A geopolítica da desigualdade: ideias para um debate sobre um mundo mais justo
Dossiê no 57
Este dossiê trata da desigualdade, ou desigualdades, entre o Norte e o Sul, entre ricos e pobres, e entre as classes que trabalham e as que se beneficiam. Essa desigualdade também é produzida por diversas forças e vetores do capitalismo global que dividem, excluem e polarizam o mundo. As colagens deste dossiê expressam essa desigualdade e extrema assimetria que é uma imagem do nosso tempo. Contraste é uma palavra-chave para esta série, entre cores, equilíbrio composicional e conteúdo, onde as atividades cotidianas —tomar café da manhã, ir trabalhar ou dormir— tornam-se situações onde a desigualdade é vivida e sentida intimamente.
Fontes de imagem: Wikimedia Commons, British Library, Public Photos e o documentário The Forces of Inequality (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e Comuna Audiovisual, 2021).
Introdução
Quais são os elementos mais característicos do nosso tempo histórico? Uma pergunta que tem múltiplas respostas. O capitalismo do século 21 nos mostra uma aceleração sem precedentes: transições internacionais rápidas, a formação de um mundo indiscutivelmente multipolar, inovações tecnoprodutivas significativas, novos desenvolvimentos em tecnologia da informação e telecomunicações que mudaram as formas de nos vincular, entre muitas outras questões.
Esse quadro de mudanças aceleradas por vezes parece apagar uma das questões mais óbvias e ao mesmo tempo ultrajantes de nossa existência contemporânea: a diferença abismal entre o padrão de vida dos ricos e pobres em todas as partes do mundo. Obviamente, estamos passando por um momento em que o capitalismo global conseguiu varrer para debaixo do tapete alguns dos resultados mais dolorosos do processo de exclusão social que levou ao surgimento do neoliberalismo e suas sucessivas crises. Os discursos que repetidamente fortalecem o olhar hegemônico do capital global concentrado nos levam a naturalizar a produção e a reprodução da desigualdade nas sociedades contemporâneas, como se fossem resultado de decisões individuais de pessoas que não se esforçam o suficiente ou de governos ruins. O Banco Mundial e os diversos think tanks do globalismo neoliberal, mesmo quando tentam colocar a legenda “com uma cara humana”, não param de reproduzir essas análises segundo as quais a solução para reduzir a extrema desigualdade do nosso mundo seria conceder as mesmas oportunidades a todos.
Os dados não parecem acompanhar essa leitura simplista. O 1% mais rico do mundo concentra hoje mais de 70% da renda. Isso implica que, até janeiro de 2022, pouco mais de 10 multimilionários possuem mais riqueza do que cerca de 3,1 bilhões de pessoas (Oxfam, 2022). Os mais ricos do mundo, uma espécie de plutocracia para alguns analistas, têm rendimentos impensáveis para 80% da população mundial. Entre esses 2.600 multilionários, os mais ricos são nomes conhecidos (Dolan e Peterson-Withorn, 2022): Elon Musk (fundador e gerente da Tesla, com patrimônio de 219 bilhões de dólares), Jeff Bezos (fundador e presidente da Amazon, com fortuna de 171 bilhões de dólares), Bernard Arnault (presidente e gerente da LVMH, com 158 bilhões de dólares) ), Bill Gates (fundador e ex-gerente da Microsoft Corp, com patrimônio de 129 bilhões de dólares) e Warren Buffet (gerente da Berkshire Hathaway, com patrimônio de 118 bilhões de dólares).
Qual alternativa temos para entender a desigualdade além dessa forma de culpar os pobres por sua condição? Vale a pena ter em mente que a enorme disparidade na desigualdade de renda e riqueza em que vivemos não tem apenas referências nacionais, mas que uma parte importante de suas causas reside nas lógicas da polarização causada pelo capitalismo como sistema mundial. Assim, podemos diferenciar entre a escala global e a escala nacional para entender por que esses processos de produção constante de um abismo entre ricos e pobres ocorrem no capitalismo contemporâneo.
