That you cannot speak Spit it out
(Lou Reed)

Nota: Apesar de inusual utilizo essa nota na abertura do artigo em virtude da vertigem do momento. O ritmo e a variedade dos acontecimentos diários tornam difícil “fechar” o artigo. Mas de forma a manter a própria integridade do texto é difícil emendar atualizações ao texto ao sabor dos acontecimentos diários. Quando optei por “fechar” a crise do governo bolsonaro segue se aprofundando com a prisão do Queiroz e a fuga de Weintraub e os números da pandemia seguem escalando no Brasil.

 

Neste período de isolamento social em cada dia temos pelo menos dez minutos nos quais parece que sentimos todos os sintomas da covid19. Logo começamos a formular hipóteses sobre a forma de contágio. Teria sido no supermercado, na farmácia ou naquela saída rápida com o cachorro. Com alívio, dentre as hipóteses, até agora, nenhuma se confirmou.

Hipótese é uma das palavras repetida com frequência diante da complexidade e do ineditismo da situação descortinada e suas peculiaridades antecedentes e consequentes. Pelo seu frescor, até que alguma comprovação de natureza factual ou histórica se imponha, interpretações e análises apresentam-se como hipóteses em relação ao início e às consequências desta pandemia.

A megalomania do ser humano e sua arrogância em relação às demais formas de vida no planeta levou a crença de que qualquer ameaça à humanidade e seu modo de vida seria causada por forças cataclísmicas como terremotos, tsunamis ou o preferido meteoro. Então a espécie humana vê-se, mais uma vez, ameaçada por um micro-organismo ameaçadoramente invisível, transmissível pelo ar e com uma capacidade de sobrevivência fora do organismo infectado suficiente para gerar protocolos de higienização e manipulação de materiais custosos em termos de tempo, recursos e temores.

O tsunami, de fato, foi produzido nas redes sociais. Com o distanciamento social, a migração das atividades provocou a necessidade de uma curadoria criteriosa em relação aos posts de jornalistas, analistas, humoristas e demais conteúdos que transbordam pelas telas dos dispositivos conectados à internet.

Navegação cautelosa desviando do lixo que flutua nesse mar virtual. Atenção às caras novas, às credenciais inconsistentes e ao serviço ainda não prestado ao debate e à cidadania. Nisso surgem muitos profissionais de qualidade, mais ou menos experientes, sem espaço na mídia corporativa, que migraram para a web ou já iniciaram sua atividade neste ambiente. De fato se pode acompanhar muita gente boa no Brasil e no mundo seja pelos vídeos no Youtube, nos podcasts ou no Twitter.

Essa janela virtual que se abriu para um mundo novo, admirável ou não, permite analisar o primeiro elemento que modela nossa realidade: os algoritmos.

Nestes dias falamos deles sem qualquer cerimônia. Pensar que até os dias da Cambridge Analytica nosso contato com os algoritmos era mais vulgar e inofensivo, obviamente por ingenuidade, quando tentavam nos influenciar na compra de um determinado produto. As coisas foram ficando sérias. Os algoritmos começaram a filtrar informação, inclusive das nossas próprias redes sociais. Começaram a atuar vinculados a robôs e na propagação de mentiras e desinformação. E, por fim, a exercer um efetivo papel na manipulação da opinião pública. Eleições foram decididas com sua utilização, o Brexit também foi. E, além disso, de forma voluntária, abastecemos os algoritmos a cada instante com nossas preferencias, opiniões, conexões, deslocamentos e tudo mais que faz parte da nossa vida e que fica ao alcance do nosso celular.

Com toda a nossa sociabilidade, tanto nas atividades de lazer quanto nas atividades profissionais, concentradas quase que exclusivamente na internet e nas redes sociais, proporcionamos em volume e qualidade todas as informações necessárias para que a inteligência artificial, na forma de robôs e de algoritmos pudessem se apropriar de forma decisiva de todas as dimensões da vida em sociedade. Com a informação disponível na rede, sob a forma de tutoriais, textos e imagens, podemos programar robôs e algoritmos para ministrar seções de yoga, dar aulas de tênis ou assar um churrasco. Ou seja, mesmo que por ora ainda faltem-lhes braços e pernas todo o conhecimento para emular e substituir os indivíduos humanos na realização de atividades concentra-se cada vez mais na rede e na inteligência artificial. Hoje, podemos afirmar, não há área das atividades humanas que não esteja mais ou menos permeada pelo avanço da inteligência artificial num esforço permanente de substituição do trabalho humano.

