Vida ou dívida: o limiar estrangulador do neocolonialismo e a busca por alternativas na África
Dossiê nº. 63 explora as origens da crise da dívida na África, expondo o estrangulamento financeiro ocidental como sua causa e explorando quais alternativas podem ser construídas.
Seun Kuti é membro da banda Egypt 80 e o filho mais novo do falecido pioneiro nigeriano do afrobeat e figura política Fela Kuti, cujo popular álbum “Zombies”, lançado em 1976, criticou duramente a ditadura militar que estava no poder na época e inspirou resistência entre o povo nigeriano. Quase quarenta anos após o lançamento do álbum de seu pai, o videoclipe de Seun, “IMF”, remonta ao ataque contínuo contra a soberania do povo africano, apresentando fileiras de funcionários do Fundo Monetário Internacional (FMI) semelhantes a zumbis perseguindo um homem africano e , finalmente, transformando-o em um monstro desfigurado e obcecado por dinheiro, idêntico a eles.
Antes do anúncio da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, em março de 2020, as nações mais pobres do mundo já lutavam com níveis de endividamento extremamente altos – e impagáveis. Entre 2011 e 2019, o Banco Mundial informou que “a dívida pública em uma amostra de 65 países em desenvolvimento aumentou em média 18% em relação ao PIB – sendo muito maior em diversos outros casos. Na África subsaariana, por exemplo, a dívida aumentou em média 27% em relação ao PIB” (Estevão; Essl, 2022).
A crise da dívida não ocorreu devido a gastos do governo em projetos de infraestrutura de longo prazo, o que poderia no fim das contas ser pago com o aumento das taxas de crescimento, permitindo que os países saíssem de uma crise permanente da dívida. Ao contrário, esses governos pediram dinheiro emprestado para pagar dívidas mais antigas aos ricos detentores de títulos, bem como para sanar suas contas correntes (para a manutenção da educação, saúde e outros serviços básicos). “Entre os trinta e três países subsaarianos de nossa amostra”, observou o Banco Mundial, “os gastos atuais superam o investimento de capital em uma proporção de quase três para um” (Estevão; Essl, 2022). Na pandemia, os países que haviam adotado a política do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional para sair da crise da dívida fracassaram. As taxas de crescimento encolheram, o que significou que os volumes da dívida exlplodiram, e assim esses governos decidiram tomar mais empréstimos e adotar políticas de austeridade mais profundas, o que aumentou drasticamente o peso da dívida sobre suas populações.
Ao registrar, à sua maneira, o que é universalmente reconhecido como uma crise da dívida intratável nos países mais pobres, o Fundo Monetário Internacional (FMI) advertiu para a grande probabilidade do surgimento de uma grave crise bancária (ao mesmo tempo em que ignora os fatores que impulsionam esse cenário). “Nosso teste de estresse bancário global atualizado mostra que, em um cenário severamente adverso, até 29% dos bancos de mercados emergentes violariam as exigências de capital”, escreveu o FMI em outubro de 2022 (Fundo Monetário Internacional, 2022b, p. ix). Isso significa que o contexto de alta dívida, alta inflação e baixas taxas de crescimento (com expectativas de emprego reduzidas) poderia levar ao colapso de um terço dos bancos nas nações mais pobres.
Nem o FMI, nem o Banco Mundial, nem mesmo qualquer uma das instituições financeiras internacionais (IFIs) tem algum caminho confiável para sair dessa crise. De fato, o relatório do FMI se rende à realidade ao dizer aos bancos centrais em todo o mundo para “evitar uma flexibilização das expectativas de inflação” e para assegurar que “o aperto das condições financeiras precisa ser calibrado cuidadosamente a fim de evitar condições desordenadas de mercado que poderiam colocar a estabilidade financeira indevidamente em risco” (Fundo Monetário Internacional, 2022b, p. ix). O foco aqui é manter “o mercado” feliz, enquanto não há um cuidado sério com a espiral descendente das condições de vida para a grande maioria das pessoas no planeta. Em seu Relatório de Monitoramento Fiscal de outubro de 2022, com o subtítulo Ajudando os povos a se recuperarem, o FMI observou que, embora as principais prioridades dos governos devam ser “garantir que todos tenham acesso a alimentos acessíveis e proteger as famílias de baixa renda do aumento da inflação”, eles não devem tentar “limitar os aumentos de preços por meio de controles de preços, subsídios ou cortes de impostos”, o que “seria oneroso para o orçamento e, em última análise, ineficaz” (Fundo Monetário Internacional, 2022c, p. xi-xii).
Em janeiro de 2023, o World Economic Outlook do FMI previu um crescimento um pouco melhor, embora “inferior”, mas alertou para as contínuas preocupações com o problema da dívida das nações mais pobres, afirmando que “a combinação de altos níveis de endividamento da pandemia, menor crescimento e maiores custos de empréstimo exacerba a vulnerabilidade dessas economias, especialmente daquelas com necessidades significativas de financiamento em dólares a curto prazo” (Fundo Monetário Internacional, 2023, p. 7). O antídoto para o problema da dívida, segundo o FMI, é “a consolidação fiscal e as reformas do lado da oferta que aumentam o crescimento”, ou seja, mais da mesma velha armadilha da dívida-austeridade. Se for dito aos governos das nações mais pobres que não usem essas ferramentas básicas (que são usadas rotineiramente pelas nações mais ricas), sua única opção – no que diz respeito ao FMI – é pedir empréstimos, a fim de fornecer até mesmo auxílio para as pessoas mais pobres em seus países. De fato, o FMI se rendeu à realidade e não oferece às nações mais pobres nenhuma saída viável de uma crise da dívida permanente.