Por essas razões, dedicamos este dossiê 57 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social para discutir a geopolítica da desigualdade, ou seja, as condições de exclusão que o Norte impõe ao Sul e que tenta, por todos os meios, propor a ideia de que essa desigualdade é transitória, e que devemos nos esforçar mais para reduzir as disparidades.
A profunda assimetria entre Norte e Sul
As tendências do capitalismo contemporâneo, especialmente desde 2008, aprofundaram ao extremo as dinâmicas que produzem a desigualdade e que estão presentes desde a própria origem do capitalismo. Após um período de relativa melhora na rendadas classes trabalhadoras, a ruptura definitiva dos regimes fordistas no Norte e das ordens nacionais-populares no Sul, teve como um de seus resultados mais destacados a ampliaçãoda disparidadeentre as condições de vida dos extremos. Como sempre nesse sistema, a opulência de poucos é a fome e a miséria de milhões.
A dinâmica acelerada do poder financeiro ocidental, a flexibilização das formas de contratação, os processos de trabalho e os tempos de trabalho, a realocação da produção de bens e serviços, entre outras questões, foram os elementos fundamentais dessa exacerbação da ordem global que leva à desigualdade desde a crise petrolífera de 1973. Em suma, como aponta o geógrafo David Harvey (2007), o neoliberalismo foi um projeto das classes dominantes em escala global para reconstruir seu poder e renda.
No século XXI, três crises financeiras de abrangência global causaram novos processos de redistribuição de renda e riqueza em favor da minoria rica. Acima de tudo, a saída para a crise de 2008 – quando estoura a bolha imobiliária nos Estados Unidos – nada mais foi do que um intenso processo de concentração de capital e renda, ou seja, do poder social do grande capital. Isso se deu com o protagonismo das empresas líderes de finanças globais, a economia 4.0 e a gig economy como novo espaço dinâmico de acumulação. A recuperação, portanto, originou uma nova bolha, desta vez baseada em empresas de alta tecnologia, especialmente as plataformas digitais como o monopólio conhecido como GAMA (Google, Apple, Meta, Amazon). Essa combinação de capital financeiro e capitalismo de plataformas conduzida a partir do Norte Global só aprofundou a instabilidade e a crise. Todo o discurso celebratório da tecnologia e os aumentos de produtividade — supostamente a causa de um salto no bem-estar no Ocidente — que o Banco Mundial vem desenvolvendo desde 2016, ficou no vazio uma e outra vez. O resultado desse processo de incorporação tecnológica não fez mais que acelerar a monopolização e apropriação da renda dos polvos financeiros e alta tecnologia. O outro lado não foi o desemprego tecnológico, mas bilhões de trabalhadores empobrecidos, mesmo possuindo um emprego assalariado (Benanav, 202).
O CoronaChoque, tema abordado em suas diferentes dimensões no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (2020), resultou na duplicação da renda do 1% mais rico da população global. De acordo com o último relatório da Oxfam (2022), nos anos de pandemia, a cada 26 horas apareceu um novo bilionário, enquanto a renda de 99% da população se deteriorou. No mesmo sentido, no Relatório Mundial da Desigualdade 2022, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Chancel et al., 2022), são apresentados alguns dados que vale a pena serem retomados aqui. Em primeiro lugar, da riqueza total gerada no mundo, os 10% mais ricos globalmente se apropriam de 76%, enquanto os 50% mais pobres da população recebem apenas 2% da riqueza total.
Qual a importância das dimensões geopolítica e geoeconômica nesses dados? Para nós, é fundamental: essa distribuição desigual tem diferenças substantivas entre países e regiões. Se levarmos em conta a desigualdade em diferentes regiões do mundo, podemos ver que o Sul Global apresenta taxas mais altas de desigualdade de renda e riqueza que o Norte Global. Em termos de renda, descobrimos que na América do Norte e na Europa Ocidental o 1% mais rico da população recebeu cerca de 35% da riqueza em 2020, enquanto os 50% mais pobres atingiram 19% da renda total. Ao contrário dessas regiões do mundo, encontramos na América Latina, Oriente Médio e o Norte da África, Sul da Ásia e África Subsaariana uma apropriação do produto nacional que representa entre 9% e 12% para os 50% mais pobres da população, enquanto os 10% mais ricos se apropriam entre 45% e 58% (Chancel et al., 2022, elaboração própria).