A utilização da internet em seus variados graus, em virtude do distanciamento social, também permitiu que empresas passassem a utilizar o home office ou trabalho remoto, conforme as condições oferecidas ao trabalhador. Tal prática lhes permite prescindir das instalações físicas. Em perspectiva, lembramos que nos anos 1990 uma empresa demonstrava saúde financeira e solidez por possuir uma sede física.

Nos anos 2000, sob a orientação da liberdade do capital, a ordem era desimobilizar e focar os investimentos no core business da empresa. A compra de uma sede passou a ser vista como heresia diante da necessária liquidez dos recursos financeiros.

Chegamos então, neste período da pandemia, à oportunidade de transcender a limitação do escritório físico e passar a controlar o trabalho pelo login, pela produtividade, pelas entregas e cumprimentos de prazos ou mesmo pela mera presença frente à câmera vídeo.

Pelo menos duas implicações resultam dessa reorganização da estrutura das empresas: em primeiro lugar, a óbvia economia de recursos das empresas com aluguéis, com o transporte dos funcionários e das despesas acessórias ao funcionamento de um escritório, agora transferidas para a casa de cada trabalhador. Destaque-se que o home-office e o trabalho remoto por definição se distinguem em virtude dos recursos aportados pela empresa para que o trabalhador realize suas atividades em sua casa.

A segunda implicação se dá pela constatação de que muitas empresas e profissionais liberais não voltarão a ocupar essas instalações.

Os impactos sobre o mercado de locações comerciais deverá sofrer alterações expressivas. Da mesma forma, grandes bancos, que deverão aproveitar o momento para “racionalizar” suas estruturas fechando agências e reduzindo pessoal, e os shoppings precisarão fazer uma “reengenharia” para ocupar espaços deixados por empresas falidas e outras que passarão a ocupar espaços reduzidos.

Esse reposicionamento dos bancos e dos shopping-centers imediatamente no remete àqueles fundos de investimento imobiliários (FIIs) que sempre ofereciam como atrativo justamente o fato de financiar a construção ou obter a propriedade de imóveis e receber aluguéis de empresas (triple)AAA prometendo retornos sustentáveis. No momento se observa uma redução de faturamento de 70% dos shoppings. E agora?

Podemos assumir que, de fato, temos duas crises paralelas, a crise sanitária do coronavírus e uma crise capitalista, a primeira oportuniza um ajuste das práticas capitalistas e uma correção” no preço dos ativos mobiliários e imobiliários. Pelas lições da história já aprendemos que esses momentos de correção resultam em uma grande transferência de poupança do pequeno poupador de classe média para os capitalistas, rentistas e suas empresas. Essa transferência ocorre tanto pela perda de capital nos investimentos em renda variável (ações e fundos de investimentos), quanto pela falência e encerramento das operações de pequenos negócios.

Para essa crise estrutural do capitalismo a pandemia do coronavírus atua como catalisador. Ao mesmo tempo em que as inconsistências do sistema vão se tornando insuperáveis, será a pandemia o evento que poderá permitir um realinhamento do sistema. Ao menos quatro grandes dimensões dessa crise podem ser identificadas com relativa facilidade: a crise de acumulação capitalista que leva a uma progressiva redução nas taxas de retorno das atividades produtivas tanto pela redução e empobrecimento do número dos consumidores, quanto à uma progressiva migração dos capitais para o mercado financeiro que oferece retornos maiores quase sempre vinculados a esquemas mirabolantes que no final exigirão resgate estatal sob o risco/ameaça de crise sistêmica.