Este dossiê foi elaborado com o conhecimento de que essa crise que sitia as nações mais pobres não é resultado de falhas de mercado a curto prazo ou de ciclos de negócios que irão se recuperar, e que não é totalmente uma consequência da má administração das finanças ou da corrupção profundamente enraizada dos governos. Em vez disso, nossa avaliação da crise da dívida se baseia em um importante discurso do presidente da Burkina Faso, Thomas Sankara (1949-1987), na Organização de Unidade Africana, em julho de 1987. “As origens da dívida vêm das origens do colonialismo. Quem nos empresta dinheiro são aqueles que nos colonizaram”, explicou Sankara. A “dívida é neocolonialismo”, com as políticas fiscais e monetárias de muitos dos Estados africanos assumidas pelos “assassinos técnicos” das IFIs. A dívida é uma reconquista da África inteligentemente administrada com o objetivo de subjugar seu crescimento e desenvolvimento por meio de regras estrangeiras”, continuou ele, com as IFIs definindo políticas por meio do uso da dívida como um instrumento para exigir “ajuste estrutural” dos ministérios das finanças domésticas e bancos centrais (Sankara, 2011).
Gro Harlem Brundtland, ex-primeiro-ministro da Noruega e então presidente da Comissão Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (também conhecida como Comissão Brundtland), veio à reunião da Organização para a Unidade Africana em Adis Abeba (Etiópia) em 1987 para afirmar que toda a dívida das nações mais pobres não poderia ser paga e deveria ser perdoada. Sankara reconheceu a importância da avaliação da Comissão Brundtland e declarou:
A dívida não pode ser reembolsada, primeiro porque se não pagarmos, os credores não morrerão. Isso é um fato. Mas se pagarmos, vamos morrer. Isso também é um fato. Aqueles que nos levaram ao endividamento jogaram como se estivéssemos em um cassino. Enquanto eles tiveram ganhos, não houve debate. Mas agora que sofrem perdas, exigem reembolso. E nós falamos de crise. Não, Sr. Presidente, eles jogaram, eles perderam. Essa é a regra do jogo, e a vida continua. Não podemos pagar porque não temos meios para fazê-lo. Não podemos pagar porque não somos responsáveis por essa dívida (Sankara, 2011).
Uma alternativa à crise da dívida é uma greve da dívida, o que o cubano Fidel Castro começou a cogitar em seu discurso na reunião do Movimento dos Não-Alinhados em Nova Delhi, em 1983, e que estava na agenda do Diálogo Continental sobre a Dívida Externa em Havana, em agosto de 1985. É dentro desta dinâmica que Sankara falou da necessidade de uma “frente unida de Adis Abeba contra a dívida”.
O contexto para tal “frente unida contra a dívida” voltou, mas a vontade política para isso agora é tão baixa quanto era então. No entanto, o mundo é muito diferente hoje do que era nos anos 1980. Outras alternativas se apresentaram desde então, como aquelas disponíveis por meio da integração regional e por meio de alternativas às IFIs apoiadas pelo Ocidente (por exemplo, financiamento da China e de outros grandes países em desenvolvimento).1
Este dossiê começa com uma introdução ao mundo das IFIs – principalmente o FMI – e seu papel no agravamento da pobreza provocada pelo colonialismo e sua transformação em uma crise permanente da dívida, e depois passa a uma avaliação mais profunda das contradições da dívida soberana no continente africano. A seção final traz uma declaração do Coletivo de Economistas Políticos Africanos sobre a crise da dívida induzida pelo FMI e oferece alternativas ao financiamento liderado pelas IFI para administrar a turbulência da dívida.
O fundamentalismo do FMI e a crise da dívida permanente
Em 1919, John Maynard Keynes, do Departamento do Tesouro do Reino Unido, publicou um livro que se tornou uma sensação. No livro, intitulado As consequências econômicas da paz, Keynes observou que a Grande Guerra havia “abalado tanto o sistema a ponto de pôr em perigo a própria vida da Europa” (Keynes, 1919/2019, p. 58). O Tratado de Versalhes, que pôs fim à guerra, não compreendeu os problemas subjacentes que haviam levado à guerra e apenas cimentou a vitória de alguns países contra outros. O tratado deixou intactos problemas estruturais como as “finanças desordenadas”, nas palavras de Keynes, de muitos países (não apenas da Alemanha, que enfrentou um enorme e impagável projeto de lei de reparações). O crash de Wall Street de 1929, a crise da libra esterlina de 1931 e o pânico bancário de 1931-1933 revelaram as vulnerabilidades subjacentes do capitalismo, sendo as “finanças desordenadas” o estímulo para o potencial colapso geral do sistema. Em 1936, Keynes publicou The General Theory of Employment, Interest, and Money, um manual para salvar o capitalismo por meio de um apelo teórico para que os governos utilizassem recursos estatais para reciclar lucros e equilibrar um sistema desequilibrado. Keynes, que se dedicava à teoria da eugenia, não aplicava sua visão sobre a intervenção estatal para proteger o sistema nas colônias britânicas e evitar o declínio do nível de vida de sua população.
