Fundamentalismo e imperialismo na América Latina: ações e resistências
Dossiê n. 59
As artes deste dossiê retrabalham fotografias que “resgatam vozes e resistências, do passado e do presente, nesse enfrentamento ao fundamentalismo religioso”, como bem diz o documento. São retratos que recuperam diversos espaços e formas na qual a formação cristã está presente na vida do povo latino-americano em resistência.
Nem a razão, nem a ciência podem satisfazer toda necessidade de infinito que existe no homem.
José Carlos Mariátegui
Introdução
É impossível desvincular a religião dos projetos políticos de dominação e libertação na América Latina. Desde o colonialismo, é possível encontrar movimentos em que a religiosidade serviu para oprimir, violentar e escravizar, como também para organizar e libertar o povo. Na atualidade, a força da religião na América Latina e o avanço de uma gramática religiosa na política institucional é notória, visto que cada vez mais religiosos, sejam eles progressistas ou reacionários, têm se articulado para propagar seus projetos, linguagens e demandas no cotidiano da fé e das esferas de incidência pública.
O povo latino-americano é, em sua maioria, cristão. Na maior parte dos países, essa cifra ultrapassa os 80%, somando-se católicos e evangélicos. Na Bolívia, Equador, Paraguai e Peru, a porcentagem de cristãos chega a 90%. Todos os países da América Latina contam com pelo menos 50% da população cristã (com exceção do Uruguai, com 44,4%). Os dados (FRANCO, 2021) também mostram uma tendência de um trânsito religioso em muitos países. Guatemala, Nicarágua e Honduras atualmente diminuíram a distância do percentual entre católicos e evangélicos. El Salvador, Brasil, Costa Rica, Panamá, República Dominicana e Bolívia têm, todos, mais de 20% da população evangélica. Se olharmos mais de perto, nos territórios mais pobres, esse percentual se amplia.
Para além da importância histórica da junção entre fé e luta no continente latino-americano, é no dia a dia da classe trabalhadora que compreendemos o papel dessa fé. As igrejas, templos, terreiros, casas de rezas são parte da cultura de nosso povo que encontra nesses espaços acolhimento, sentido de comunidade e potencial de viver suas espiritualidades de forma coletiva. Em um continente atravessado pelo colonialismo, a religiosidade popular também foi a construção de uma identidade que segue resistindo, ainda que em disputa. A religião, portanto, é inerente ao nosso povo, desde seu cotidiano até as lutas e revoluções que marcaram tão fortemente nossa história.
Entretanto, após o avanço do neoliberalismo nos territórios latino-americanos, houve um crescimento da direita nas esferas políticas e sociais no continente. Esse processo se refletiu não apenas pela retirada de direitos da classe trabalhadora na América Latina, mas também em discursos de enfraquecimento das instituições democráticas. O fundamentalismo religioso é um dos instrumentos para a manutenção desse projeto neoliberal, que tem como objetivo a fixação por uma verdade única, imutável e inquestionável; ou seja, trata-se de algo antidialógico e antiplural, com forte idealização de um passado inexistente. Essa verdade absoluta e dogmática vai muito além da religião: ela constrói modelos de vida políticos, econômicos e sociais.
A pesquisa Evangélicos, Política e Trabalho de Base, do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, tem como objetivo apresentar neste dossiê uma síntese sobre o caminhar tortuoso da religião cristã na América Latina e o fundamentalismo em ascensão. Apresentaremos o fenômeno do fundamentalismo religioso enquanto um projeto de poder imperialista, abordando desde sua origem até a atual projeção nas políticas na região e suas principais bandeiras, como as pautas antigênero, anticomunista e antidemocráticas, com exemplos concretos a partir da política brasileira.
Todavia, instigadas pelas práticas revolucionárias de tantos mártires de Nuestra América, resgatamos as vozes e as resistências, do passado e do presente, nesse enfrentamento ao fundamentalismo religioso, por meio dos estudos teóricos sobre o tema e na realização de entrevistas com formadores e educadores do campo popular e com a base evangélica dos movimentos populares, influenciados pelos ensinamentos do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda e do educador brasileiro Paulo Freire.
Fundamentalismo religioso e suas origens
No final do século 19 e início do século 20, a teologia cristã, como campo de estudo, foi marcada por diversos avanços no pensamento e metodologias de investigação, muito influenciada pelo Iluminismo. Essas visões também implicavam em práticas como o chamado Evangelho Social, que buscava uma resposta teológica para a realidade da classe trabalhadora urbana nas grandes cidades estadunidenses, após a crise e as transformações econômicas da Guerra de Secessão1Notas (1861-1865).
Com o avanço da ciência ocidental e seus entendimentos sobre outras literaturas sagradas, era preciso olhar para a Bíblia a partir de sua linguagem e contexto, o que ficou conhecido como método histórico-crítico, questionando sua literalidade e colocando a importância da figura de Jesus e outras histórias mais pelo seu valor ético e moral do que pela metafísica; esse movimento ficou conhecido como Teologia Liberal.