A crise social que se aprofunda com o empobrecimento das populações trabalhadoras do mundo, com a supressão de mecanismos de proteção e assistência social, com a redução agressiva do estado de bem estar social existente em países da Europa e com a progressiva supressão, através do sucateamento, de serviços públicos de educação e saúde em países periféricos como podemos observar diariamente no Brasil.

Em relação aos serviços de saúde, o NHS na Inglaterra e o SUS no Brasil, oferecem exemplos paradoxais. Perseguidos e sucateados passam agora, com o conjunto de seus trabalhadores, à linha de frente dos salvadores da pátria. Contudo, parece claro, que tal eficiência será credencial para as próximas privatizações.

A crise sanitária, que também é um desdobramento da crise ecológica e ambiental, vem revelar a proximidade invasiva e cada vez maior do homem seja sob a forma de ocupação e exploração de espaços e espécies, seja sob a forma de manipulação direta de organismos vivos. De qualquer maneira essa crise de saúde pública provocada por um organismo microscópico também desnuda, de forma irônica, a arrogância egocêntrica da espécie humana diante da natureza. As ameaças imaginárias viriam do espaço sob a força de seres superiores ou da própria natureza sob a forma de forças titânicas sempre devastadoras. Mas o que de fato veio impedir as viagens, os cruzeiros, as compras e as visitas aos shopping centers é um invisível e desafiador vírus, que ao invés de ser combatido com lasers e robôs que fazem cirurgias fantásticas, exige “apenas” que as pessoas fiquem dentro de casa. Touché!

A crise geopolítica também mesclada com a pandemia expressa seus desdobramento globais e regionais. No âmbito global após um longo trajeto de desenvolvimento econômico e de recuperação “civilizacional” a China efetivamente se lança contra a hegemonia norte-americana. Tendo iniciado seu projeto de reaproximação com o ocidente e com o sistema capitalista nos anos 1970 em parceria com seu atual antagonista, de mãos dadas, promoveram diferentes ondas de globalização da economia. As marolas da reengenharia, do downsizing, do offshoring, da terceirização, da “pejotização” e, por fim, a da absoluta precarização autogerida, travestida de empreendedorismo, reconfiguraram o mercado de trabalho e enquanto extraíam maior produtividade destruíram a estabilidade no emprego, reduziram a renda do trabalhador e gradualmente solaparam o poder de negociação dos sindicatos.

Em compasso com seu desenvolvimento econômico a China vai se posicionando com parceiro comercial destacado de um grande número de países, inclusive em regiões onde a presença norte-americana era incontestável, como é o caso da América Latina. Podemos observar os casos relevantes da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da controvertida Venezuela que progressivamente ingressaram na esfera de influência comercial, política e financeira chinesa, estabelecendo novos espaços para a disputa da hegemonia norte-americana. Não por acaso recrudescem as ações de manipulação e de interferência dos Estados Unidos na política latino-americana.

Ainda faz-se crescente a pressão chinesa com a nova iniciativa da Rota das Sedas, empreendimento que une a Ásia, a Europa e o Oriente Médio aproximando em sua articulação o Irã e a Rússia. Nesse sentido materializando o risco, apontado há décadas por Brzezinski, de que o verdadeiro risco a hegemonia norte-americana surgiria com a emergência de um ator euroasiático.

É no contexto de todas essas crises combinadas, no qual a vida da sociedade migrou em grande parcela para as interfaces digitais, que nos deparamos com outra situação crítica.

Se durante anos as empresas do Vale do Silício posaram de nice guys com CEOs² vestindo camiseta e mocassins e oferecendo ambientes de trabalho descolados nos quais se podia trabalhar de chinelos, trazendo o skate e o cachorro, agora observamos que os esquemas para extração de produtividade não diferem das empresas tradicionais e pior, a expectativa de empresas descoladas com uma cultura de compartilhamento, se esfarela diante dos (tecno)monopólios tipicamente capitalistas. Na festa dos algoritmos vive-se uma esquizofrenia entre uma sugestão ilusória, muitas vezes sedutora, de colaboração e compartilhamento e uma realidade de monopólio e ultraliberalismo. Não por acaso na crise financeira provocada pela pandemia observamos uma valorização das ações das empresas representadas pelo acrônimo FAANG³ (Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Google) tanto pela sua consolidação monopolística, quanto pela sua posição como provedores da vida social e profissional em tempos de quarentena. Se adicionarmos a essa lista a Microsoft o clube estará completo.

