Pobre nação: Honduras está sendo comida por dentro e por fora
Dossiê n. 39
Uma publicação feita em conjunto com Peoples Dispatch e o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh)
Pobre nação que celebra o valentão como herói
e que considera magnânimo o conquistador resplandecente
– Khalil Gibran, Pobre nação, 1933
Parte 1: o golpe de 2009
Em 28 de junho de 2009, o presidente Manuel Zelaya foi deposto em um golpe de Estado engendrado pela oligarquia hondurenha e pelo governo dos Estados Unidos. As reverberações do golpe estendem-se até hoje em Honduras, que continua lutando para manter sua soberania política.
Nas últimas sete décadas, a interferência do governo estadunidense comprometeu seriamente a soberania política de Honduras. Os Estados Unidos planejaram golpes no Haiti (1991 e 2004) e na Bolívia (2019), bem como deram início, a partir de 1999, a um processo de golpe de longo prazo – fracassado – contra a Venezuela.
Por que Zelaya foi deposto? Nada em sua história pessoal – filho de fazendeiro, empresário e gerente do Conselho Hondurenho da Empresa Privada (Cohep) – ou na de seu partido, o Partido Liberal de Honduras (PLH), sugeria que pudesse vir a se radicalizar ou ser vítima de um golpe. Eleito em 2006, Zelaya enxergou a importância de uma ampla agenda de reformas.
Grandes disparidades e debilidades sociais em Honduras atrasaram o progresso social do povo hondurenho, motivo pelo qual o governo de Zelaya introduziu a educação pública e gratuita para crianças, uma valorização do salário mínimo e uma série de políticas de bem estar social, incluindo transferências de renda e energia elétrica gratuita. Já se sabe que as injustiças sociais não podem ser superadas se os direitos das mulheres forem deixados de lado, então Zelaya vetou um decreto que buscava proibir as pílulas contraceptivas de emergência – a chamada “pílula do dia seguinte” – (uma medida revertida imediatamente pelo regime golpista). Como consequência das medidas tomadas por Zelaya em seu governo, a pobreza absoluta foi reduzida em Honduras.
Em 2009, Berta Cáceres Flores, líder e cofundadora do Conselho Cívico das Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), refletiu sobre os motivos do golpe:
Porque os ricos, os oligarcas, a ultradireita – assessorados pela máfia de Miami, a contrarrevolução cubana e venezuelana, que [também] assessoram esses golpistas – o que os preocupava era a possibilidade de que o povo hondurenho pudesse decidir sobre recursos estratégicos como a água, os bosques, a terra; sobre nossa soberania, os direitos trabalhistas, o salário mínimo, os direitos das mulheres – para que sejam direitos constitucionais –, a autodeterminação dos povos indígenas e negros. Tantas coisas que nós, como povo hondurenho, sonhamos; a possibilidade de ter um Estado e uma sociedade inclusiva, democrática, com equidade e participação direta. Os oligarcas golpistas sabem de tudo isso. Por isso é golpe. E esse golpe de Estado é contra todos os processos de liberação de nosso continente
Para fazer avançar ainda mais a agenda de reformas, Zelaya firmou a adesão de Honduras ao processo de integração regional da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e à PetroCaribe, um acordo social democrata que fornece petróleo venezuelano à baixo custo para a região. Até esse momento, a indústria de combustível de Honduras estava entregue às grandes gigantes do petróleo. Zelaya procurou mudar essa relação, submetendo a indústria de combustíveis a um processo de licitação internacional, que permitiu a Honduras ganhar 200 milhões de dólares da Esso, Shell e Texaco. Devido à adesão de Honduras à Alba, os laços com Cuba se estreitaram. Cerca de 480 médicos cubanos já estavam no país desde o furacão Mitch, em 1998. Em 2009, centenas de hondurenhos haviam se formado na Escola Latino-Americana de Medicina (Elam), em Cuba, e trabalhavam para construir a instituição de saúde pública. Alguns, como o Dr. Luther Castillo, membro da comunidade Garífuna, atuou no governo Zelaya como vice-ministro de Cooperação com a Alba.
As reformas domésticas irritaram a oligarquia, enquanto a ligação com o processo da Alba irritou Washington. O embaixador dos Estados Unidos, Charles Ford, descreveu Zelaya, de maneira cruel, como “quase uma caricatura de um proprietário de terras e caudilho, em termos de estilo e tom de liderança”. Ford acusou Zelaya de estar em dívida com “interesses poderosos e não identificados”. Os dias de Zelaya estavam contados.
Zelaya propôs a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte para revisar a Constituição de 1982, que havia sido escrita após um longo período de ditadura militar – de 1955 a 1982 – para defender os interesses de corporações americanas, como a United Fruit (o embaixador dos EUA em Tegucigalpa era conhecido coloquialmente como o “pró-cônsul”). Os movimentos populares apoiaram a ideia, enquanto a oligarquia e o governo dos Estados Unidos se opuseram, alegando que uma nova Constituição poderia aprofundar o processo de reforma social em Honduras.
Para as eleições de novembro de 2009, Zelaya propôs que, além de votar em um novo presidente, parlamentares e representantes municipais, o eleitorado também votasse para uma Assembleia Nacional Constituinte em uma quarta votação. No entanto, ele queria deixar a questão sobre haver ou não uma quarta votação para o povo hondurenho; em março de 2009, ele propôs que a questão fosse votada em um referendo no dia 28 de junho de 2009. Uma campanha suja da oposição começou a sugerir que Zelaya queria estender seu mandato, embora ele tivesse dito ao El País, em junho de 2009, que planejava deixar o cargo quando seu mandato terminasse, em janeiro de 2010. No mesmo dia em que o povo hondurenho deveria votar no referendo, os militares prenderam Zelaya e dissolveram seu gabinete.