É nesse contexto histórico que emerge o fundamentalismo religioso, com a organização de grupos de protestantes conservadores que passam a questionar essa nova forma científica de ver o mundo, reagindo aos novos ares que surgiam. A partir de 12 volumes publicados e intitulados de The Fundamentals: A Testimony to the Truth [Os fundamentos: um testemunho da verdade], que ocorreram entre os anos 1910 e 1915, esse movimento passou a reivindicar alguns pontos como inegociáveis à fé cristã. Essas publicações foram financiadas pelo bilionário presbiteriano Lyman Stewart, organizadas pelo Reverendo Reuben Archer Torreye e distribuídas para todo os Estados Unidos e outros países de língua inglesa. Cerca de 3 milhões de exemplares chegaram gratuitamente às mãos de fiéis, teólogos e missionários (SOUSA, 2021).
O fundamentalismo nasce, portanto, como uma reação violenta à ciência, ao humanismo e aos valores da modernidade que surgiram a partir do Iluminismo, criando assim um inimigo a ser combatido. A visão desse projeto iniciada no final do século 19 nos EUA é muito vinculada à ideia do “Destino Manifesto” – que defendia que a conquista do Oeste dos EUA pelos colonizadores estadunidenses era uma vontade de Deus. A ideia é atualizada pela direita cristã na segunda metade do século 20, tornando-se uma justificativa concreta para as ações imperialistas dos Estados Unidos em todo mundo, em especial, na América Latina.
O projeto imperialista dos EUA está intimamente ligado a essa visão religiosa fundamentalista de que eles são os enviados de Deus para transformar os bárbaros em civilizados. O protestantismo estadunidense foi a justificativa religiosa de todas as suas ações imperialistas, não sendo possível desatar as mãos do imperialismo e do fundamentalismo religioso, cujos adeptos veem sua luta como uma guerra do bem contra o mal que atravessa não só a religião, mas a política, o poder militar, a educação e o meio ambiente. O fundamentalismo religioso se insere no mundo posicionando-se ativamente contra seus opositores em diversas dimensões, atravessando a vida cotidiana dos trabalhadores. Nesse sentido, convencer o outro é um elemento importante dessa narrativa, dado que ela justifica a máxima protestante: “converta o indivíduo e a sociedade se transformará”. Não são mais os pecados individuais que deverão ser purgados, mas o pecado de todas as nações.
A riqueza é um dever protestante para esse grupo, sendo que a fé e a disciplina a partir de leituras fundamentalistas da Bíblia permitiriam ao crente prosperar, sobretudo, financeiramente. A pobreza aparece como consequência da falta de fé e da indisciplina no trabalho dos fiéis. A Teologia da Prosperidade, tão vinculada aos neopentecostais, na verdade está intimamente ligada aos protestantes conservadores do início do século 20.
No entanto, para os negros, imigrantes e trabalhadores pauperizados dos EUA, que frequentavam as igrejas protestantes no começo do século passado, essa visão não fazia muito sentido. Essa certa “inadequação” a um protestantismo da riqueza é a raiz do pentecostalismo, desencadeado pelo Movimento da Rua Azusa, que aconteceu em 1906, em Los Angeles. Esses fiéis negros, pobres e imigrantes vivenciaram, por meio do testemunho do pregador negro William J. Seymour, uma experiência catártica e espiritual, incorporando a africanidade daquele povo, expressos em seus corpos e suas músicas. Essa africanidade litúrgica trouxe a herança dos rituais praticados pelos escravizados africanos: ring shout, as danças, palmas, devoção com as experiências de glossolalia (falar em línguas desconhecidas) – e a emoção que transborda nas celebrações e louvores.
O pentecostalismo dignificou, à sua maneira, as pessoas marginalizadas em meio às tensões socioeconômicas e raciais que aconteciam naquele período nos EUA, e promoveu igualdade de gênero em sua liderança. A partir de uma experiência de fé, foi criada uma identidade coletiva, que serviu como forma de lidar com certos sofrimentos individuais: a luta contra o alcoolismo e a resolução de boa parte das angústias psicossociais e das violências e atritos do lar.
O pentecostalismo nasce, portanto, como forma de resistência do povo negro nos Estados Unidos, desejante de viver sua espiritualidade em diálogo com sua ancestralidade e que não se enquadravam nos discursos e liturgia proposta pelo cristianismo protestante branco.
Embora os protestantes pentecostais encontrassem dificuldades de praticar sua fé na forma institucional e convencional da religião frente à resistência do protestantismo tradicional e fundamentalista estadunidense, foi a partir da década de 1960 que estes iniciam uma aproximação com os pentecostais, com o intuito de retomar os espaços perdidos na religiosidade da classe trabalhadora.