Quando os Estados Unidos convidaram seus aliados a Bretton Woods (New Hampshire), em julho de 1944, para discutir como administrar as crises estruturais que contribuíram para a Segunda Guerra Mundial, Keynes – que foi uma das figuras principais nessa reunião – disse que seria “a bagunça mais monstruosa montada por muitos anos”, sugerindo que “vinte e um países [que] foram convidados” – apresentando uma lista de países principalmente colonizados, como Guatemala, Libéria, Iraque e Filipinas – “claramente não têm nada a contribuir e apenas irão dificultar os trabalhos”. Em vez disso, Keynes preferia que os dois Estados fundadores da Conferência de Bretton Woods, o Reino Unido e os Estados Unidos, resolvessem “a carta e os principais detalhes do novo órgão sem estarem sujeitos aos atrasos e conselhos confusos de uma conferência internacional”, como explicou alguns anos antes (Fundo Monetário Internacional, 1969/1996, p. 15). De fato, Keynes (em nome do Reino Unido) e Harry Dexter White (em nome dos Estados Unidos) chegaram à reunião com dois planos já elaborados que colocaram sobre a mesa e sobre os quais foram construídos os artigos finais do Acordo para o Fundo Monetário Internacional, bem como o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (ou o Banco Mundial). Os outros participantes eram, em grande parte, espectadores.
Apesar da contribuição limitada da maior parte do mundo, que ainda estava sob o domínio colonial, o objetivo do FMI, conforme estabelecido nos Artigos do Acordo, era simples, nenhum deles foi construído para ampliar o poder do sistema imperial britânico. O principal objetivo dos artigos era auxiliar a “expansão e o crescimento equilibrado do comércio internacional” e “contribuir, assim, para a promoção e manutenção de altos níveis de emprego e renda real e para o desenvolvimento dos recursos produtivos de todos os membros como objetivos primários da política econômica” (Fundo Monetário Internacional, 2020, p. 2). Para estabelecer esses “objetivos primários”, o FMI foi encarregado de evitar que quaisquer problemas de curto prazo se tornassem crises de longo prazo, tais como manter a estabilidade cambial e facilitar os empréstimos para evitar espirais na balança de pagamentos “sem recorrer a medidas destrutivas para a prosperidade nacional ou internacional”. Quando os antigos países coloniais conquistaram sua liberdade, a maioria deles se tornou membro do FMI com base nos Artigos de Acordo e, em 1961, o FMI criou seu Departamento para a África. Até a Terceira Crise da Dívida Mundial que começou a espiralar com a inadimplência do México em 1982, o FMI tinha operado principalmente fornecendo financiamento de curto prazo de forma relativamente modesta por meio do Mecanismo de Financiamento Compensatório (1963) e do Buffer Stock Financing Facility (1969) (Fundo Monetário Internacional, 1999).
Após o fracasso do México, o FMI conduziu o que seu diretor, Michel Camdessus, chamou de “revolução silenciosa” (Boughton, 2000). Contra seu objetivo manifesto, o FMI começou a responder aos pedidos de empréstimos de curto prazo [bridge financing] exigindo que os países mudassem radicalmente suas políticas econômicas internas como condição para aprovação. Por meio de seus novos programas, o Instrumento de Ajuste Estrutural (1986), e depois o Instrumento de Ajuste Estrutural Melhorado (1987), o FMI colocou uma receita singular na mesa: privatizar a economia, incluindo serviços oferecidos pelos Estado por meio da mercantilização de áreas da vida humana que até aquele momento eram de domínio público; acabar com qualquer financiamento governamental deficitário; e dissolver quaisquer barreiras ao investimento e comércio de capital estrangeiro (tais como subsídios e tarifas). O FMI havia experimentado essas medidas na Bolívia, Chile e Peru nos anos 1950 com sucesso limitado antes de transformá-las na base de sua política não para todos os países, mas especificamente para serem usadas contra os Estados da África, Ásia e América Latina, que lutavam contra um sistema econômico internacional moldado pelo colonialismo e pelo capitalismo. Esses foram os países que haviam defendido a formação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em 1964, para avançar suas próprias propostas de saída da ordem mundial neocolonial, propostas que foram aprovadas pela Assembleia Geral da ONU, em 1974, como a Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). A nova política do FMI surgiu em disputa contra a possibilidade de uma NOEI, pois em vez de permitir um melhor negócio para os preços das matérias-primas ou para acordos de subsídios tarifários, exigiu a retirada de todos esses esquemas anticoloniais. Até mesmo Raghuram Rajan, o economista-chefe do FMI de 2003 a 2007, escreveu em seu livro Fault Lines (2010) que as políticas do FMI apareceram como uma “nova forma de colonialismo financeiro” (Rajan, 2010, p. 93).
A “revolução silenciosa” do FMI intensificou a crise enfrentada pelas nações mais pobres, levando-as a um espiral de endividamento e pobreza. A fórmula geral para esse espiral é a seguinte:
- Os países contraem dívidas de curto prazo na balança de pagamentos por causa de sua falta de capital – boa parte dele roubado durante o período colonial – e sua dependência de empréstimos para realizar (muitas vezes) caras melhorias de capital em seus países (alguns ods quais estão no setor de extração de matéria-prima, operando assim como um subsídio para empresas de mineração estrangeiras).
- O FMI chega e informa aos ministérios das Finanças que os gastos do governo com educação, saúde e outros projetos de desenvolvimento social devem ser cortados a fim de priorizar os pagamentos aos ricos portadores de obrigações (no Clube de Londres) e aos governos – principalmente os antigos Estados coloniais – (no Clube de Paris) que lhes emprestaram dinheiro.