A Assembleia Geral das Nações Unidas condenou o golpe, assim como o presidente dos EUA, Barack Obama (ainda que sua secretária de Estado, Hillary Clinton, o contradisse imediatamente). O papel dos EUA no golpe requer alguma explicação. Superficialmente, o governo dos Estados Unidos, incluindo seu embaixador em Honduras, Hugo Llorens, disse publicamente que, embora seu país se opusesse à direção que Zelaya havia tomado, também se opunham a um golpe contra a Constituição de 1982. Enquanto isso, sob a superfície, os militares dos EUA, representados pelo comandante do Grupo Militar dos EUA em Honduras, coronel Kenneth Rodriguez, estavam em contato direto, com o chefe do exército hondurenho, general Romero Vásquez Velásquez, durante todo o golpe. Vásquez foi treinado na Escola das Américas em Fort Benning, Geórgia, em 1976 e em 1984.
Em e-mails vazados, a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, argumentou contra seguir o processo da Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio do qual os aliados de Zelaya na Alba poderiam ter conduzido a agenda e provavelmente o restaurado ao cargo. Em vez disso, Clinton pressionou para que as negociações ocorressem na Costa Rica, onde ocorreram as deliberações de San José entre o regime golpista e o governo de Zelaya, sob o olhar atento do presidente costarriquenho, Óscar Arias, aliado dos Estados Unidos. O resultado final da atuação de Clinton foi legitimar o golpe. Estava claro que os Estados Unidos queriam anular as políticas impulsionadas por Zelaya, e os chefes militares hondurenhos – próximos às autoridades estadunidenses – concordaram.
Não há nada de novo sobre a intervenção militar dos EUA no país. Na década de 1980, Honduras foi usada como plataforma de lançamento para guerras de desestabilização apoiadas pelos Estados Unidos contra os povos de El Salvador e da Nicarágua. No mesmo período, os Estados Unidos assumiram o comando da Base Aérea de Soto Cano (Palmerola), nos arredores de Tegucigalpa, em benefício de seus próprios interesses, inclusive para levar a cabo a guerra suja infligida contra El Salvador e Nicarágua. Décadas depois, Zelaya queria transformar aquela base em um aeroporto comercial, ideia à qual o governo dos Estados Unidos se opôs. Em 2008, o embaixador dos EUA, Charles Ford, escreveu que os EUA precisavam manter um “perfil público discreto”, enquanto trabalhavam para “proteger os interesses de segurança dos EUA em Soto Cano”.
Depois que Ford deixou seu cargo de embaixador, ele foi trabalhar no Comando Sul dos EUA (Southcom), o comando de combate dos EUA para a América Latina e o Caribe. Após ser preso, Zelaya foi levado a Soto Cano. Soldados estadunidenses comandavam a torre de controle, que deu permissão de voo à aeronave que levou Zelaya ao exílio na Costa Rica. A avaliação do Southcom sobre a situação política prevaleceu sobre qualquer hesitação liberal sobre o golpe: “Para derrotar Zelaya, o governo de facto [de Roberto Micheletti] precisa apenas durar até novas eleições”. Essa eleição foi realizada em novembro de 2009 sob o regime militar. Resultou na vitória de Porfirio Lobo Sosa, do direitista Partido Nacional, que reverteu o processo de reforma iniciado por Zelaya.
Parte 2: O rápido declínio em direção à extrema direita
Imediatamente após o golpe, os militares e a polícia prenderam e perseguiram aqueles que se opunham. As ameaças e atos de violência não cessaram com a eleição de Lobo, e pelo menos dezoito jornalistas, defensores de direitos humanos e líderes de movimentos foram assassinados nos meses posteriores à sua posse.
Nenhum desses casos documentados de violência, perpetrados pelo regime golpista, pode chegar aos tribunais. Isso se deveu principalmente às ações da Suprema Corte, que endossou o golpe no dia em que este ocorreu, rejeitando quaisquer recursos constitucionais que desafiavam o governo Micheletti e removendo – em maio de 2010 – quatro juízes que questionaram a legalidade do golpe. Apesar de suspender imediatamente os auxílios após o golpe, o governo dos Estados Unidos logo voltou a oferecer ajuda militar, além de verbas via Usaid e por meio da Iniciativa Mérida contra o tráfico de drogas. O governo Obama fez lobby abertamente para os governos de Micheletti e Lobo; sua ajuda militar e civil validou publicamente o reconhecimento do regime golpista pelos Estados Unidos.
O governo de Lobo concedeu anistia aos golpistas, entre os quais Juan Orlando Hernández, que se tornou presidente do Congresso em janeiro de 2010. Hernández usou seu cargo para criar uma ditadura efetiva do Partido Nacional, com os militares dando apoio a cada passo. Houve a Lei contra o Financiamento do Terrorismo (2010), a Lei Especial sobre Intervenção das Comunicações Privadas, conhecida como Lei das Escutas telefônicas (2011) e uma lei que criou o Conselho de Segurança e Defesa Nacional (2011). Essas leis enfraqueceram o Congresso e o Judiciário e centralizaram o poder no gabinete da Presidência. Diante de juízes que não quiseram seguir com os planos de privatização de Lobo-Hernández e com o desejo deste último por um segundo mandato, Hernández demitiu juízes no meio da noite no que veio a ser chamado de “el golpe técnico” (o golpe técnico).
O impacto social da ilegalidade do regime golpista foi quase imediato. O Observatório de Violência da Universidade Nacional acompanhou o aumento da criminalidade. Os dados eram tão dramáticos que levaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA a divulgar relatórios que alertavam sobre o risco de Honduras cair na violência social generalizada. A CIDH observou, por exemplo:
Por anos, a Comissão Interamericana tem monitorado os altos níveis de insegurança em Honduras e seus efeitos no gozo efetivo dos direitos humanos. O Estado [hondurenho] reconhece que, na última década, tem sido um dos países mais violentos do mundo, tendo chegado em 2011 a uma taxa de 86,5 homicídios a cada 100 mil habitantes. Também indica que um fator gerador de violência está constituído pelo tráfico de drogas e pelo crime organizado, os quais se infiltraram em diversas instituições estatais.
Foi essa violência generalizada que fez com que as migrações em massa saídas de Honduras triplicassem nos anos posteriores ao golpe, inclusive em 2021.
Após o golpe, o embaixador cubano, Juan Carlos Hernández Padrón, abriu as portas de sua embaixada, com o apoio dos embaixadores da Nicarágua e da Venezuela, para proteger a vida daqueles que o golpe pretendia perseguir. A ministra das Relações Exteriores de Zelaya, Patricia Rodas, se refugiou lá após ficar claro o que os militares estavam vigiando-a.