Esse fenômeno não pode ser entendido sem as ações do pastor batista Billy Graham, no final da década de 1940. Billy Graham, além de pastor e grande pregador, tinha a convicção que o “destino da América” dependia da conversão de seus indivíduos ao cristianismo, a partir de uma leitura fundamentalista da Bíblia. Ele constituiu a Associação Evangelística Billy Graham – considerada uma reforma do fundamentalismo do começo do século 20 com forte ação expansionista – amparada com muito financiamento para as ações na América Latina em aliança com governos ditatoriais (e com um discurso anticomunista a partir de um diálogo popular e para as massas, atacando os comunistas por meio das pautas morais, como a defesa da família patriarcal, as quais os cristãos deveriam defender e pelas quais deveriam se mobilizar. Graham se tornou conselheiro pessoal de presidentes estadunidenses, como Richard Nixon – que chegou a lhe oferecer a embaixada de Israel -, Bill Clinton e George W. Bush.
Embora o fundamentalismo religioso não tenha nascido nas igrejas pentecostais, é importante mencionar que, por mais que o movimento pentecostal rompesse com algumas formas de opressão, a centralidade com pontos tidos como tradicionais da fé cristã se manteve e foi explorado com o decorrer do tempo nessa vinculação estratégica entre fundamentalismo e pentecostalismo. Nesse sentido, o fundamentalismo, aliado a um projeto imperialista, conseguiu absorver uma nova manifestação religiosa. A direita cristã tradicional olhou estrategicamente para o fenômeno pentecostal, trazendo elementos teológicos e expansionistas para sua consolidação em diversos territórios do Sul Global.
Portanto, podemos concluir que uma das características do fundamentalismo é seu caráter reativo. Porém, para avançarmos na compreensão das novas narrativas fundamentalistas após o avanço expansionista do pentecostalismo, temos que compreender quais elementos religiosos foram se configurando em Nuestra América ao longo desse período.
Cristianismo e política na América Latina
A partir da década de 1960, nossas raízes coloniais, escravagistas e imperialistas, fruto da herança autoritária que fomos paridos, abre espaço para que se alastre com força as ditaduras latino-americanas. Entretanto, insurge contra essas opressões um movimento cristão na América Latina que utiliza o instrumental analítico marxista combinado com a fé religiosa em um Deus da Libertação. Temos então o desenvolvimento da Teologia da Libertação, que a partir da década de 1960 busca construir uma teologia e prática na luta contra as injustiças e pela libertação do povo pobre e oprimido, a partir da leitura de um Jesus histórico e libertador.
A Teologia da Libertação é uma das respostas das diversas organizações populares formadas no período de avanço da industrialização na região, em que a massa camponesa se proletariza e quando as desigualdades sociais estruturantes de nosso continente se aprofundam. Não é possível pensar no avanço do trabalho de base em nossos territórios por toda a América Latina sem olharmos com generosidade para o cristianismo popular e revolucionário que ocupou essas terras. A nova proposta da fé cristã, promovida pela Teologia da Libertação, que faz a opção preferencial pelos pobres e marginalizados, é um ponto importante para a nova leitura da Bíblia. Essa leitura possui um método que consiste na tríade: 1) Realidade – conviver com o povo, aprender o que eles sabem, ser povo; 2) Bíblia – trazer a Bíblia para o diálogo com o cotidiano, para a realidade, e buscar respostas; 3) Comunidade – partilhar o pão e a vida por meio da transformação comunitária da realidade.
Toda essa nova proposta da Teologia da Libertação tornou-se fundamental “para compreender os mecanismos de opressão da ordem social imperante”, para realizar “uma ruptura radical do estado presente das coisas, uma profunda transformação do sistema de propriedade, o acesso ao poder da classe explorada, uma revolução social que acabe com esta dependência e chegue a uma sociedade socialista” (GUTIERREZ, 1971, p. 43 apud SEMERARO, 2017).
Nesse contexto, a fé e a luta caminharam juntas na América Latina. Muitos exemplos podem ser abordados para pensarmos nesse processo de resistência junto ao cristianismo na América Latina, como a Revolução Sandinista na Nicarágua, onde os cristãos, influenciados pelas ações libertadoras no continente latino-americano, foram essenciais para a luta por libertação nacional. El Salvador, inspirado pelos movimentos cristãos que ganhavam força no continente, pôde, a partir da figura do padre Rutilio Grande (1928–1977) e sua metodologia de leitura crítica e popular da Bíblia, avançar no compromisso com os pobres, bem como o Bloco Popular Revolucionário, tendo como seu principal líder um jovem cristão, Juan Chacón (1952–1980) (LOWY, 2016). Na Colômbia, o padre católico, sociólogo e guerrilheiro Camilo Torres Restrepo (1929–1966) baseava sua visão no “amor eficaz ao próximo” e desafiava e denunciava a Igreja, argumentando que ela havia se corrompido aos poderosos. No Brasil, o maior exemplo dessa junção é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cujo trabalho pastoral da Igreja Católica e da Igreja Luterana foi fundamental para a formação do movimento. (STEDILE; FERNANDES, 2012, p. 19).