Esses indicadores sistematizados por organizações internacionais mostram claramente que a desigualdade em cada país e região atinge níveis diferentes. Vários autores haviam proposto, em sua crença de que a única alternativa seria um mundo capitalista com rosto humano, a tendência ao desaparecimento da desigualdade Norte-Sul. Encontramos textos como o de Burbach e Robinson (1999), que destacavam uma ampla convergência de renda entre os países como um fato desde a queda do Muro de Berlim. Por outro lado, obras como a de Hoogvelt (1997) afirmavam que a relação centro-periferia não passava de uma relação geográfica, o que minimizou a ligação orgânica entre os processos de apropriação de renda no Norte e no Sul.
Esses estudos baseiam sua análise no fato de que a polarização Norte-Sul se referia a uma situação do norte industrializado versus o sul não industrializado. Com o crescimento industrial em várias regiões, especialmente na Ásia, e suas implicações em termos de aceleração do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a interpretação que eles fazem é que as disparidades de renda estão diminuindo como tendência.
Essas análises parecem responder mais a uma premissa político-ideológica do que às evidências oferecidas pelo mundo capitalista contemporâneo. Como Arrighi, Silver e Brewer demonstram em seu trabalho, “a divisão Norte-Sul permanece como uma dimensão fundamental da dinâmica global contemporânea” (2003, p. 4). Acreditamos ser importante destacar esse ponto, pois a maioria das análises da desigualdade parte de uma escala nacional e omite o caráter desigual do poder global sobre regiões e povos oprimidos (Amin, 2000).
As disparidades de desigualdade no Produto Industrial Bruto de diferentes regiões do mundo em relação aos países do norte foram reduzidas. Por outro lado, a desigualdade na renda per capita de diferentes regiões periféricas em relação ao Norte Global permaneceu muito alta. Um caso paradigmático é a região do Norte da África e do Oriente Médio, que representa 185% da produção industrial do Norte, enquanto representa apenas 15% da renda per capita dos países ricos. É claro que, como mencionamos, o sul da Ásia, onde a Índia e Bangladesh estão localizados, bem como a África Subsaariana, apresentam participações altas nas manufaturas e uma desigualdade extrema com o norte rico (apenas 2,8% e 3,4% da renda per capita do Norte) (Elaboração própria com base em dados do Banco Mundial e da Penn World Table).
De fato, enquanto a fábrica do mundo é a periferia, os serviços, as finanças e a produção de bens complexos permanecem nas mãos dos centros. O Sul Global produz 26% mais de manufaturas que o Norte e se apropria de 80% menos renda per capita (Ibid.). Dessa forma, a explicação da desigualdade devido à falta de desenvolvimento das forças produtivas perde sentido. Esse é um ponto importante. Todas as abordagens liberais/neoliberais para o desenvolvimento esperam que um processo sustentado de industrialização da periferia, seguindo a abordagem de Rostow (1960), possibilite alcançar os padrões de vida do centro. Essas perspectivas parecem ignorar que a produção manufatureira foi transladada para a periferia e a participação da produção desses bens em relação ao Norte acelerou desde 1960, e ainda assim isso não mudou substancialmente os padrões de distribuição.
Em suma, a distância industrial que existia em meados do século 20 entre os países centrais e periféricos desapareceu quase por completo, mas o controle do processo produtivo e do capital monetário que permite que os ciclos de acumulação produtiva comecem são direcionados dos centros do capitalismo global. Aqui reside a questão-chave para entender que o poder assimétrico entre o Norte Global e o Sul Global é expresso através de uma nova lógica de subordinação e periferização, que não se refere exclusivamente ao intercâmbio desigual de bens manufaturados versus bens primários. Pelo contrário, é o controle do próprio processo de realocação e de integração assimétrica das diferentes regiões em Redes Globais de Produção (RGP) que gera diferenças distributivas substanciais, mesmo no âmbito dos processos de industrialização acelerada da periferia.