Para falar em ultraliberalismo convém falar em Peter Thiel. Fundador da PayPal e um early investor no Fabebook é considerado um ultraliberal ou um anarco-capitalista. Acredita que indivíduos que possuem acesso aos meios financeiros e tecnológicos não podem ter suas ações limitadas pelo estado. O único limitador é a capacidade individual. Obviamente essa corrente de pensamento é contrária a qualquer iniciativa de ordem socialista.

A partir dessa contraposição entre liberalismo e socialismo esse grupo de ultraliberais crê e propaga o chamado dark enlightment, movimento reacionário, antidemocrático e anti-igualitário, que prega que a Era do Iluminismo trouxe para a sociedade uma organização social e política de maior liberdade, democracia e conquistas sociais. E que o debate e a reflexão racional derivados do iluminismo levam à conclusão última de que o melhor arranjo social deve ser de corte socialista. Por isso, o debate e a razão devem ser negados e afrontados. Diante da inevitabilidade das conclusões racionais do iluminismo a opção é sua obstrução. A negação ao debate, ao diálogo e à reflexão.

Indivíduos como Peter Thiel acreditam que a pandemia do coronavírus poder funcionar como um acelerador para a superação do atual estágio político e social para ingressarmos numa era de maior liberdade para os mais “capazes”. Conceitos como racismo, misoginia e eugenia também são compartilhados por este grupo.

No Brasil há alguns anos, com perplexidade, observamos uma crescente e progressiva negação da razão. Fenômeno curioso e cômico, de início, quando manifestantes diziam que “a terra é plana” ou “o nazismo é de esquerda”, parecia sugerir mera manipulação da ignorância. Essa é uma característica da sociedade brasileira na qual uma grande parcela da classe média não faz sua cultura acompanhar seus ganhos materiais e também não percebe a cultura como bem de consumo. A cultura sempre incomoda e desacomoda.

Contudo, aos poucos, aqueles arroubos de ignorância foram demonstrando sua organicidade e sua função programática. Desde o simples e popular aforisma de Goebbels de que “uma mentira repetida mil vezes…” até a concepção mais sofisticada e obscura dos neofascistas de que é necessário negar a razão, pois dela necessariamente brotarão conclusões voltadas à democracia e ao socialismo, faz-se necessário suprimir a própria razão com a negativa ao debate e o cotejo de ideias, como também é estratégica a intimidação física.

No meio dessa grande confusão, que também desempenha sua função junto à opinião pública, insegura de suas opiniões e conhecimentos, começamos a observar na chamada disputa da narrativa uma progressiva reinterpretação histórica de viés conservador. Aspectos relativamente consolidados da história nacional passam a ser disputados por um grupo de indivíduos de atuação acadêmica, política e cultural obscura, ou nem isso, com a intenção de estabelecer uma narrativa conservadora e neofascista. A convergência ao ideário dos neoconservadores norte-americanos, traduzida nas atividades de Steve Bannon, assessor de Trump, conhecido por promover a agenda conservadora e neofascista em diferentes países, deixa claro que o que era tomado por ignorância orgulhosa e autocelebrada, na verdade fazia (e faz) parte de uma estratégia ampla de dominação do espaço político, de doutrinação e de interdição do debate público no Brasil.

As expressões Guerra Híbrida e Dominação de Espectro Total assam a ser discutidas e a, lamentavelmente, fazer sentido em todos os seus detalhes. E nesse sentido, a pandemia também tem seu efeito acelerador. Nesse contexto vivemos uma realidade marcada pela ambiguidade ou duplicidade de conotações. O atual governo ao manifestar-se sobre determinado tema, a questão do uso da cloroquina, por exemplo, reclama que o debate está sendo politizado e polarizado e ao mesmo tempo se beneficia para avançar com sua proposta uma vez que o debate fica reduzido à questão política e a própria ciência acaba sendo tragada por essa polarização.