É necessário lembrar também de figuras importantes do protestantismo da Teologia da Libertação, como Richard Shaull (1919-2002), teólogo presbiteriano estadunidense que viveu muitas décadas no Brasil e dedicou seus estudos ao diálogo entre o cristianismo e as categorias marxistas, relacionou temas sociais com a fé evangélica e foi nomeado como “teólogo da revolução”. Rubem Alves (1933-2014), aluno de Shaull e responsável por trazer pela primeira vez o termo “Teologia da Libertação”, cujas contribuições são imensas, pois traz a dimensão do corpo e da subjetividade no contexto da luta de classes (ALVES, 1982). Ainda na reflexão teológica, nomes como o da teóloga e biblista mexicana Elsa Támez (1951- ), da argentina Marcella Althaus-Reid (1952-2009) e da brasileira e ativista da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Nancy Cardoso (1959 – ) aprofundaram a dimensão do corpo e da sexualidade a partir da teologia feminista ao trazerem críticas à Teologia da Libertação.
Este estar no mundo na luta por justiça a partir de uma inserção ativa e concreta, corte teológico fundamental inaugurado pela Teologia da Libertação, era algo inaceitável pelo imperialismo e seus aliados. Nesse sentido, é necessário voltar os olhos para a empreitada imperialista estadunidense na América Latina, que enxergou a ameaça a seus privilégios e à ordem estabelecida e investiram contra o povo que construía sua própria fé revolucionária, perseguindo a Teologia da Libertação.
A batalha da subjetividade
Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, nos mostra essa ofensiva imperialista junto ao conservadorismo cristão no continente contra a Teologia da Libertação: “Seitas protestantes, particularmente aquelas com raízes estadunidenses (…) pregavam o evangelho da empresa individual e não da justiça social” (PRASHAD, 2020, p. 101). O lema “seja patriótico, mate um padre” foi levado ao pé da letra em El Salvador. Na década de 1970, junto à CIA, a inteligência boliviana construiu um dossiê contra os teólogos da Teologia da Libertação.
Para além do apoio a golpes, ditaduras e intervenções em eleições no continente latino-americano, uma outra estratégia do imperialismo estadunidense – sutil e de longo prazo – seria construída no enfrentamento às organizações populares da América Latina. Na década de 1980, o governo dos EUA estreitou laços com a Igreja Católica e, no mesmo período, o Papa João Paulo II esteve na Nicarágua, durante o período de revolução naquele país, criticando os padres progressistas. Nesse mesmo período, agentes da CIA se reuniram e construíram um documento que apontava a necessidade de investir em uma batalha no campo subjetivo, ou seja, buscavam moldar a maneira como as pessoas construíam o sentido de suas vidas no contexto de miserabilidade do capitalismo dependente.
A desarticulação da Teologia da Libertação, para além dos limites da esquerda organizada, foi consequência de um projeto imperialista, que enxergou ali uma ameaça no campo subjetivo e que colocava em risco os avanços das políticas neoliberais na América Latina.
Nesse contexto, a aliança entre o pentecostalismo e o fundamentalismo religioso dá um novo contorno à experiência religiosa do nosso povo e passa a se chamar neopentecostalismo, que ganha um espaço maior entre as décadas de 1980 e 1990 e se expande com muita força dos anos 2000 em diante. O boom do neopentecostalismo fortaleceu o avanço do imperialismo e do neoliberalismo por meio das várias tendências da fé, nomeadamente a Teologia do Domínio e o Evangelho da Prosperidade.
A Teologia do Domínio, ou reconstrucionismo, surge nos anos 1970 nos Estados Unidos e busca a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção e manutenção do poder de evangélicos em esferas públicas. Essa corrente está muito associada à ideia de “Guerra Espiritual”, a luta contra um inimigo que pode atuar em diversas áreas da vida, muito vinculada à leitura do Antigo Testamento. O cristão, portanto, não deve mais evitar o mundo – dado teológico dos pentecostalismos anteriores – e tudo o que ele representa de mal, como o pecado e a tentação, mas estar no mundo de forma ativa, em guerra contra esse mal, inclusive ocupando espaços de poder.
Uma outra tendência é a chamada Teologia da Prosperidade, ou a acumulação de bens materiais como sinal de bênção divina. Ser filho/a de Deus é sinônimo de vitória. Embora essa ideia ganhe força entre os neopentecostais, ela possui suas raízes no protestantismo histórico, que compreendia que os vislumbres das bênçãos de Deus podem se refletir também no “aqui e agora” na forma de prosperidade financeira, como uma espécie de recompensa pela disciplina e ética protestante do trabalho.
O discurso fundamentalista das Igrejas encontra um terreno fértil neste momento histórico no qual a classe trabalhadora se encontra na defensiva com os ataques do neoliberalismo à vida social e às formas de subsistência. As massas trabalhadoras não consolidaram seus direitos sociais de forma estrutural, não permitindo um empoderamento desta enquanto organização revolucionária. Além disso, o processo de desindustrialização e reestruturação do mundo laboral fez com que muitos trabalhadores perdessem, além de seu emprego, seu espaço de sociabilidade e luta coletiva, uma vez que nas fábricas eles tinham a possibilidade de se organizarem coletivamente para melhorar suas condições de vida. A igreja absorveu a necessidade de socialização, transformando as pautas coletivas em pautas individuais, ressignificando a identidade de trabalhadores – transformando-os em irmãos – e retirando, do ponto de vista econômico e ideológico, a centralidade do proletariado organizado enquanto sujeito revolucionário.