Um bom ponto aqui é nos perguntarmos se a diferença de renda per capita entre os países é um bom indicador de desigualdade. Do ponto de vista de Milanovic (2013), por exemplo, a desigualdade aparece assim em menores níveis do que a que realmente temos. Por isso, propõe levar em conta a renda de indivíduos. Se incluirmos pessoas em todo o mundo em uma unidade de medição comparável, descobrimos que, por exemplo, para os anos de 1970 a 2010, os coeficientes de Gini para os países nórdicos estavam em níveis inferiores a 30%, enquanto países como o Brasil atingiram um nível de desigualdade próximo de 60%.
Se considerarmos como um todo, o Sul Global tem uma desigualdade de renda individual que, em 2019, era 33% maior que no Norte. Isso porque o processo de globalização neoliberal levou a uma polarização extrema dos rendimentos entre os super-ricos e os mais pobres do mundo, com um setor de renda média que melhorou sua posição. O aumento de mais de 60% na renda do 1% mais rico entre 1988 e 2008 foi compensado por um crescimento vegetativo na renda dos setores mais pobres. Se olharmos para quem compõe esse pequeno grupo de super-ricos, a maioria deles está no Norte Global, e alguns são cidadãos dos grandes países emergentes do sul, principalmente China, Índia, África do Sul, Rússia e até países da América Latina (Milanovic, 2013).
O ranking de maior riqueza patrimonial elaborado pela revista empresarial Forbes e que sintetizamos na figura 1, é responsável por essa distribuição da renda global. Em números mais concretos, podemos ver que apenas os Estados Unidos, como um dos principais representantes da geopolítica da desigualdade, têm 37 das 100 pessoas mais ricas do mundo, em 2022. Concentram-se neles 2,3 trilhões de dólares; ou seja, detêm mais de 51% da riqueza em questão.
Mas aqui surgem alguns problemas importantes, que geralmente não são levados em conta por esse tipo de análise individual da desigualdade. Analisar apenas a desigualdade de renda pessoal entre os extremos da população só esconde um grande problema: países com uma baixa desigualdade individual de renda podem ter rendas reais que são absolutamente indignos para os níveis atuais de desenvolvimento das forças produtivas de trabalho. Por exemplo, a Argélia tem índices de Gini semelhantes aos da Noruega ou Finlândia. No entanto, a renda média diária de uma família na Noruega chega a 19 mil dólares por ano, enquanto a de uma família na Argélia é de 2600 dólares por ano. Outro exemplo significativo: Estados Unidos e República Democrática do Congo. Ambos possuem um Gini de 42% e a diferença de renda anual média é abismal: 19.300 dólares nos Estados Unidos e apenas 892 dólares na República do Congo (elaboração própria com base em dados da OIT).
Esses exemplos marcam claramente uma grande injustiça distributiva no poder aquisitivo de diferentes países, mesmo quando os índices sintéticos de desigualdade são semelhantes. Uma interpretação comumente defendida pelos organismos internacionais é que os países de renda média têm mais desigualdade que os países ricos e os países pobres. O problema dessa interpretação é que a ligação orgânica entre Norte e Sul, entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, entre centro e periferia e, finalmente, entre soberania e dependência, é minimizada. As capacidades produtivas e distributivas do Norte são construídas, como veremos no próximo ponto, por meio da subordinação do Sul Global. Enquanto os indivíduos na cauda inferior da distribuição de renda no Norte podem ter acesso a uma cesta de consumo acima da cesta básica, em boa parte dos países do Sul a pobreza e a indigência são moeda corrente em grandes percentuais da população.
Desigualdade de classe no Norte e Sul Global
Como indivíduos de diferentes regiões do mundo ganham sua renda? Ou seja, que relações sociais são aquelas que dão origem à desigualdade sustentada de renda entre ricos e pobres? Somente refazendo o processo de classe que está por trás da desigualdade podemos explicar sua origem. Consideramos então que a causa original da desigualdade em escala nacional e global deve ser buscada, em primeiro lugar, no aumento da desigualdade entre as classes. Do total de produção gerada em escala global, os assalariados se apropriaram de uma parcela cada vez menor da renda desde a década de 1970 até os dias de hoje. Se pegarmos o século 21, descobrimos que essa queda se mantém (de 54% para 51% entre 2004 e 2021). Essa tendência negativa na renda dos trabalhadores durante o século 21 só foi temporariamente revertida no contexto da crise global em 2008-2009, porque a queda dos salários da classe trabalhadora é sempre mais lenta do que as recessões (elaboração própria baseada na OIT, Ameco e Cepalstat).