Tendo legitimado o golpe e fortalecido a presidência, o candidato de direita e conspirador golpista Juan Orlando Hernández concorreu ao cargo em 2013 e venceu Xiomara Castro, esposa de Zelaya. Ele teve o total apoio do Partido Nacional de Honduras (PNH) e dos militares, assim como dos Estados Unidos. Alegações de fraude assombraram aquela eleição. Salvador Romero, que chefiou a agência eleitoral da Bolívia e que foi contratado pela agência paraestatal do governo dos Estados Unidos, o Instituto Democrático Nacional, trabalhou em Honduras durante o processo eleitoral. Confrontado com evidências de fraude e violência estatal – incluindo o assassinato de dois líderes do Centro Nacional de Trabalhadores Rurais (CNTC), María Amparo Pineda Duarte e Julio Ramón Maradiaga –, Romero disse ao New York Times que, apesar da “percepção geral de fraude”, a eleição havia sido legítima. O governo dos Estados Unidos apoiou essa avaliação, assim como as agências hondurenhas controladas pela oligarquia.
Novas estruturas, como a Força Nacional de Segurança Interinstitucional (Fusina) e a Polícia Militar de Ordem Pública (PMOP), possibilitaram a Hernández exercer controle sobre os militares e a polícia. Ambas as estruturas – já aderentes ao regime do Partido Nacional pós-golpe – tornaram-se agora institucionalmente subordinadas à presidência. Muitos funcionários importantes da PMOP foram treinados pelo Comando Sul dos EUA e vários deles foram acusados de assassinato, tortura e violência sexual. Uma atmosfera geral de impunidade invadiu o Estado de segurança nacional sob o regime presidencialista.
Essas duras medidas entraram em vigor para reverter os avanços social democratas de Zelaya e vender o país aos interesses gerais de setores chave do capital internacional (vendepatrias). Hernández aprovou uma série de leis para privatizar o setor de energia, água, seguridade social, saúde, educação e mineração. A moratória de Zelaya sobre as concessões de mineração foi revogada e as novas políticas colocadas em prática descartavam a possibilidade de qualquer consulta às comunidades que viviam nos territórios de mineração. Despejos de pobres – especialmente os indígenas – vieram junto com a garantia de concessões a empresas estrangeiras que tinham colaborações com algumas poucas famílias ricas de Honduras.
A situação dos indígenas e afrodescendentes piorou desde o golpe, com conflitos fundiários generalizados em torno de projetos de mineração e turismo. Existem cerca de 837 projetos de mineração em potencial em 35% das terras hondurenhas, de acordo com um relatório de 2015 da CIDH. Grande parte dos projetos de grande porte está em terras de indígenas e afrodescendentes, incluindo 98 concessões de mineração nos departamentos de Lempira e Santa Bárbara, onde vive o povo indígena Lenca e onde ocorre boa parte da organização do Copinh. Além disso, há 76 projetos hidrelétricos em 14 dos 18 departamentos do país.
Essas concessões foram consolidadas por meio da criação de Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zede), que permitem que empresas privadas, muitas vezes estrangeiras, gerenciem o trabalho e a terra livremente. Em outubro de 2012, o Supremo Tribunal disse que as Zede eram entidades jurídicas; isso foi depois estabelecido pela legislatura, em junho de 2013, na Lei Orgânica de Emprego e Zonas de Desenvolvimento Econômico.
Mais de trezentas concessões foram dadas a projetos hidrelétricos e uma centena de outras, a operações de mineração. Muitos dos projetos Zede abriram um terço da costa caribenha de Honduras ao turismo, portos e exploração mineral (incluindo petróleo). Uma combinação de isenções fiscais e investimentos garantidos com perdas zero proporcionou ao capital estrangeiro e hondurenho enormes vantagens. Ex-militares, como Roberto David Castillo Mejía, trocaram seus uniformes por ternos e lucraram com o regime golpista. Honduras está aberta para negócios, anunciou o regime militar do Partido Nacional.
Refletindo sobre as leis das Zede, Berta Cáceres Flores, da Copinh, afirmou:
as Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zedes), ou “cidades modelo”, são a renúncia total ao que restava da soberania do que se conhece como Estado hondurenho. Inclusive, as leis ou Tratados de Libre Comércio que venham a impulsionar sequer precisam passar pelo Congresso Nacional. É neoliberalismo puro; grandes extensões de território são entregues às transnacionais, que terão seu próprio exército, seu próprio sistema migratório, legislativo, seu próprio governo, seu próprio sistema de justiça. É tão tremendo que já integraram uma comissão, dizem eles, de “boas práticas”. É o discurso das transnacionais. Falam de “mitigação”. Há uma comissão de 21 empresários muito poderosos. Dezessete deles são estrangeiros. É uma das espoliações mais agressivas que já vimos e já estão definidos os lugares onde terão início. São territórios indígenas, negros, das comunidades camponesas e de pescadores do sul do país. É uma das coisas mais terríveis de que padece o povo hondurenho.
O regime golpista foi liderado por três administrações sob o Partido Nacional: Roberto Micheletti (2009-2010), Porfirio Lobo Sosa (2010-2014) e Juan Orlando Hernández (2014-presente). Cada uma dessas administrações está comprometida com a oligarquia e as forças militares hondurenhas e o governo dos Estados Unidos. Como consequência das políticas do regime golpista, as taxas de pobreza em Honduras aumentaram exponencialmente; em 2018, 62% da população vivia na pobreza, sendo 38,7% na extrema pobreza.
A natureza do regime golpista ficou clara mais uma vez em 2015, quando Hernández anunciou que buscaria a reeleição em 2017. Isso apesar do fato de que uma das razões alegadas para a derrubada de Zelaya foi ele supostamente buscar um segundo mandato, violando, assim, o limite constitucional. O Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) apoiou Hernández por uma votação acirrada, o que lhe permitiu levar o Partido Nacional às urnas. O pleito ocorrido em novembro de 2017 foi marcado por denúncias generalizadas de fraude. O fato de Hernández ter concorrido às eleições – apesar dos limites constitucionais antes usados como pretexto para derrubar Zelaya – e as comprovações de fraude marcam a natureza desse regime.