O neoliberalismo contribui para a naturalização dos acontecimentos, em que o pobre ou a pobreza são justificados por uma situação de sorte ou azar na vida; as Igrejas fundamentalistas corroboram essa visão, conectando a ideia de sorte ou azar com a dedicação ou falta de fé. A construção ideológica da perda da centralidade econômica e política do proletariado, e a consequente quebra da visão do socialismo e da revolução como horizonte na busca pela superação da situação de opressão, fez com que as teologias críticas e transformadoras perdessem espaço para formas individualistas do povo pobre e oprimido viver sua fé. A direita cristã retomou e absorveu a religião como mecanismo de dominação, utilizando-se, muitas vezes, de metodologias da própria esquerda, tornando-se útil à classe trabalhadora e realizando um trabalho de base cotidiano muito eficiente.
As igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais absorveram as necessidades concretas e cotidianas do povo, ao darem respostas objetivas e subjetivas para parte considerável da classe trabalhadora por meio de cultos catárticos cheios de louvor, funcionando praticamente como festa, cultura e lazer nas periferias, além de muitas vezes serem o único espaço coletivo de convivência.
Fundamentalismo religioso latino-americano
A explosão do neopentecostalismo no continente latino-americano ganha visibilidade a partir do uso das diversas mídias e sua relação com a política. As mudanças de postura do segmento evangélico frente à política latino-americana podem ser datadas a partir dos anos de 1980, quando a premissa “evangélicos não se misturam com política” já não fazia mais sentido. No Brasil, a entrada assumida na política pode ser sintetizada pela máxima “irmão vota em irmão”. As noções sobre o que é do “mundo” e o que é de “Deus” começaram a ganhar outros contornos, e influenciaram na maneira de se portarem frente à política institucional. À medida que os anos se passavam, pode-se dizer que a religião como código/símbolo de linguagem e política foi ganhando força.
Como exemplo desse movimento, temos as eleições presidenciais brasileiras de 2014, que já demonstraram que a comunicação política passou a ter, cada vez mais, uma roupagem religiosa com pautas da defesa da concepção patriarcal de família e da moral cristã. Anos depois, é importante rememorar a forma que a “religião” foi usada no pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em 2016. Eduardo Cunha, o então presidente da Câmara, pentecostal da Assembleia de Deus e peça-chave no processo de impeachment, abre a sessão com a seguinte frase: “Está aberta a sessão. Sob a proteção de Deus”.
Durante a votação, que foi transmitida pelos principais meios de comunicação, pôde-se perceber uma forte motivação e intenções de cunho moral e religioso nos discursos dos parlamentares. Embora o processo não tenha sido plenamente orquestrado pela bancada evangélica, teve nela um apoio fundamental. A Agência Pública apontou que 83,85% da bancada evangélica votou favoravelmente ao impeachment de Dilma (eles representam cerca de 36% do total de deputados federais no Congresso brasileiro). Segundo a pesquisa do Huffpost Brasil, a menção aos crimes de responsabilidade fiscal foram citadas apenas 18 vezes na Câmara dos Deputados, enquanto termos como “Família e Filhos” e “Deus” foram citadas 250 e 75 vezes, respectivamente, do total de 513 deputados federais (apud CUNHA; LOPES; LUI, 2017, p. 127)
Um outro momento marcante da gramática religiosa na política latino-americana foi o golpe contra Evo Morales, em 2019. Ao tomar posse após a derrubada de Morales, a autoproclamada presidenta interina Jeanine Áñez marchou até o Palácio Presidencial com uma enorme Bíblia em suas mãos e disse que renovaria o sistema político boliviano; alguns anos antes, ela havia tuitado que sonhava “com uma Bolívia livre de ritos indígenas satânicos”.
Além disso, durante a pandemia, o fundamentalismo religioso no Brasil, Chile, Peru e em outros países da região contribuiu para uma pressão contra o isolamento social, na defesa de que a fé, mais do que as medidas sanitárias, protegeria os fiéis. A ação anticientífica é um traço importante também na compreensão do fundamentalismo e que está presente desde sua raiz.
Embora o protestantismo nestes territórios tenha sido caracterizado por uma forte atuação anti-católica, nem só de evangélicos vive o fundamentalismo religioso na América Latina. Nas últimas décadas, evangélicos e católicos seguem juntos em uma agenda extremamente conservadora, atuando principalmente no campo jurídico contra pautas progressistas, enfraquecendo a democracia e com uma bandeira anti-gênero fincada em suas ações. Além disso, os discursos políticos são embebidos de religiosidade, junto a um investimento estadunidense em missões e projetos evangélicos pelo continente.