O declínio global da participação dos assalariados na produção no século 21 é liderado por países centrais, particularmente os da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, onde a participação dos salários na renda nacional caiu mais de 2 e 3 pontos percentuais, respectivamente, desde 2004. No entanto, como podemos ver na Figura 2, as disparidades entre os países são tão grandes que, embora a América Latina (até 2014) e a China tenham conseguido por alguns anos aumentos na participação de seus assalariados, eles de nenhuma maneira alcançam os níveis do Norte. Outras regiões da periferia até viram sua já muito baixa parcela de salários na renda nacional cair, como o Sudeste Asiático. Os países em que os trabalhadores adquirem uma participação na renda nacional superior a 50% são basicamente os Estados Unidos, o Canadá e aqueles que compõem a Europa Ocidental, com exceção de três países latino-americanos: Argentina, Chile e Brasil (López e Noguera, 2020).
Isso levou alguns autores, como Milanovic (2013), a afirmar que a desigualdade no século 21 é explicada mais por localização que por classe.
O que acontece se considerarmos a desigualdade como a distância de renda em relação a cada país com a média mundial? De um total de 163 países, apenas 32% das famílias têm renda acima da média global. Desse total, apenas alguns poucos países da periferia alcançam rendimentos acima da média, enquanto 100% dos países centrais estão acima da renda média global. Além disso, podemos ver que a distância dos países do centro em relação à renda média mundial é muito elevada, em que se destacam casos como Luxemburgo, Noruega, Estados Unidos, Canadá, entre outros, que excedem em 200% a diferença (Ibid.). Ao mesmo tempo, são precisamente os países do Sul, a periferia do mundo, que apresentam os mais altos níveis de desigualdade de classe, como nos antecipa a participação dos assalariados na renda (Figura 3). Além disso, se pegarmos os rendimentos dos capitalistas em relação aos rendimentos dos assalariados, descobrimos novamente que a maioria da periferia do mundo possui desigualdade de classe que excede a média, enquanto todos os países do centro têm níveis mais baixos de exploração do trabalho em relação à média.
Além disso, e talvez ainda mais relevante, é que há uma relação direta entre desigualdade de classe e localização. Em um capitalismo contemporâneo altamente interdependente, globalizado, financeirizado e com altos níveis de realocação produtiva, padrões históricos de dependência foram acentuados. Por um lado, o Norte se fortaleceu como espaço geográfico para o controle dos processos globais de acumulação e, no mesmo movimento, as sociedades da periferia foram reestruturadas de forma regressiva. Vemos então que há pelo menos quatro processos que, com o surgimento do neoliberalismo e as sucessivas crises contemporâneas, reforçaram o poder das classes dominantes em escala global: a transnacionalização do capital e a realocação produtiva, a financeirização, a hiper concentração do capital e a revolução do transporte, telecomunicações e tecnologia da informação. Esses processos associados estiveram fundamentados no reavivamento do poder e da renda das classes dominantes, e só foram contrapostos com o ressurgimento de outros polos de poder global com visões divergentes sobre a dinâmica ocidental de desenvolvimento (Arrighi, 2007).
O desafio de contrapor as tendências
O capitalismo do nosso tempo tende a multiplicar as desigualdades do Norte em relação ao Sul, do capital contra o trabalho e dos ricos contra os pobres. Do nosso ponto de vista, o aprofundamento da dependência estrutural dos países do Sul Global é um dos principais determinantes da dinâmica de pauperização das grandes maiorias da população mundial. Uma concentração de renda sem precedentes, que tem como pano de fundo uma concentração de poder única, que nada mais é do que um indicador de uma dinâmica estrutural de periferização do Sul em relação ao Norte, por meio de sua inclusão subordinada às Redes Globais de Produção. Essas redes resultaram em uma nova divisão internacional do trabalho, que reserva ao Norte a direção e controle dos processos produtivos e descentraliza a produção própria para outras regiões, para aproveitar custos mais baixos e acesso a recursos naturais.