- Para pagar o serviço da dívida desses empréstimos, as nações mais pobres cortaram seus gastos governamentais, empobrecendo assim ainda mais seu povo, e exportaram mais de suas matérias-primas baratas (em vez de produtos acabados mais lucrativos). Quando os países começam a exportar cada vez mais commodities primárias, isso produz uma guerra de preços que leva a uma queda acentuada nas receitas obtidas com o volume das exportações.
- Com o enfraquecimento das receitas de importação, as nações mais pobres devem continuar a cortar seus gastos sociais, aumentar suas vendas de matérias-primas e bens públicos, e tomar mais dinheiro emprestado de fontes externas privadas e governamentais… apenas para pagar os juros de sua dívida crescente.
- O imperativo da “estabilidade cambial” impede que os governos das nações mais pobres exerçam qualquer política monetária eficaz – incluindo a implementação de controles de capital – enquanto sua política fiscal já está eviscerada por demandas orçamentárias de equilíbrio do FMI, cortes nos gastos sociais e pressões dos detentores de títulos ricos para “reformar” (ou seja, submeter) sua política fiscal.
Em 2016, os membros seniores do departamento de pesquisa do FMI publicaram um artigo chamado “Neoliberalismo”: supervalorizado?”, que argumentou que o “ciclo de feedback adverso” desencadeado pela austeridade, seguido pelo aumento da desigualdade e depois ainda mais austeridade, teve que ser quebrado por uma abordagem menos rígida, menos fundamentalista, da “liberalização” e do neoliberalismo (Ostry et al, 2016). Houve até mesmo uma sugestão de “maior aceitação dos controles [de capital] para lidar com a volatilidade dos fluxos de capital”. Embora tenha havido uma diminuição das condições que o FMI exige para conceder empréstimos ao longo da década antes da publicação deste documento, não há evidência de qualquer mudança qualitativa na política do FMI (Kentikelenis et al, 2016, p. 543-582).
A Guiné, por exemplo – um país que tem pelo menos um terço da bauxita do mundo – entrou na montanha-russa do FMI em 2011 e imediatamente ficou presa no ciclo da dívida-austeridade (Nabé; Yansané, 2011). Em 2014, o governo guineense de Alpha Condé escreveu ao FMI que a “política fiscal e monetária rigorosa” havia levado a uma “redução dos gastos, inclusive em investimentos internos”, o que impossibilitou a Guiné de “respeitar as metas indicativas de gastos em setores prioritários” (Diaré; Nabé, 2014, p. 5). Em outras palavras, a Guiné contraiu empréstimos para tentar sair de uma crise, mas o próprio empréstimo levou a cortes nos gastos sociais e aprofundou sua crise. Em 2019-2020, o país passou por um ciclo de protestos desencadeado tanto pela tentativa de Condé de mudar a Constituição quanto pelo agravamento da situação econômica. Um relatório da Unicef constatou que, em 2019, vinte e cinco países muito pobres gastaram mais no pagamento da dívida do que em educação, saúde e proteção social juntos. Dezesseis desses países estão no continente africano (Unicef, 2021).
Nos primeiros meses da pandemia em 2020, o FMI se ofereceu para abrir novas janelas para empréstimos que, segundo eles, viriam sem condicionalidades (Georgieva, 2020). A Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida do G20 e outras ofertas para pausar o pagamento da dívida sugeriram que as nações mais pobres receberiam assistência para evitar o colapso econômico total e para obter acesso a vacinas. Entretanto, a Oxfam descobriu que treze dos quinze programas de empréstimo do FMI durante o segundo ano da pandemia (2021) exigiam “novas medidas de austeridade, tais como impostos sobre alimentos e combustíveis ou cortes de gastos que poderiam colocar em risco serviços públicos vitais” (Oxfam, 2022). O Compromisso de Redução do Índice de Desigualdade revela que quatorze dos dezesseis países da África Ocidental planejaram cortar seus orçamentos em um total de 26,8 bilhões de dólares em 2021 para conter crises de hemorragia da dívida nacional e que estas políticas foram incentivadas pelos empréstimos do FMI no contexto da pandemia de Covid-19 (Martin et al, 2021, p. 4, 19).
A evidência é clara: o FMI não apenas engendra crises de dívida impulsionadas pela austeridade, mas suas políticas são projetadas para garantir e administrar uma crise de dívida permanente, não para apagar a dívida.
A crise da dívida soberana da África
Em 2009, a economista zambiana, Dambisa Moyo publicou o best seller instantâneo Dead Aid. O principal argumento de Moyo era que havia pouco a mostrar para as centenas de bilhões de dólares em ajuda externa que haviam sido dados ao continente africano desde 1970. Em vez de estimular o desenvolvimento, ela afirmava, a ajuda havia financiado a corrupção em grande escala e as guerras civis, o que, por sua vez, impediu o crescimento econômico no continente. A posição de Moyo contra a ajuda não era nova. Os argumentos de seu livro foram inspirados pelo economista conservador britânico, nascido na Hungria, Peter Bauer, a quem Moyo dedicou seu livro. Bauer fez uma carreira destacando que foi a ajuda estrangeira – não o colonialismo ou neocolonialismo – o que arquitetou o subdesenvolvimento da África (Bauer, 1973, p. 154-157).