Bandeiras fundamentalistas
A chamada defesa de pautas morais é uma bandeira importante nos discursos dos fundamentalistas, e se manifesta tanto nos Poderes Executivo e Legislativo quanto no Judiciário. Os discursos contra “ideologia de gênero” têm sido a grande bandeira do fundamentalismo religioso. A noção de “ideologia de gênero” surge no contexto católico, mas encontra ampla divulgação nas mídias e redes sociais como uma forma da direita se referir às pautas de gênero, sendo absorvida pelos setores evangélicos fundamentalistas. Esse termo condena tudo aquilo que não é cisheterossexual, acreditando que o conceito de família está limitado ao fruto de uma relação matrimonial entre um homem e uma mulher, sendo o aborto altamente condenável nesse âmbito, ao delegar unicamente à Deus o poder de tirar a vida, desconsiderando o direito da mulher em decidir sobre seu próprio corpo. Qualquer questionamento a essa perspectiva conservadora é enquadrado como “ideologia de gênero”, provocando pânico moral.
O discurso pró-família patriarcal como um projeto econômico-político tem avançado muito na América Latina. A manutenção dessa “família ideal” como modelo a ser defendido pretende manter o status quo em termos de políticas públicas: as mulheres como procriadoras e principais cuidadoras e responsáveis pelos filhos, pessoas doentes e idosos, ou seja, os cuidados domésticos continuarão sendo responsabilidade do mundo privado das mulheres. Para isso, os fundamentalistas se apoiam no Direito e na educação como meios de perpetuação de uma sociedade patriarcal e extremamente desigual.
Grupos religiosos, de mãos dadas com o conservadorismo das elites latino-americanas, têm saído às ruas contra a legalização do aborto, enfrentado movimentos feministas que avançaram na discussão sobre o direito de escolha das mulheres sobre os próprios corpos. A inserção do fundamentalismo religioso na disputa de aprovação das leis tem sido, muitas vezes, determinante para frear pautas importantes e amplamente debatidas pelos setores progressistas contra o patriarcado.
No Brasil, são os calvinistas – protestantes históricos – que fomentaram com profundidade os discursos fundamentalistas do atual governo do presidente Jair Bolsonaro e ocuparam ministérios importantes como o da Justiça (pastor André Mendonça) e da Educação (pastor Milton Ribeiro). A pastora batista Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – figura popular entre os evangélicos e que faz um relato de sua própria história a partir de opressões e violências de gênero sofridas por ela –, atuou fortemente contra a igualdade de gênero e as liberdades sexuais, articulando internacionalmente ações contra a legalização do aborto.
O pastor presbiteriano e ex-ministro da Educação Milton Ribeiro defendeu a pauta do homeschooling, um compromisso assumido pelo Governo Federal, e um tema também defendido pelo conservadorismo estadunidense nas décadas de 1960 e 1970. Como a escola é um espaço fundamental no Brasil, assim como ocorre em outros países, não só do ponto de vista da educação, mas de proteção e sobrevivência de muitas crianças contra a violência e a fome, a pauta do homeschooling não dialoga com a classe trabalhadora mais empobrecida. No entanto, para frear pautas progressistas dentro da escola ou qualquer visão que questione a realidade vivida, o governo Bolsonaro se colocou na defesa da chamada “Escola Sem Partido”, que se tornou um projeto de lei para intimidar os professores a se limitarem a uma “educação neutra”.
É importante refletirmos que, ao olharmos para nossa história e nossa conjuntura, o fundamentalismo tem atuado estrategicamente lado a lado com o povo. Sem essa atuação cotidiana no interior das igrejas, o avanço institucional de pautas conservadoras não seria possível, dado que a adesão popular na defesa desses temas é imprescindível para criar uma aparente legitimidade na sociedade.
Projeto de poder na política: um exemplo brasileiro
Em 2016, um mês antes de ser consumado o golpe contra a então presidenta Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro, declaradamente católico, deixa o Partido Progressista (PP) e se filia ao Partido Social Cristão (PSC). No ato de filiação, Bolsonaro é batizado – ritual simbólico no campo religioso evangélico – em um ritual celebrado pelo presidente do partido, o pastor Everaldo Pereira, da Igreja Assembleia de Deus. O batismo não se deu em qualquer lugar; ocorreu em Israel, nas águas do Rio Jordão, lugar onde segundo a Bíblia Jesus teria sido batizado. Isso fez com que muitos acreditassem na conversão de Bolsonaro à fé evangélica, um movimento estratégico para captar o imaginário do povo evangélico.
Foi o pânico moral, aliado às fake news, que impulsionou a candidatura de Bolsonaro e sua relevância no campo religioso cristão nas eleições presidenciais de 2018. Foi muito importante para os evangélicos um candidato “autêntico” que se colocava em defesa da família patriarcal e dizia o que pensava sem filtros. Aparentemente, Bolsonaro não se importava com status, e sua imagem foi construída enquanto um homem simples, além de representar o “novo” em contraposição aos anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT), associado pela campanha bolsonarista com “a velha política” corrupta.. Essa estratégia mostrou-se acertada, culminando com a vitória de Bolsonaro em 2018, apesar de suas falas e posicionamentos racistas, misóginos e violentos. O êxito de Bolsonaro deveu-se também a sua aproximação do setor evangélico, que tem ocupado espaços institucionais de poder. Ele recebeu 71% dos votos do eleitorado evangélico (BALLOUSSIER, 2018). No Brasil, esse setor representa 31% da população (BALLOUSSIER, 2020).