Do dia das eleições em diante, o país foi varrido por uma onda histórica de protestos, superando os níveis das mobilizações contra o golpe vistos em 2009. Bloqueios de estradas e manifestações foram registradas em 15 dos 18 departamentos de Honduras, organizadas em 150 pontos em todo o território nacional. A palavra de ordem, Fuera JOH [Fora JOH, iniciais de Juan Orlando Hernández], apareceu nos muros por todo o país. Essa continua sendo uma consigna chave das forças progressistas. Posteriormente, o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh) em Honduras investigou violações de direitos humanos; seu relatório de 2017 forneceu provas factuais da anulação da democracia em Honduras. O relatório detalhou a intimidação do Estado à oposição política e à jornalistas:
No momento da conclusão desse relatório, em 27 de janeiro, o Acnudh registrou que pelo menos 23 pessoas foram mortas no contexto dos protestos pós-eleitorais, incluindo 22 civis e um policial. Com base em seu monitoramento, o Acnudh considerou que pelo menos 16 das vítimas foram mortas a tiros pelas forças de segurança, incluindo duas mulheres e duas crianças, e que pelo menos 60 pessoas ficaram feridas, metade delas por munições letais.
Além disso, o Acnudh concluiu que ocorreram prisões em massa e que pelo menos 1.351 pessoas foram detidas entre 1 e 5 de dezembro por violarem o toque de recolher. O Acnudh também recebeu alegações confiáveis e consistentes de maus tratos no momento da prisão e/ou durante a detenção. Também recebeu denúncias de invasões ilegais em residências realizadas por membros das forças de segurança. Outra preocupação durante o período analisado é o aumento das ameaças e intimidações contra jornalistas, trabalhadores da mídia, militantes sociais e políticos.
O Comitê de Familiares dos Detidos e Desaparecidos em Honduras (Cofadeh) divulgou um relatório independente sobre a repressão após as eleições, estimando que pelo menos 33 pessoas haviam sido assassinadas entre 26 de novembro de 2017 e 23 de janeiro de 2018; 232 pessoas haviam sido feridas entre 26 de novembro e 31 de dezembro de 2017; e ao menos 1.396 pessoas haviam sido detidas, sendo que 117 foram processadas. No entanto, relatos da imprensa sugerem que esse número pode ser ainda maior, uma vez que, em 4 de dezembro, a já era reportado que ao menos 1.350 haviam sido presas.
Antes mesmo de a violência ter terminado, a porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Heather Nauert, parabenizou Hernández, usando a expressão clichê sobre a necessidade de um “diálogo nacional” para “curar a divisão política”. Depois que os EUA reconheceram a “vitória” de Hernández, outros países seguiram o exemplo.
Enquanto isso, registros de 2021 em tribunais dos EUA revelaram que a própria Agência Antidrogas do governo dos EUA tinha evidências de que Hernández, seu irmão Tony Hernández e o ex-presidente Porfirio Lobo haviam usado “o tráfico de drogas para ajudar a reafirmar o poder e o controle em Honduras”. Em 2018, foi aberto um processo contra Tony Hernández no Distrito Sul de Nova York, no qual figurava como figura central de uma operação para importar cocaína para os Estados Unidos. Os promotores estadunidenses disseram que Hernández “aceitou milhões de dólares em receitas de tráfico de drogas e, em troca, prometeu aos traficantes proteção contra promotores, forças de segurança e [mais tarde] extradição para os Estados Unidos”.
O promotor estadunidense Jason Richman acusou o presidente Hernández de receber um milhão de dólares em dinheiro do narcotraficante mexicano Joaquín “El Chapo” Guzmán, acusações que foram negadas pelo presidente Hernández. Essa avalanche de denúncias veio junto com o enfraquecimento das leis criminais em Honduras em benefício de conspirações criminosas, incluindo para o tráfico de drogas. Um exemplo disso é que, antes do tribunal altamente partidário ter concluído sua investigação, as alterações na lei do Tribunal Superior de Contas e no Código de Processo Penal enfraqueceram a capacidade do Procurador Geral de iniciar investigações de casos de corrupção e realizar buscas e apreensões surpresa de suspeitos.
O Congresso de Honduras aprovou um novo código penal em 2020, após quatro anos de debate feito por uma oposição enfraquecida e por instituições como a Missão de Apoio à Luta contra a Corrupção e a Impunidade em Honduras (Maccih), um órgão independente criado pela OEA para investigar a corrupção no país. A Maccih afirmou em um estudo detalhado que a nova lei “afetaria as ações de investigação e o processo judicial de crimes relacionados à corrupção no país”. Dois anos antes, em 2018, a Maccih entregou aos investigadores os resultados de um inquérito sobre alegações de corrupção contra funcionários do Partido Nacional. O “Caso de Corrupção de Pandora” revelou que 38 antigos e atuais membros do Congresso, a maioria dos quais do Partido Nacional, acusados de desviar fundos públicos para campanhas políticas e de receber dinheiro de traficantes de drogas. Vários deputados foram presos em julho de 2018, mas foram libertados pouco depois. Não é de admirar que a Maccih e outras instituições tenham sido prejudicados por essas “reformas”.
Parte 3: o ataque violento à esquerda hondurenha
Após o golpe de Estado, o país ficou paralisado durante meses por uma série de mobilizações em massa que exigiam a recondução de Zelaya. Protestos diários ocorreram em Tegucigalpa por meses, enquanto comunidades do interior dirigiam-se à capital em caravanas – primeiro, em carros, e depois que os militares tomaram seus veículos, a pé. Quase todos os movimentos sociais e políticos de esquerda e centro-esquerda se uniram durante essas mobilizações para formar a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP). Uma debate dentro do FNRP, sobre permanecer uma frente de mobilização ou se transformar em um partido político, teve lugar em uma série de grandes assembleias.