O que havia de novo em Dead Aid era a prescrição de Moyo. Em um capítulo intitulado “Uma solução capital”, Moyo apelou para a substituição da ajuda pela dívida do mercado privado. Ou seja, ela fazia um chamado aos países ocidentais para que reduzissem significativamente sua ajuda à África e, ao mesmo tempo, fazia uma chamado aos governos africanos para que compensassem o déficit contraindo empréstimos de credores privados e detentores de obrigações, tais como fundos de hedge, bancos etc. Para Moyo, essa foi uma solução elegante para o problema da corrupção, que historicamente havia atormentado o complexo industrial de ajuda externa. O dinheiro proveniente dos mercados privados da dívida provavelmente não alimentaria a corrupção na África porque, argumentava Moyo, os credores privados eram suficientemente sofisticados para não investir em países com probabilidade de se envolverem em corrupção. Afinal, a corrupção atuou como um entrave ao crescimento econômico que, por sua vez, ameaçou as perspectivas de pagamento da dívida. Por outro lado, para ter acesso ao tão necessário crédito privado, os governos africanos precisariam demonstrar aos credores privados que estavam comprometidos com o combate à corrupção e com o investimento das receitas em atividades que promovessem o crescimento. A solução política da Moyo era, portanto, uma suposta vantagem para todos os envolvidos.
A “solução capital” de Moyo forneceu a cobertura intelectual para a financeirização dos fluxos de capital para a África por meio da emissão dos chamados Eurobonds (ou seja, títulos emitidos em dólares e euros), cuja ascensão meteórica envolveria o continente em uma nova crise de dívida até 2020. A primeira emissão de um Eurobond por Gana em 2007 foi um ponto de inflexão para o continente. O bônus de estreia do país de 750 milhões de dólares foi emitido com muito alarde e foi muito procurado por investidores financeiros em Nova Iorque e Londres (Reuters, 2007). Em uma busca para satisfazer os apetites dos investidores, Gana emitiu dois Eurobonds adicionais, totalizando 2 bilhões de dólares, em 2013 e 2014. Outros países da África logo seguiram o exemplo (Mensah, 2014). Em 2011, a Zâmbia obteve sua primeira classificação de crédito soberano (uma espécie de pontuação de crédito) da agência de classificação Fitch. Pouco depois, o país emitiu dois Eurobonds em rápida sucessão, em 2012 e 2014, um cenário que aumentou a dívida externa da Zâmbia em incríveis 300% em três anos (Chelwa, 2015, 2020). O Quênia também entrou na onda, emitindo três Eurobonds entre 2014 e 2019 que totalizaram cerca de 5,5 bilhões de dólares (Wafula, 2021).
A emissão de Eurobonds no continente cresceu a um ritmo intenso na segunda década do século 21: em 2020, vinte e um países africanos haviam emitido Eurobonds (vários, em muitos casos). De acordo com o manual de Estatísticas da Dívida Internacional do Banco Mundial, o estoque da dívida do Eurobond para a África Subsaariana cresceu de cerca de 32 bilhões de dólares em 2010 para 135 bilhões de dólares em 2020, uma taxa de aumento de 322% (Banco Mundial, 2022). Em outras palavras, o estoque da dívida do Eurobond tinha mais do que triplicado em apenas dez anos.
A taxa de aumento do estoque da dívida em Eurobond entre 2010 e 2020 superou de longe outras fontes de dívida em moeda estrangeira na África. Por exemplo, a dívida multilateral do Banco Mundial, FMI, Banco Africano de Desenvolvimento e outras instituições aumentou cerca de 144% durante o mesmo período, uma taxa que é menos da metade do aumento da dívida em Eurobond. Da mesma forma, a dívida bilateral dos governos de países como China, França, EUA e Reino Unido para com os governos da África também aumentou a uma taxa de 145%, que também foi inferior à metade da taxa de aumento da dívida em Eurobond (Banco Mundial, 2022).
Esse último ponto sobre a dívida bilateral merece destaque, dado o argumento sobre a “diplomacia da armadilha da dívida” que se tornou comum com relação à dívida da China. O argumento alega que a China está usando a dívida para aprisionar a África em um ciclo perpétuo de endividamento e servidão. No entanto, os fatos apresentam um quadro diferente. Embora o manual de Estatísticas da Dívida Internacional do Banco Mundial não forneça uma repartição por país da dívida bilateral para a África que nos permita isolar o componente chinês, ele mostra que, em 2020, a dívida externa total da África em relação aos credores bilaterais (isto é, países) era de 115 bilhões de dólares, em comparação com a dívida de Eurobond de 135 bilhões. Além disso, o valor da dívida bilateral fornecido pelo Banco Mundial é para todos os credores bilaterais, implicando que a dívida do Eurobond ultrapassou toda a dívida dos credores bilaterais, o que inclui a China. Uma análise cuidadosa feita pela organização Debt Justice mostra que a dívida africana com a China era de 83 bilhões de dólares em 2020, um número menor do que os 135 bilhões devidos aos detentores privados de obrigações (Debt Justice, 2022). Números sobre empréstimos chineses e a dívida da África produzidos por pesquisadores que trabalham na China Africa Research Initiative (CARI) na Universidade Johns Hopkins, Estados Unidos, são frequentemente citados em apoio ao argumento da diplomacia da armadilha da dívida (apesar de seus próprios pesquisadores terem publicado artigos desmascarando a narrativa da armadilha da dívida chinesa) (Brautigam; Rithmire, 2021). Entretanto, elas não são muito úteis nesse caso particular porque, segundo a própria CARI, seu banco de dados “não rastreia os desembolsos [da dívida] e os reembolsos” (China Africa Research Initiative, 2023). Em outras palavras, a CARI apenas informa sobre anúncios de contração de empréstimo em jornais, mas não rastreia se o empréstimo contratado saiu da China e, se saiu, se o governo beneficiário na África posteriormente o pagou ou pagou porções dele. Portanto, os números do CARI podem estar deturpados, exagerando em muito o verdadeiro montante da dívida chinesa para com a África.