Muitos exemplos importados das estratégias políticas do presidente norte-americano também vão deixando clara a organização e o planejamento desse governo de extrema-direita no Brasil. Os ataques e as polêmicas se dão em todas as frentes: na educação, no preconceito aos gays, no comportamento misógino, no enaltecimento a ditadura militar e a tortura, no racismo, na devastação ambiental e ataque aos povos indígenas, entre outros. Ou seja, as forças de oposição atônitas e excluídas do debate público sobre essas questões, porque muitas vezes depende de recursos e espaço providos pelo próprio estado, se vê desnorteada porque agora o debate deixa de estar orientado pelo saber científico e acadêmico desenvolvido e atualizado. O debate agora é político. Deriva de opiniões pessoais, de ideias científicas e acadêmicas extravagantes ou ultrapassadas e, eventualmente, de convicções baseadas em posições religiosas, costumes conservadores ou manifestações infantilizadas que negam a própria realidade.

Da mesma forma a condução da economia também passa a ser ultraliberal. Teorias ultrapassadas e despreocupadas com o crescimento e o desenvolvimento econômico do país são colocadas em prática com a finalidade de liquidar o patrimônio público, controlar os investimentos de despesas do estado, eliminar os direitos trabalhistas e promover a reinserção subordinada do Brasil no sistema capitalista internacional através da reprimarização da economia e do fornecimento de mão de obra barata.

Nesse liberalismo, que nos faz lembrar o Brasil pré 1930, é retomada a vocação do país como produtor/exportador de produtos primários. Almeja-se um retorno àquela posição rompida à duras penas pelo Brasil em 1979, quando as exportações de produtos com valor-agregado, produtos industrializados e semimanufaturados, superaram as exportações de produtos primários.

Com o deslocamento das manufaturas dependentes de mão de obra barata para a China e o sudeste da Ásia, essa opção fecha-se ao Brasil. Resta retornar ao estágio anterior, aquele marcado pela periferização das indústrias dos países centrais que caracterizou nossa industrialização dependente. Esse processo incompleto e limitado, apesar de ter colocado o Brasil numa posição de relativa vantagem econômica e tecnológica em relação aos demais países subdesenvolvidos, nunca foi levada às suas últimas consequências como vetor efetivo de modernização e de conquista da soberania nacional. Tendo obtido resultados parciais, adequados às conveniências das empresas multinacionais investidoras no país e da parcela do empresariado nacional que lhe emulava as ideias e as práticas, logo conheceu a contramarcha imposta pela abertura econômica e o neoliberalismo gradualmente impostas ao país a partir da redemocratização.

É pela alavanca das relações exteriores que um país articula sua estratégia de inserção internacional. Seja ela autonomista ou subordinada. Desde os tempos do Barão de Rio Branco a dimensão estratégica da relação com os Estados Unidos determinou a atuação da diplomacia brasileira. Diferentes momentos de aproximação e afastamento em relação ao ator hegemônico marcaram o desenvolvimento das relações exteriores do Brasil. Mesmo a concepção de que o Brasil cumpriria no hemisfério sul o papel de liderança e mantenedor do equilíbrio e da segurança sub-regional, tanto por emulação, quanto por delegação tácita, determinaram ao longo da história a política externa brasileira.

Ainda assim o adesismo acrítico à política externa dos Estados Unidos apareceu em poucos momentos da nossa história diplomática.

No presente momento o exotismo intelectual colocado à frente do Itamaraty, a saudação a bandeiras estrangeiras, a subordinação dos interesses soberanos aos de outras nações e a renúncia à pauta desenvolvimentista contida nas iniciativas da relação sul-sul marca, possivelmente, o momento de menor apego as tradições de profissionalismo, de multilateralismo e autonomismo na condução das relações externas do Brasil.