Dois anos após o golpe, em 2011, a FNRP, junto com uma série de movimentos populares e sindicatos, lançou o partido político Liberdade e Refundação, ou apenas “Libre”, com Zelaya como seu presidente. Gerardo Torres, secretário internacional do Libre, nos falou sobre os três blocos que compõem seu partido:
[uma parte é formada] por todas as pessoas do Partido Liberal que saíram [do partido] junto com Zelaya, depois do golpe de Estado. Outra parte é formada por grupos que nunca haviam atuado politicamente, sobretudo grupos de luta contra a corrupção e que eram muito críticos à política hondurenha tão tradicional e subserviente; e os outros éramos os que vínhamos da esquerda histórica do país, […] essa esquerda hondurenha que sempre foi anti-imperialista e que sobreviveu de uma ou outra maneira, apesar de tudo o que aconteceu na região: os exílios, a ditadura, os desaparecimentos, as guerrilhas. Essa esquerda, da qual somos herdeiros, provém do movimento social e político vinculado a processos como a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) em El Salvador, os sandinistas na Nicarágua, a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG). Aqui em Honduras, tivemos processos de liberação, como Lorenzo Zelaya para a Liberação Nacional, o movimento Cinchoneros e muitos outros, mas que não conseguiram crescer tanto como nossos vizinhos. [Isso porque,] aqui em Honduras, nós tivemos, por muito tempo, a maior base militar estadunidense na América Latina, a de Palmerola. Criar um movimento guerrilheiros com a capacidade de liberar o país era muito difícil, justamente pela presença dos fuzileiros navais a 80 quilômetros de Tegucigalpa. Então, essa pequena esquerda que sobreviveu, digamos, foi a que assumiu uma boa parte da condução da FNRP depois do golpe de Estado. […] Sob a liderança do Libre, conseguimos unir todos que são contra o governo marionete, chegamos a acordos e fizemos propostas.
O Libre ajudou a organizar lutas contra o regime golpista e a construir um aparato para disputar eleições. Apesar da repressão – incluindo o assassinato de seus líderes – e da fraude eleitoral generalizada, a porcentagem de votos do Libre nas eleições presidenciais aumentou de 29% (2013) para 41,4% (2017). As políticas de austeridade do governo aumentaram a viabilidade de um projeto de esquerda ao mesmo tempo que desencorajavam a sociedade e dificultavam a condução de atividades políticas. No entanto, desde 2009, uma série de projetos políticos emergiram, incluindo a revitalização do Partido Comunista de Honduras e a formação do Partido Anticorrupção (PAC), liderado pelo político de centro-direita Salvador Nasralla (candidato à presidência pelo Libre em 2017).
Ondas de revolta moldaram a oposição ao regime golpista. Em 2015, uma série de protestos anticorrupção tiveram lugar, juntamente com as manifestações das antorchas [tochas] e dos indignados. Esse movimento anticorrupção teve como alvo a podridão na saúde e infraestrutura públicas, dois setores em que o peculato determinou o declínio dos serviços e instituições. As reivindicações para a criação de uma comissão de inquérito sobre a corrupção (como a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala, CICIG) foram recebidas com uma resposta anêmica, e a criação da Maccih pela OEA, em 2016, foi enfraquecida ano a ano e acabou sendo eventualmente desmantelada em 2020.
Em maio e junho de 2019, profissionais de saúde e educadores saíram às ruas para defender a saúde pública do vírus da privatização. Exigiam investimento imediato para salvar esse setor-chave, esvaziado pelas políticas neoliberais da década anterior. No centro desses protestos estava a palavra de ordem “Fora JOH”, a reivindicação de colocar um fim ao regime golpista liderado por Hernández.
A abordagem do regime golpista na última década tem sido fragmentar as mobilizações, destruir a esquerda e minar sua confiança, perseguindo um líder de movimento social após o outro. De acordo com um relatório do Washington Office on Latin America (Wola), entre 2014 e 2017, um total de 141 defensores dos direitos humanos foram mortos; outros 13 sofreram atentados contra suas vida. Dez dos assassinados haviam recebido medidas cautelares de segurança da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o que não teve efeito algum.
O número de assassinatos de líderes de movimentos sociais desde 2009 não foi fácil de obter. As informações são fragmentadas, e as agências governamentais não têm interesse em rastrear desaparecimentos e mortes. No entanto, pode-se dizer com segurança que mais de 200 desses líderes foram mortos entre 2009 e 2020. Muitos deles eram líderes de comunidades indígenas e afrodescendentes, que lutaram contra a desapropriação de suas terras. A CIDH aponta três áreas gerais de preocupação:
- A criação de grave insegurança e violência resultante da imposição de planos e projetos para extração de recursos e desenvolvimento de energia em terras ancestrais.
- A pilhagem forçada e o despejo nessas terras com uso de força excessiva.
- A perseguição e criminalização de lideranças indígenas por motivos diretamente ligados à defesa de suas terras. A violência contra lideranças e comunidades indígenas surge diretamente da luta pela terra.
Para explorar isso com mais detalhes, examinaremos o assassinato, em 2016, de Berta Cáceres Flores, líder e cofundadora do Copinh, bem como o ataque aos sindicatos e, mais recentemente, o desaparecimento forçado de líderes sociais Garífuna.
O assassinato de Berta Cáceres
No dia 15 de julho de 2013, o Copinh, liderado por Berta Cáceres Flores, realizou um protesto contra a construção de uma barragem hidroelétrica no rio Gualcarque. Esse rio, no oeste de Honduras, é considerado sagrado pela comunidade indígena Lenca, mas ninguém da empresa interessada na construção da barragem os havia consultado. A empresa, Desarrollos Energéticos Sociedad Anónima (Desa), pertence e é controlada por uma das famílias mais poderosas de Honduras, os Atala Zablahs. O exército de Honduras, a pedido da Desa, fazia a proteção do local.
Durante o protesto, os soldados abriram fogo contra os manifestantes e mataram Tomás García. Quase três anos depois, em 2 de março de 2016, pistoleiros invadiram a casa de Berta Cáceres e a assassinaram. Sua morte foi seguida pelo assassinato, em 15 de março de 2016, de Nelson Noé García, também do Copinh, e em 18 de outubro de 2016, pelos assassinatos de José Ángel Flores e Silmer Dionisio George, do Movimento Camponês Unificado de Aguán, ou Muca.