Isso mostra que a atual crise da dívida soberana que atualmente atravessa o continente africano é, em grande parte, a criação de credores privados por meio da loucura do Eurobond que possuiu e tomou conta do continente na segunda década do século 21, ajudada pelas justificações intelectuais de Dambisa Moyo e outros. Os Eurobonds não resolveram o problema da corrupção que se dizia endêmica com a ajuda estrangeira, como Moyo argumentou que fariam. Por exemplo, diz-se que centenas de milhões de dólares da primeira emissão de Eurobond do Quênia “desapareceram”. Na Zâmbia, foram levantadas questões sobre para onde foi o dinheiro do Eurobond (Mutai, 2018). Em Moçambique, os empréstimos e títulos foram retirados ilegalmente e utilizados indevidamente por empresas estatais (conhecido como o escândalo do Tuna Bond). Como esses casos ilustram, os banqueiros e credores privados ocidentais facilitaram esse tipo de roubo (Spotlight on Corruption, 2022; Kuo, 2016).
Finalmente, a análise das fontes da dívida na África lança dúvidas sobre as atuais iniciativas multilaterais destinadas a resolver a crise da dívida soberana da África. Um exemplo é a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI, na sigla em inglês), lançada pelo G20 em maio de 2020, logo após a pandemia de Covid-19 ter começado a enviar ondas de choque em todo o mundo, para encorajar os credores bilaterais e multilaterais a suspender o pagamento de juros sobre a dívida das nações mais pobres, incluindo as da África, por um ano. A DSSI dificilmente teve sucesso, pois muitos credores – com exceção de alguns, como a China – recusaram-se a suspender o pagamento de juros (García-Herrero et al, 2021). Além disso, muitos analistas observaram que a DSSI não era adequada para o propósito, já que se aplicava apenas à dívida oficial (multilateral e bilateral), enquanto a crise da dívida soberana foi em grande parte alimentada por uma crise de títulos privados, como mostrado acima.
Conforme a DSSI expirou em junho de 2021 e a crise da dívida soberana piorou, o G20 lançou o Quadro Comum para o Tratamento da Dívida, que se tornaria o mecanismo-guia para a reestruturação da dívida após os anos iniciais da pandemia (Ministério de Economia e Finanças do Governo da Itália, 2023). Infelizmente, esse mecanismo possui muitos dos mesmos problemas que afligiram a DSSI. Primeiro, a Estrutura Comum só tem mecanismos para tratar de crédito oficial. Mas, como a análise acima mostra, uma parte substancial (e de longe a maior fonte) da dívida soberana da África é devida a detentores de títulos e credores privados. Sua ausência restringe em grande parte as discussões sobre a reestruturação da dívida à esfera teórica, com pouco valor prático. Em segundo lugar, o Quadro Comum lança as bases para um comitê credor oficial, que no caso da Zâmbia é co-presidido pela França e pela China. A França é vista como representante do antigo Clube de Paris, um conjunto de países credores que juntos compõem uma parte considerável do crédito oficial concedido à Zâmbia. A China é uma co-presidente, dado seu surgimento como uma importante fonte de crédito para a África em geral e para a Zâmbia em particular. Entretanto, a estrutura e a governança do comitê de credores da Zâmbia com os dois co-presidentes deixou o país vulnerável a manobras geopolíticas e, no processo, paralisou em grande parte as perspectivas de uma verdadeira reestruturação da dívida a qualquer momento.
Uma solução permanente para a crise da dívida
Os 54 Estados africanos soberanos são muito diferentes uns dos outros, com línguas, histórias, desafios sociais e econômicos e possibilidades distintos. No entanto, eles estão unidos por um projeto político que foi institucionalizado por meio da União Africana e suas estruturas legais e organizacionais e por uma crise de dívida soberana neocolonial.
A seção final deste dossiê é dividida em duas partes. A primeira é uma declaração feita pelo Coletivo de Economistas Políticos Africanos, que está na raiz da análise apresentada neste dossiê. A segunda elabora a parte financeira de Um Plano para Salvar o Planeta, um documento elaborado por 26 institutos de pesquisa de todo o mundo (Alba-TCP, Tricontinental, 2021). Essas alternativas são provisórias e requerem muito mais elaboração teórica e prática, que é precisamente a tarefa do Coletivo de Economistas Políticos Africanos.
O FMI nunca é a resposta:
Uma declaração do Coletivo de Economistas Políticos Africanos
Muitos países do Sul Global, particularmente aqueles da África, estão atualmente em crise fiscal – em grande parte resultado de uma tempestade perfeita de eventos globais. A pandemia Covid-19 desencadeou uma recessão econômica global que, por sua vez, impactou as economias nacionais. A guerra em curso na Ucrânia perturbou as cadeias vitais de abastecimento global de alimentos, fertilizantes e energia, aumentando assim as contas de importação de muitos países e sobrecarregando seus orçamentos. A crise fiscal é fundamentalmente resultado de uma acumulação insustentável da dívida soberana na última década, alimentada pelo crédito barato das economias ocidentais e encorajada pelas instituições financeiras internacionais, incluindo o FMI. A pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia pioraram o que já era uma situação tênue.