Os discursos em defesa da família e da moral, as falácias da ideologia de gênero e as fake news direcionadas a esse público foram muito importantes para sua vitória. O fundamentalismo religioso entrou na esfera política para afirmar um certo modelo de sociedade: o capitalismo, que atualmente aparece com uma face neofascista. Aliando-se ao neoconservadorismo, esse fundamentalismo avançou no continente latino-americano nos últimos anos, deu centralidade ao discurso moral vinculado às questões reprodutivas a partir da “família tradicional”, e ergueu bases aparentemente indestrutíveis no diálogo com a nossa classe, inclusive reorganizando-a para um projeto em que ela é a principal vítima.
Resistências e futuros horizontes
Dejamos lo que nos divide y busquemos lo que nos une
– Camilo Torres Restrepo
A classe trabalhadora vive sua religiosidade de forma cotidiana, em seus ritos individuais, em suas conversas cúmplices com Deus, em seus valores e nos espaços coletivos de comunhão. É nesse cotidiano que ela caminha para uma identidade evangélica forjada na palavra “irmão” mais do que “trabalhador”. Isso demonstra o poder da religião nas bases, em que os códigos de linguagem são outros, não mais de um povo que se organiza exclusivamente a partir de sindicatos, coletivos sociais de luta, movimentos populares, mas principalmente nas igrejas. Não se faz revolução sem um sujeito revolucionário; no caso latino-americano, ousamos dizer que não avançaremos para nenhuma transformação radical de nossa sociedade sem considerar, na prática, a formação cristã de nosso povo.
Se uma nova roupagem da fé se instaurou nas casas das famílias trabalhadoras, é a partir dali, de um resgate inovador das nossas teologias libertadoras de luta, que iremos combater o fundamentalismo religioso e construir uma nova morada onde a fé seja respeitada e, inclusive, absorvida como uma linguagem legítima de nossa classe. Temos que estar abertos a uma compreensão mais abrangente da religião, como nos ensinou Fidel Castro: “não pode existir nada mais antimarxista que a petrificação das ideias” (apud. MARTINEZ, 2019, p. 91).
É na batalha de ideias e emoções, no diálogo profundo e respeitoso com o povo crente que encontrou na Bíblia a literatura para um caminho possível de sobrevivência diante das tantas adversidades vividas em nosso continente, que poderemos extinguir o fundamentalismo religioso.
É importante notar que a maioria da base dos movimentos populares no Brasil são cristãos religiosos comprometidos com a luta e com a fé. É preciso entender a Bíblia, Deus, a Fé e toda dimensão da religiosidade como forma de compreensão do mundo, para que seja possível construir novas linguagem libertadoras que nos unam enquanto classe por um projeto revolucionário comum.
Resgatar o pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci (GRAMSCI, 1972) acerca da religião e do cristianismo, em especial o papel da Igreja Católica, nos auxilia a ir além da discussão limitada acerca da crença ou não crença em Deus. Trata-se de compreender a religião e sua força em movimentar corações e mentes para a ação política. Gramsci radicaliza a máxima de Marx da religião como ópio do povo já que, ao ser um instrumento de denúncia e protesto frente às mazelas sofridas pelo povo, como a fome e o analfabetismo, é também potência de criação coletiva de novos valores éticos e morais frente a uma realidade opressora. A religião traz em si duas facetas em disputa: é tanto alienação como força transformadora.
A compreensão de Gramsci sobre a religião não é ingênua ou conciliadora, já que ele compreende todas as opressões históricas contra o povo em que a religião foi protagonista, muitas vezes domesticando a classe trabalhadora e explorando suas fragilidades. Mas a partir dela, do que ela movimenta nos indivíduos, será possível construir um senso comum contra-hegemônico, como dizia Gramsci. Nesse sentido, a defesa puramente anticlerical e ateísta nas táticas revolucionárias será empecilho com roupagem elitista, inclusive contra a superação de visões fundamentalistas que hoje ocupam nossos territórios.
Nessa tarefa, Cuba tem muito a nos ensinar sobre as possibilidades de avanço no diálogo entre a construção da revolução e articulação entre fé e luta. Após um momento inicial da conquista revolucionária, muitos religiosos que permaneceram em Cuba não se sentiam, de fato, parte do processo revolucionário, dada a resistência do Estado às Igrejas, fruto de uma leitura ainda limitada do tema pelo marxismo europeu e também pela origem estadunidenses das igrejas evangélicas no país. Essa resistência ainda era muito presente na década de 1970, mas foi lentamente abrindo espaços para uma nova perspectiva de atuação conjunta entre Igreja e Estado. A Revolução Cubana soube, com o tempo, acolher e incorporar os elementos de fé para o fortalecimento da luta.