É assim que a geopolítica da desigualdade reforça a dinâmica de apropriação de renda diferenciada entre o trabalho e o capital, entre diferentes grupos de trabalhadores, entre indivíduos e entre aqueles que obtêm renda a partir da propriedade de diferentes ativos (terra, tecnologia etc.) e aqueles que não.
Diante dessas tendências, que alternativas nos resta para os povos do Sul? Para além da batalha que aparece nos termos de David vs. Golias, começar a pensar em alguns pontos-chave nos dá outra perspectiva:
- A desconexão parcial das cadeias globais
A promessa das cadeias globais de valor de permitir o desenvolvimento de polos modernos que puxam todas as economias da periferia teve um resultado exatamente oposto ao esperado: as desigualdades entre setores internacionalizados e o restante aumentaram. Esses aumentos das lacunas de desigualdade devem ser combatidos com a mediação estatal, que comece a colocar por cima da participação em cadeias globais a participação em redes de comércio Sul-Sul baseadas na complementaridade. Esse distanciamento das cadeias globais implica uma desconexão parcial das lógicas de controle por parte do capital do Norte dos processos produtivos globais, e a consequente espoliação do trabalho do Sul para satisfazer as necessidades do Norte Global.
- Apropriação estatal de rendas
Uma forma por excelência de desigualdade de classe em nossos países é a apropriação oligárquica das rendas das terras, da mineração, tecnológica, entre outras. A intervenção concreta do Estado na apropriação de rendas é fundamental para amortecer os processos de aumento de renda das classes dominantes que nada têm a ver com seus aumentos de investimentos, mas, quase exclusivamente, com a propriedade de um fator fixo de produção à possibilidade de patenteamento para uso exclusivo.
- A cobrança de impostos sobre o capital especulativo
A celebrada mobilidade do capital global apenas acentuou a renda especulativa nos países do Sul, produzindo ataques às moedas nacionais, processos de financeirização e fuga constante de capital. Uma alta carga tributária sobre o capital especulativo e uma participação mista entre capital privado e público podem melhorar significativamente as lógicas de controle dos processos produtivos nacionais e amortecer as crises que, em geral, se expressam em uma saída massiva de capital, aprofundando o desemprego e a pobreza.
- Nacionalização de bens e serviços estratégicos
Ter como objetivo um processo de desenvolvimento nacional e regional mais igualitário requer avanços na nacionalização de bens estratégicos, o que é fundamental para reduzir o grau de estrangeirização das economias do Sul. Em grande parte, reverter as medidas de privatização do Consenso de Washington pode permitir maiores margens de soberania nacional, bem como orientações estratégicas sobre como usar os recursos que pertencem aos povos e que devem favorecer as maiorias.
- Tributando os super lucros pessoais e empresariais
Uma questão de peso é diferenciar, mesmo no âmbito do capitalismo, os setores de lucro normal ou médio daqueles excessivos, os super lucros. Como apontamos neste dossiê, os setores mais dinâmicos da economia global são aqueles ligados às finanças e plataformas. Nos países da periferia, os setores transnacionalizados ou que possuem forte inserção comercial são os que alcançam níveis mais elevados de renda. Em geral, esses aumentos de lucro não redundam em níveis mais altos de emprego, melhores salários etc. Portanto, projetar impostos que reacaiam sobre os setores que têm hiper-rentabilidade é uma necessidade imperativa.
Esses pontos são, evidentemente, apenas alguns aspectos parciais do debate. Consideramos que devemos aprofundá-los para articular nossas lutas nacionais com perspectivas globais e com reivindicações aos Estados para abandonar as políticas de austeridade que apenas acentuam todos os dias as disparidades entre ricos e pobres, entre Norte e Sul. Já a essa altura, essas disparidades são insuportáveis do ponto de vista humano.
Referências bibliográficas
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