Muitos países pobres estão se voltando para o FMI como uma fonte confiável de financiamento no momento atual, em grande parte motivados por afirmações de que o Fundo foi reformado de suas velhos e maus hábistos e não exige mais a austeridade como uma condicionalidade (Fundo Monetário Internacional, 2021). Em 2016, os economistas do FMI publicaram um mea culpa no qual eles (mais ou menos) confessaram os pecados do passado e prometeram que tinham virado uma nova página (Chelwa, 2016). As evidências, no entanto, sugerem tudo menos um FMI reformado. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho que acompanhou cuidadosamente a condicionalidade do FMI em 2020, quando muitos países estavam lidando com os encargos financeiros e de saúde relacionados à pandemia de Covid-19, constatou que na maioria dos 148 países examinados, o FMI ainda exigia austeridade como condição para conceder assistência (Razavi et al, 2021).
O governo da Zâmbia, o primeiro país a inadimplir sua dívida como resultado da pandemia, concluiu recentemente um acordo de financiamento com o FMI com a condição de assinatura de “uma consolidação fiscal ampla, antecipada e sustentada”, nas palavras do FMI – em outras palavras, austeridade em preto e branco (Fundo Monetário Internacional, 2022d). O FMI quer que o governo zambiano reduza seus gastos em bilhões de dólares nos próximos três anos, o que será sentido com mais intensidade pela maioria pobre (Chelwa, 2022). O governo do Sri Lanka, um país cujo boom alimentado por contração de dívidas chegou a uma pausa espetacular no início deste ano, também está buscando assistência do FMI, com indicações precoces mostrando que as condições associadas ao acordo serão tão indefensáveis quanto o acordo zambiano (Doyle, 2022). O governo ganense também está procurando desesperadamente outro acordo com o FMI, este depois que o último foi celebrado como o acordo que “restauraria o brilho a uma estrela em ascensão na África” (Africanews, 2023; Fundo Monetário Internacional, 2019).
Tudo isso mostra que o FMI não pode ser a resposta para os desafios econômicos das nações mais pobres. Ao lado de suas instituições-irmãs, o FMI tem fornecido “assistência” aos países pobres desde sua criação, em 1944, e, no entanto, muitos desses países têm permanecido pobres apesar disso. A razão é que a assistência do FMI nunca enfrentou os fatores estruturais que continuaram a subjugar muitos países às fileiras dos pobres. Como foi diagnosticado há muitos anos por acadêmicos como Walter Rodney e Andre Gunder Frank, o desenvolvimento no Norte é sustentado pelo subdesenvolvimento no Sul (Gunder Frank, 1966; Rodney, 2018). Visto dessa forma, o FMI, como instituição arquetípica do Norte, tem o dever de manter e consolidar este status quo. De que outra forma se explica a solução do FMI para os males financeiros da Zâmbia, por exemplo? A receita do FMI ignora o fato de que as minas de cobre de propriedade estrangeira do país continuam a gerar bilhões para seus acionistas no exterior, mas pagam tão pouco em impostos em um país em que o imposto anual estimado só para um projeto de mineração poderia ter atingido quase a metade do orçamento federal de abastecimento de água e saneamento de 2020 (Nulé; Nsenduluka, 2021).
Um novo tipo de aparato institucional que promova a cooperação, e não a concorrência, é necessário para a liberação econômica da África e do Terceiro Mundo de modo mais geral. Isso significaria, por exemplo, estabelecer arranjos monetários que contornem o dólar estadunidense, que é uma forte alavanca da condicionalidade do FMI e uma arma da política externa dos EUA. Esse tipo de propostas há muito aguardadas já estão em andamento em partes do mundo, como na América Latina, onde o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente argentino Alberto Fernández propuseram o estabelecimento de uma moeda regional, a sur, que poderia ser usada para liquidar reclamações transfronteiriças e armazenar reservas. O árduo trabalho de descobrir os detalhes técnicos relacionados com a implementação de tais moedas regionais deve começar com seriedade (Salfiti, 2023). A África, por exemplo, precisa de um banco continental que seja totalmente de propriedade do povo e que sirva como uma ferramenta genuína para reforçar as políticas industriais soberanas. O altamente influente Banco Africano de Desenvolvimento, com sua significativa participação ocidental, não é adequado ao propósito (African Development Bank, 2023).
Além disso, há uma necessidade urgente de restaurar e revigorar a capacidade e a autonomia do Estado africano para cumprir com sua agenda de desenvolvimento. A capacidade e a autonomia do Estado dependem da capacidade de mobilizar adequadamente as receitas fiscais, uma área em que o Estado africano tem continuado a ter um desempenho abaixo do esperado. A relação imposto/PIB, uma medida de mobilização de recursos, permaneceu incrivelmente baixa na África, em grande parte como resultado de fluxos financeiros ilícitos que continuam a afastar bilhões de dólares do continente a cada ano (ATAF et al, 2022, p. 3). Como consequência, a prestação adequada do tipo de serviços sociais que sustentam a dignidade das pessoas (seguridade social, saúde, educação, etc.) continua a ser sufocada (Ortiz et al, 2019). Além disso, a baixa arrecadação de impostos nas nações mais pobres força muitos governos a buscarem a saída mais fácil, contraindo empréstimos nos mercados internacionais de capitais, pondo em marcha uma perigosa dinâmica de endividamento que, em última instância, leva os governos de volta aos braços pouco amorosos do FMI. Notavelmente, a condicionalidade do FMI raramente enfrenta o fato de que a capacidade e a autonomia do Estado tenham sido corroídas na África em grande parte como resultado das práticas de evasão fiscal das empresas transnacionais.