Se o fundamentalismo conseguiu, a partir de muito financiamento e trabalho de base nos territórios, criar um novo senso comum entre os trabalhadores, mesmo que em contradição com suas vidas cotidianas, será a partir do concreto e das tantas linguagens que atravessam a vida desses trabalhadores que construiremos uma possibilidade crítica e revolucionária para que possam viver sua fé. Reelaborar criticamente a fé do nosso povo é um caminho necessário e urgente para consolidarmos a filosofia da práxis no continente latino-americano.
Do ponto de vista das estratégias marxistas a partir dos ensinamentos gramscianos, podemos refletir que um primeiro passo é olharmos para as forças contra-hegemônicas do campo religioso que já seguem resistindo. Sabemos que o crente não é simplesmente passivo frente à sua religião, mas que é através dela que ele produz e reproduz visões de mundo – não sem contradições, sem reformulações. Como Gramsci aponta, “há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e operários da cidade, um catolicismo das mulheres e um catolicismo também variado dos intelectuais” (1975, Q11, §13, p.1397). Assim é com os evangélicos, já que quando se trata de religião, falamos de uma multiplicidade dentro de uma mesma crença.
Portanto, é importante não generalizar e homogeneizar os evangélicos na América Latina, colocando-os enquanto fundamentalistas ou massa de manobra. Não basta a esquerda repetir o sentimento antirreligioso de alguns pensadores do marxismo ocidental para lidar com a religiosidade no Sul Global, seja ela cristã ou não.
Se o centro do debate fundamentalista no continente latino-americano tem sido a bandeira da chamada “ideologia de gênero”, é na construção de alternativas que as resistências se firmam, se consolidam e só podem avançar dialetizando linguagens entre a fé e a luta. O fundamentalismo reage aos avanços do campo progressista e tem incorporado alguns de seus componentes em sua estratégia; temos que olhar para esses avanços e fortalecê-los junto a nossa classe, a partir dessa outra linguagem que não foi incorporada plenamente pelo marxismo nas últimas décadas. É a partir daí que o marxismo consegue desatar os nós no diálogo popular e avançar nesse campo ocupado pelo imperialismo e seus aliados. É preciso conhecer e dialogar com os caminhos que seguem resistindo, muitas vezes isolados do campo popular marxista. Resgatar nossa história recente e enxergar as resistências que ocupam também nossos territórios é iniciar a construção de pontes necessárias e imprescindíveis entre fé e luta.
Os desafios da construção de sonhos e de um futuro nos provoca a necessidade de criarmos uma esperança que pode de fato ser vivenciada de forma cotidiana. É também nossa tarefa resgatar nossa história e fazer com que a luta por direitos sociais seja traduzida em organização popular a partir de espaços de formação e compreensão da realidade, sem deixar de compreender as novas linguagens e possibilitar vivências de solidariedade coletiva, lazer e festa. Nesses esforços, é importante que não negligenciemos ou descartemos novas ou diferentes formas de interpretar o mundo, como por meio da religião, mas sim promover um diálogo aberto e respeitoso entre elas para construir unidade em torno de valores progressistas compartilhados.
Não há respostas prontas; entender o nosso inimigo, como ele age em escala macro e micro, ou seja, a partir de grandes projetos, mas também nas entrelinhas dos discursos e práticas, é um ponto de partida para que sejam criados novos mecanismos de diálogo e construção coletiva para o nosso projeto contra-hegemônico, mas não avançaremos se não soubermos profundamente o que nossa classe deseja e para o que ela se movimenta.
O peruano marxista José Carlos Mariátegui, utilizando o termo Agonia, de Miguel de Unamuno, nos chama para a necessidade de nos re-encantarmos. Tanto os revolucionários marxistas quanto os cristãos revolucionários foram almas agônicas, em luta por esse re-encantamento (LOWY, 2005). Essa agonia revolucionária, para Mariátegui, se traduz também na superação do antagonismo entre fé e ateísmo, igualando a emoção revolucionária com a emoção religiosa. Na verdade, Mariátegui quer dizer que o que nos move, seres agônicos por justiça, é mais do que qualquer instituição pode limitar: é um sentimento profundo na busca por algo que ainda não se realizou e que teimosamente buscamos construir como necessidade vital. Mariátegui amplia a perspectiva marxista sobre religião e nos provoca, ao afirmar que uma revolução é sempre religiosa, dialetizando, portanto, o materialismo e a religião, a mística revolucionária e a fé, os cristãos e os marxistas.
Notas
1 A Guerra de Secessão, ou Guerra Civil Americana, aconteceu nos Estados Unidos entre os estados do Norte e os estados do Sul, de 1861 a 1865. Esse conflito foi iniciado quando os estados do Sul separaram-se da União e formaram os Estados Confederados da América. A Guerra de Secessão foi motivada pela divergência que havia entre os dois grupos a respeito da abolição da escravatura e da extensão dos novos territórios que estavam sendo ocupados no oeste.
Referências
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