Após o assassinato de Berta, uma campanha conjunta para exigir justiça foi lançada pelo Copinh e pela família Cárcere, com o apoio de organizações em todo o mundo. Mesmo sob imensa pressão internacional, os investigadores hondurenhos se limitaram a prender os principais autores dos disparos e alguns de seus mandantes imediatos. Entre eles, Douglas Bustillo, ex-chefe de segurança da Desa que comandou a operação; Sergio Rodríguez, executivo da Desa; e Roberto David Castillo Mejía, presidente da Desa. O assassino de Berta e alguns de seus responsáveis imediatos foram condenados a penas de prisão que vão de 30 a 50 anos.
No entanto, nenhum dos autores intelectuais do crime foi preso. As provas apresentadas no tribunal – incluindo registros telefônicos e conversas por WhatsApp – mostram de forma bastante conclusiva que esses assassinos, muitos deles veteranos do exército hondurenho, agiram por ordem dos executivos da Desa. Nenhum dos proprietários da empresa, incluindo membros da família oligárquica Atala Zablah, que faziam parte desses bate-papos no WhatsApp, foi acusado por qualquer crime.
Os proprietários da Desa e membros do governo também estão entre os autores intelectuais desses assassinatos, com David Castillo sendo o funcionário mais antigo da Desa a ser preso. As autoridades o detiveram em 2 de março de 2018, enquanto tentava fugir para os Estados Unidos, onde comprou uma casa de luxo no valor de 1,4 milhão de dólares, em Houston (Texas), apenas 8 meses após o assassinato de Berta. Os registros de chamadas e as mensagens por WhatsApp mostram que ele participou da conspiração e foi elo fundamental entre os financiadores e aqueles que a executaram. No entanto, seu caso ficou paralisado. O reiterado atraso abriu a possibilidade de que sua prisão preventiva expirasse, levando à sua libertação.
As autoridades vêm blindando a família Atala Zablah e o partido no poder, que tentou conspirar para encobrir o caso. Depois do assassinato de Berta, o ministro da segurança do presidente Hernández, Julián Pacheco Tinoco, escreveu a Pedro Atala Zablah, um dos líderes da poderosa família e membro do conselho da Desa. Ele queria assegurar à ele e à sua família que o governo não levaria o assassinato a sério; o caso, disse ele, seria visto como um “crime passional”. Bertha Zuniga Cáceres, filha de Berta e agora coordenadora geral do Copinh, reiterou esse nível de conluio: “nem o exército, nem a empresa agiram sozinhos”. Em vez disso, há “coordenação entre os centros de poder econômico e militar, que é a essência da ditadura sob a qual vivemos em Honduras”.
De fato, a investigação – e os registros do tribunal – mostram um nível muito alto de conluio. Os funcionários da Desa se reuniam na casa presidencial para planejar como enfraquecer o Copinh. Isso deveria levantar suspeitas em relação à cumplicidade, no mais alto nível do governo, no assassinato de Berta Cáceres. Mas foi deixado de lado, assim como as muitas mensagens de WhatsApp que mostram os membros da família Atala Zablah pedindo que a equipe fizesse algo sobre Berta Cáceres, tudo em uma linguagem muito codificada.
Há ampla evidência de funcionários do Desa se gabando de como têm o governo – e, em particular, as Forças Armadas e a polícia – em suas mãos. Em 2013, o diretor financeiro da empresa, Daniel Atala Midence, disse: “gastei muito dinheiro e capital político para obter esses três mandados de prisão”; pouco tempo depois, Berta Cáceres, Tomás Gómez Membreño e Aureliano Molina foram presos. Isso mostrou a extensão da influência de Atala Midence. Em outro momento das conversas pelo WhatsApp, Pedro Atala Zablah diz que os funcionários do Desa, que já haviam usado o exército e a polícia de Honduras para proteger seu estabelecimento e atacar ativistas do Copinh, deveriam pagar a polícia “com algo mais do que comida” para que levassem a cabo seus interesses.
Em agosto de 2019, o Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos foi a Honduras. Esse é um grupo que tenta fazer com que países adotem os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos. Os princípios são um tanto vazios, mas sugerem que, pelo menos, as empresas não devem se comportar de forma criminosa e que acordos de negócios tampouco devem ser feitos em segredo. Em seu relatório público, o Grupo de Trabalho fez dois importantes apontamentos. Em primeiro lugar, apontaram que, embora o Ministério do Ambiente (MiAmbiente) afirme realizar consultas abertas quando as licenças ambientais são analisadas, a maior parte dessas reuniões só é realizada após a concessão das licenças. Foi exatamente o que aconteceu no caso da barragem de Agua Zarca, e que está na base de outra ação movida pelo Copinh contra David Castillo e quinze outros funcionários públicos, alegando fraude durante a concessão das licenças de operação do projeto Agua Zarca. Em segundo lugar, destacam a lei (Decreto Legislativo 418-2013) e dois decretos ministeriais (725-2008 e 1402-2018) permitem que o ministério censure elementos do Estudo de Impacto Ambiental e quaisquer outros elementos que sejam considerados como “Informação Secreta”. O que isso significa é que os envolvidos em um caso não têm acesso a informações livres e justas para deliberar sobre seus méritos; o governo pode facilmente alterar a papelada de uma maneira totalmente antidemocrática.
Laura Zuniga, uma das filhas de Berta e também integrante da Copinh, disse em sua declaração de impacto das vítimas, em 2018:
[…] nos expulsaram desse processo. Não estamos de acordo com isso. Tampouco estamos de acordo, desde o primeiro momento após o assassinato de minha mãe, que nos tenham negado a possibilidade de ter um observador no momento da autópsia, porque não nos deram informações e porque, em cada momento desse processo, tivemos que lutar por informação; e não fizemos isso por capricho, fizemos porque estamos dispostas a fazer tudo o que for necessário para saber a verdade, porque entendemos que é nosso direito, um direito do povo hondurenho.