A própria pandemia é uma dimensão das relações internacionais. Por mais técnicos que pareçam os debates, no combate a pandemia, as premissas que norteiam a tomada de decisão sempre serão de dimensões políticas e ideológicas. Assim como na totalidade das decisões da administração pública (e privada também). Tal debate já resta esclarecido desde a ilusão propagandística dos anos Clinton/Blair/FHC e da terceira via.

Assim, a pandemia é um momento totalizante em nossas vidas. Desde a nossa sobrevivência até o futuro de nosso país são questões postas na mesa.

Desde questões sobre as quais podemos nos posicionar com clareza acadêmica ou profissional até outras nas quais temos de refletir e opinar intuitivamente, a cada dia somos engolidos por um volume de informações e temas, alguns dos quais absolutamente originais, que exigem apreciação e nos cobram posicionamento.

Ao dormir tememos de perder alguma coisa, seja um golpe militar, uma renúncia, uma nova quebra da bolsa de valores ou uma insurreição popular. Ao mesmo tempo é um momento de efervescência cultural e informacional. Muita gente vem às redes compartilhar informações, opiniões, produzir debates e desinformação. A relevância é variável. De um lado a intensão de esclarecer, de informar e, sobretudo, de demarcar o terreno no qual temos informação, fato histórico e interpretação correta daquele no qual há a mentira, a manipulação e o revisionismo. A disputa de narrativas colocou direita e esquerda (sem nomear os matizes e sectarismos) numa disputa permanente. Mas nessa corrida, por enquanto, a estratégia fascista de ditar a pauta vai levando vantagem. Já foi mais ampla!

Esse momento de algum modo lembra os anos 1980. Naquela época uma parcela da sociedade participava de um movimento coletivo que na expectativa da abertura política buscava aprender rapidamente toda aquela enxurrada de ideias, conceitos informações que caía sobre nós com o relaxamento da censura.

A saudosa coleção Primeiros Passos, da Editora Melhoramentos, era fiel companheira nestes debates iniciais e mobilizadores da consciência crítica. O que é ideologia? O que é marxismo? O que é reforma agrária? O que é semiótica? entre centenas de outros títulos estimulavam os debates regados a muito chimarrão e entrecortados por partidas de truco. Entre aquele momento e o atual se percebe que na espiral da didática e da crítica avançamos qualitativamente. Apesar de algumas retomadas conceituais, provocadas pela ignorância (ingênua) ou pela má-fé programática, neste momento do debate da vida política, no plano geral, nos encontramos noutro patamar.

A apropriação e a militância de diversos grupos sociais em torno de temas progressistas e humanistas têm permitido que o debate proposto por muitos jovens já surja com qualidade. Da mesma forma que o debate crítico ao capitalismo em suas dimensões globais e estruturais, das dificuldades, equívocos e sabotagens ao desenvolvimento do Brasil também estão estabelecidos noutro patamar.

Mesmo que o dito acima seja indissociável das questões pessoais este artigo ficaria incompleto em sua pretensão de ser um relato dos dias de pandemia sem uma visão do cotidiano.

A vida familiar se divide entre cuidar do presente dos adultos e a preocupação com o futuro da próxima geração. A materialidade da situação se impõe a todos. A reflexão sobre a finitude da vida, mesmo em situações de conforto, higiene e capacidade de realizar o distanciamento social se impõe. São dias seguidos de memento mori! Oscilamos entre os planos para o futuro e o risco da contaminação, às vezes, várias vezes no mesmo dia. Ao olhar pela janela através do ar espesso parece que o tempo desacelera e causa vertigem. As ruas, lojas, escolas e demais estabelecimentos comerciais vazios também tornam o ar mais denso. A calmaria e o silêncio antecipam a tormenta econômica e social que se avizinha.

Antes desse novo normal, que ninguém sabe como será e que ilusoriamente afetará a vida dos outros mais do que a nossa, muito se tem falado sobre a angústia, a depressão e as mortes causadas pelo isolamento social, pelo empobrecimento e falta de perspectivas. Amigos e colegas organizam atividades solidárias que nos dão a oportunidade de participar e ajudar aqueles em necessidade. É pouco! É o começo! E aí, mais uma vez, o pessoal escorre novamente para o social e o político.

Pensando num novo normal, que alguns dizem ser pós-capitalista, lembramo-nos do alerta de que a humanidade é ótima para desenvolver novas tecnologias, mas péssima para distribuir seus frutos. Mesmo assim alguns autores e pensadores sugerem que uma nova economia da gratuidade e do compartilhamento poderá surgir. Assim como a renda mínima universal permanente. Num certo sentido para os países onde o estado de bem-estar social resiste e prospera, a implantação de renda mínima é um pequeno passo. E a gratuidade é quase uma realidade considerando o acesso aos serviços públicos e a assistência social de qualidade decorrente de seus sistemas tributários.

Ao longo da história a tecnologia sempre flui do centro do sistema para sua periferia. Podemos imaginar que no centro do sistema se estabeleça um novo arranjo social, talvez, até mesmo a economia do decrescimento sugerida pelos holandeses, que chegará na periferia do sistema com aplicações variáveis de tipo e intensidade. Não muito diferente dos atuais processos de desenvolvimento econômico, industrialização/desindustrialização, transferência tecnológica e concessão de espaços para sua maior ou menor integração ao sistema e aos fluxos internacionais.

Possivelmente a grande questão a ser resolvida é: uma vez que a tecnologia tenha eliminado todos os bullshit jobs, para usar a expressão de David Graeber, que a inteligência artificial tenha assumido boa parte das atividades profissionais, qual o espaço restará para o trabalho humano? Este também tende a desaparecer? E se tal ocorrer por que o capitalismo se disporá a sustentar uma população que perdeu sua utilidade? Será o futuro da renda mínima universal um mecanismo malthusiano de manutenção e controle da massa desnecessária ao processo produtivo tecnologizado?

Na busca de respostas utopias e distopias vem à lembrança. Morus retrata a mudança de vida na Inglaterra pré-industrial com os camponeses perdendo status para as ovelhas num regime absolutista. Bradbury e Orwell nos mostram a sociedade controlada pelo poder autocrático nas quais a liberdade individual está controlada e acuada. No cinema, o Rollerball, de Norman Jewison mostra uma sociedade dominada pelo “sistema”, expressão adorada nos anos 1970, numa base de pão e circo e o desafio lançado por seu grande campeão ao romper seu estado de consciência ingênua.

Mais novo é o Elysium, de Neill Blomkamp, no qual a terra é retratada como um lixão povoado por sobreviventes enquanto a elite vive numa estação orbital em belas casas com jardins e piscinas. Situação que em nada se distancia da realidade atual de diversas cidades do mundo.

Em comum todos esses filmes mostram o esgotamento do sistema no sentido das recompensas que podem ser oferecidas ao cidadão. No limite, antes da reformulação das recompensas surge a violência. O sistema oferece a morte. A violência da repressão das manifestações, do gás lacrimogêneo e do joelho no pescoço. De novo a pandemia é emergência, é catalizador e é o mal-estar que nos impede de respirar.

¹ Professor, administrador, doutor em História. E-mail machado.srm@gmail.com.br

² Chief Executive Office. Em português: diretor-presidente ou executivo principal da empresa.

³ Sem desprezar o trocadilho com a palavra inglesa fang = presas, os dentes “caninos” com que os predadores atacam suas presas.

Referências utilizadas na escrita desse artigo

Livros

Brzezinski, Zbigniew. The Grand chessboard. Basic Books, 1997.
Cervo, Amado Luiz. Inserção Internacional. Saraiva,2008.
Graeber, David. Bullshit Jobs. Simon&Schuster,2018.
Mason, Paul. Pós-capitalismo. Cia das letras,2015.
More, Thomas. Utopia. Penguin, 2018.
REED, Lou. Atravessar o fogo: 310 letras. Cia das Letras, 2010.
15

Cinema

1984. Michael Radford, 1984.
Elysium. Neill Blomkamp, 2013.
Farenheit 451. François Truffaut, 1966.
Rollerball. Norman Jewison, 1975.

Outra mídias

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