O ataque constante aos sindicatos
Na esteira do 10º aniversário do golpe, em 2019, ocorreu uma onda de protestos em Honduras. Na liderança desse levante estava a Plataforma para a Defesa da Saúde e da Educação, ou La Plataforma, uma frente de professores e trabalhadores médicos. Em 30 de maio, milhares de profissionais de saúde vestidos com aventais e jalecos brancos, ao lado de professores e alunos, paralisaram Tegucigalpa com seus protestos nas ruas. Os manifestantes marcharam até o Aeroporto Internacional de Toncontín, enquanto um caminhão descarregava pedras e terra na estrada principal para o aeroporto. A polícia disparou gás lacrimogêneo e balas de borracha contra a multidão, mas o gás invadiu o aeroporto e o fechou. Isso não deteve os protestos, que cresceram nas semanas seguintes.
O impulso imediato para os protestos organizados por La Plataforma foi a campanha do governo Hernández para privatizar os setores de saúde e educação. Em janeiro de 2019, Hernández pressionou pela aprovação de decretos especiais que declaravam “emergências nacionais” nos setores de saúde e educação. O governo criou comissões especiais que reorganizariam as profissões da saúde e da educação, atacando a autonomia relativa do setor público. Os nomes dos projetos de lei aprovados pelo Congresso são esclarecedores: Comissão Especial para a Transformação do Sistema de Saúde Nacional (PCM 026-2018) e Comissão Especial para a Transformação do Sistema Educacional (PCM 027-2018). Em abril, o Congresso hondurenho aprovou a Lei de Reestruturação e Transformação do Sistema Nacional de Saúde e Educação, cujo objetivo era promover a privatização dos dois setores. Por causa dos protestos dos trabalhadores da educação e da saúde, o Congresso anulou a lei em 30 de abril.
Por trás de Hernández estava o Fundo Monetário Internacional (FMI), que há muito exorta Honduras a “racionalizar” seus gastos e a “institucionalizar a prudência fiscal”; esta última frase aparece no relatório da equipe de julho de 2019 sobre Honduras. Quando o FMI fala em “prudência fiscal”, isso significa cortes no orçamento para o setor público, sendo os setores de saúde e educação, frequentemente, os que mais sofrem. Afetado pela resistência de La Plataforma, Hernández agiu – por meio da Mesa de Debate Nacional sobre Saúde e Educação – para “descentralizar” a assistência à saúde e educação destinada aos governos locais, em grande parte carentes de recursos. Essa é uma maneira garantida de fazer com que esses governos locais repassem o fornecimento de saúde e educação para entidades não governamentais e para o setor privado. É uma privatização disfarçada sob o nome de “descentralização”.
A repressão aos protestos veio acompanhada de ameaças e violência contra dirigentes sindicais. Em 2019, a Confederação Sindical Internacional (CSI) concluiu que Honduras “não oferece garantia de direitos” a sindicalistas. Um relatório do Acnur constatou que, entre 2010 e 2019, noventa professores – muitos deles, dirigentes sindicais – foram assassinados. Em dezembro de 2019, a Rede Hondurenha contra a Violência Antissindical atestou os perigos que cercam a atividade sindical no país. Em 16 de novembro, o líder sindical Jorge Alberto Acosta Barrientos, do Sindicato dos Trabalhadores da Ferrovia de Tela (Sitraterco), foi morto a tiros. Outros dirigentes sindicais concordam que as ameaças e a violência contra os trabalhadores constituem perigos prementes, entre eles María Gloria García, da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores da Agroindústria (Festagro); Tomás Membreño Pérez, do Sindicato dos Trabalhadores Agroindustriais e Aliados (Stas), Sonia Margarita Banegas, do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Nacional Autônoma de Honduras (Sitraunah); e Joel Almendares da principal federação sindical de Honduras, a Confederação Única dos Trabalhadores de Honduras (CUTH).
Os trabalhadores sindicais entendem que sua luta não é apenas contra essa ou aquela lei ou por essa ou aquela reforma; sua luta é para derrubar o regime golpista e minar as classes que o apoiam.
Uma luta de longa data foi liderada pelos trabalhadores da indústria do óleo de palma contra grandes empresas privadas, como a Dinant, apoiada pelo governo golpista e também pelo Banco Mundial, de quem recebeu financiamento. A Dinant é propriedade de uma das famílias mais poderosas da América Central, os Facussés. No vale do Bajo Aguán, onde a empresa opera, pelo menos 133 trabalhadores rurais foram mortos na última década. A intimidade entre a família Facussé e o governo Hernández ilustra a natureza de classe do golpe de 2009 e a rigidez imposta pelo regime golpista. Em um dos muitos exemplos disso, pode-se citar a utilização de uma aeronave dos Facussé para extraditar ilegalmente a chanceler Patricia Rodas, de Honduras para o México, durante o golpe de 2009.
Os Facussé estão envolvidos em uma longa luta contra a comunidade Garífuna em Vallecito por questões fundiárias. Em 2004, o vice-presidente de uma cooperativa agrícola, Santos Euquerio Bernárdez Bonilla, foi sequestrado e morto. Desde o golpe, a violência se intensificou, bem como a destruição geral das terras para beneficiar essas famílias poderosas e seus interesses de classe. Em 2014, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez um informe sobre essa situação:
A Comissão também foi informada de que os processos de outorga de concessões a empresas foram acompanhados de considerável repressão aos povos indígenas, que têm sofrido despejos forçados. “As pessoas estão angustiadas por causa das expropriações e despejos realizados contra a comunidade Garífuna”, disse um membro desse povo à CIDH. A Comissão também foi informada de que a produção extensiva de palma africana na parte norte do país teve um impacto desproporcional sobre o povo Garífuna. A CIDH também recebeu informações preocupantes sobre o impacto da atividade humana no agravamento da pobreza nessas comunidades. A comunidade Garífuna de Santa Rosa, por exemplo, indica que em decorrência do trabalho realizado pelas empresas que cultivam a palma africana no departamento de Colón, o curso do rio Aguán foi alterado, com consequências devastadoras para o meio ambiente e para o acesso da comunidade à água, devido à sua alta salinidade.
As empresas em questão incluem as da família Facussé. Os trabalhadores que enfrentam essa espoliação incluem membros da comunidade Garífuna.
A desaparição forçada de líderes Garífuna
Em 18 de julho de 2020, dez homens fortemente armados chegaram à comunidade de Triunfo de la Cruz. Eles usavam uniformes da Polícia Militar de Ordem Pública (PMOP), e traziam a insígnia da Diretoria de Investigações Policiais (DPI). Esses homens sequestraram cinco membros da comunidade Garífuna, uma comunidade afro-indígena na costa caribenha de Honduras. Os desaparecidos naquele dia foram Junior Juárez, bem como quatro membros da Organização Fraternal Negra de Honduras (Ofraneh): Snider Centeno, Milthon Joel Martínez Suany, Suami Mejía e Gerardo Róchez.
Não foram mais vistos desde então.
A Ofraneh divulgou um comunicado afirmando que os homens deveriam ser libertados imediatamente: “Vivos os capturaram, vivos os queremos de volta”. Miriam Miranda, uma líder da Ofraneh, tuitou que “nesta ditadura mafiosa, corrupta e assassina, a máquina da morte está intacta e fortalecida Em meio à pandemia Covid-19, um grupo armado chegou a Triunfo de la Cruz e levou, entre outros, o líder Sneider Centeno. Exigimos seu aparecimento imediato, vivo”.
Centeno é presidente da comunidade Garífuna Triunfo de la Cruz e membro da Ofraneh. Ele estava à frente de um caso apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por sua comunidade em 2015. Eles acusam o Estado hondurenho de violações de direitos humanos, de não proteger os territórios da comunidade e de não deter o despejo de comunidades por aqueles com poder econômico e político. Embora a CIDH tenha decidido a favor da comunidade, o Estado ainda não cumpriu seus compromissos. A Ofraneh aponta o descumprimento da decisão da CIDH pelo Estado hondurenho como prova de que o Estado não tem interesse no bem-estar do povo Garífuna.
Esse sequestro faz parte de um padrão; segundo a Ofraneh, nos últimos anos, pelo menos quarenta membros da comunidade Garífuna foram assassinados e muitos tiveram que deixar a comunidade devido a ameaças e perseguições. Esses ataques vêm tanto do Estado quanto de corporações transnacionais, e incluem assassinatos e outras formas de perseguição política.
Durante os oito meses desde o sequestro, as comunidades Garífuna de Triunfo de la Cruz e Sambo Creek se mobilizaram para exigir que as autoridades fornecessem imediatamente informações sobre os desaparecidos e os devolvessem às suas comunidades com vida. Em vez de cumprir essas reivindicações, a polícia atacou manifestantes com gás lacrimogêneo em várias ocasiões, e membros da comunidade relataram que veículos com homens fortemente armados entraram na região de Triunfo de la Cruz para gerar medo e terror.
A repressão policial aprofunda a suspeita na comunidade sobre o papel do Estado no sequestro. O desaparecimento forçado ocorreu enquanto acontecia o isolamento e o toque de recolher no país. Isso significa que qualquer pessoa que estivesse dirigindo precisava ter permissão explícita para fazê-lo. “Para nós, é impossível acreditar que o movimento dos três veículos, dirigidos por indivíduos fortemente armados, pudesse ter ocorrido sem ser detectado pelo Estado”, alegou a Ofraneh.
Em 31 de julho, treze dias após o sequestro, Hernández quebrou o silêncio do governo por meio de um tuite, no qual insistia que o governo estava trabalhando para “identificar os responsáveis pelo crime e levá-los à justiça”. Nenhum progresso foi feito no caso desde então. A Ofraneh observa que o órgão responsável pelo caso é a Diretoria de Investigações Policiais (DIP). Dado que os homens armados que sequestraram as cinco pessoas em Triunfo de la Cruz estavam vestidos com uniformes da DIP, é impossível acreditar no sistema que parece ter sido ele próprio o condutor o crime.
No dia do tuite de Hernández, a Anistia Internacional divulgou uma forte declaração pedindo ao governo que investigue o sequestro e localize os homens. Nessa declaração, Erika Guevara-Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas, comentou:
Exigimos que o governo Juan Orlando Hernández tome medidas urgentes para encontrar com vida as cinco pessoas desaparecidas, incluindo quatro ativistas Garífuna da Organização Fraternal Negra de Honduras. As autoridades também devem realizar uma investigação rápida, exaustiva, independente e imparcial para identificar e punir todos os responsáveis pelo planejamento e execução desse crime. Não podemos permitir que a impunidade incentive ciclos intermináveis de violência e graves violações dos direitos humanos.
Em outubro de 2020, três meses após o sequestro, a Ofraneh divulgou um documento que analisava os relatórios inconsistentes do governo à CIDH. Os documentos e as postagens nas redes sociais se pareciam cada vez mais com uma campanha de desinformação, afirmou a Ofraneh. As publicações visavam desacreditar os desaparecidos, ao vinculá-los ao tráfico de drogas, e tentar negar os sequestros, apontando a alta frequência de desaparecimentos. A normalização desse tipo de violência mostra que o governo aceita que o país “se encontra submerso na violência, resultado do Estado falido existente e do colapso gradual do sistema de justiça devido à inexistência de independência de poderes”, como aponta o relatório da Ofraneh. Essa campanha de desinformação veio junto com o “silêncio criminoso e cúmplice” do governo sobre as evidências reais que foram exibidas ao público.
Incapaz de avançar uma agenda nas instituições formais do país, a Ofraneh lançou o Comitê Garífuna para a Investigação e Busca de Desaparecidos de Triunfo de la Cruz (Sunla), em 18 de fevereiro de 2021 (Sunla significa “basta” em Garífuna). Miriam Miranda, que coordena a Ofraneh, disse que o Sunla seria “uma forma de buscar a verdade e a justiça neste país”. O comitê é formado por diversos especialistas e lideranças da comunidade e contará com o apoio de dezesseis organizações sociais da América Latina junto com a ONU e a CIDH.
“Estamos cansados das mentiras do governo de Honduras”, disse Miranda. Os relatórios do governo hondurenho “não têm substância. Não dizem nada. Fazem piada de nós, o povo Garífuna. Não queremos mentiras. Queremos a verdade. Queremos que a vida valha mais em nosso país. Temos que construir novos caminhos. Continuaremos lutando para que isso se torne realidade”.