Igualmente problemático é o papel de liderança que o FMI e suas instituições aliadas assumiram na luta para salvar o planeta das mudanças climáticas. A resposta do FMI à mudança climática, que é influente dado seu papel desordenado no mundo, aponta o setor capitalista privado como a solução para os problemas do planeta (Africanews, 2022). Tudo isso é irônico, dado que o apetite insaciável do setor capitalista privado por lucros a todo custo tem sido responsável pela crise climática.
O Terceiro Mundo deve re-imaginar um caminho para sair de nossa crise atual que não dependa do FMI, de suas instituições aliadas e do capital ocidental. Os últimos setenta anos ou mais demonstraram que a dependência dessas instituições só serve para aprisionar o Terceiro Mundo em um estado perpétuo de subdesenvolvimento. Precisamos de um conjunto emancipatório de instituições e estruturas que levem à independência total do Terceiro Mundo.
Essa é uma tarefa que o Coletivo de Economistas Políticos Africanos (Cape, na sigla em inglês) decidiu assumir de forma séria. O Cape é um novo grupo de africanos vindos de diferentes estratos sociais que estão comprometidos com a emancipação econômica e, portanto, total, do continente africano e do Terceiro Mundo de forma mais ampla. O Cape espera reconquistar a bolsa de estudos e a política emancipatória de uma geração anterior de intelectuais que surgiu do movimento pós-independência nos anos 1960 e reformulá-la para responder às necessidades do mundo atual. As lições dessa geração e a infraestrutura institucional que ela construiu foram esquecidas em grande parte como resultado dos programas de ajuste estrutural (PAE) inspirados pelo FMI e pelo Banco Mundial, que começaram nos anos 1980. Os PAE são responsáveis pela destruição generalizada, incluindo a evisceração de comunidades acadêmicas progressistas na África e em grande parte do Terceiro Mundo. É precisamente essas comunidades que o Cape espera dar vida para reconstruir um presente e um futuro, que centralizam as necessidades e aspirações da maioria.
Áurea Mouzinho
Peter Magati
Cristal Simeoni
Hibist Kassa
Brian Kamanzi
Ndongo Samba Sylla
Grieve Chelwa
Ihsaan Bassier
Construindo alternativas financeiras para uma África e um Terceiro Mundo soberanos
Ao longo das últimas duas décadas, o estrangulamento dos detentores de títulos ocidentais e das IFIs controladas pelo Ocidente enfraqueceu à medida que outros países – principalmente a China – surgiram como os maiores parceiros comerciais dos Estados africanos e como os maiores emprestadores para esses Estados. É importante notar que o perdão da dívida pública e privada da China durante a pandemia pressionou as IFIs a repensar a dureza de seu modelo de governança do pagamento da dívida-austeridade.
A abertura proporcionada pelo financiamento chinês não é meramente uma oportunidade de pedir mais empréstimos: é uma oportunidade para os Estados africanos construírem projetos de desenvolvimento genuínos e soberanos nesse contexto. Esses projetos devem aproveitar múltiplas oportunidades para levantar fundos, e a fragilidade do poder do FMI também deve ser utilizada para fazer avançar as políticas fiscais e monetárias que são construídas sobre uma agenda comprometida com a solução dos problemas do povo africano, não facilitando as demandas dos ricos portadores de obrigações e dos Estados ocidentais que os apoiam. Diversos mecanismos estão em debate para evitar a armadilha do endividamento induzida pelo FMI. Alguns deles, ampliados a partir do Plano para Salvar o Planeta, estão listados abaixo.
Invalidar dívidas históricas e resgatar bens roubados:
- Renegociar todas as dívidas externas odiosas das nações mais pobres. Uma “dívida odiosa” é uma dívida contraída por um país sem o consentimento de seu povo, tal como durante uma ditadura militar (Kremer; Jayachandran, 2002).
- Apreender bens mantidos em paraísos fiscais ilícitos, que, desde 2010, totalizam pelo menos 32 trilhões de dólares (United Nations Conference on Trade and Development, 2020, p. 88).
Construir códigos fiscais progressivos:
- Desenvolver a capacidade dos departamentos fiscais de cada país, incluindo a infraestrutura fiscal digital.
- Implementar impostos sobre a riqueza e herança.
- Implementar taxas mais altas de tributação da renda, tais como ganhos de capital, que é feita por meio de especulação financeira por todas as entidades corporativas não-bancárias.
- Desestimular as atividades de transferência de lucros das corporações multinacionais e adotar uma abordagem unitária para tributar a participação nos lucros globais gerados pelas subsidiárias das corporações multinacionais.
Reformar a infraestrutura bancária nacional:
- Democratizar o sistema bancário, expandindo o papel e o tamanho dos bancos públicos e implementando mais regulamentações e transparência para os bancos privados.
- Aplicar limites máximos como uma porcentagem do passivo sobre a atividade bancária especulativa dos bancos comerciais.
- Regulamentar as taxas de juros que os bancos cobram por bens específicos, tais como empréstimos habitacionais.
- Implementar regulamentos rigorosos para os fundos de pensão para que a poupança do povo não seja utilizada de forma imprudente para especulação financeira e incentivar a criação de fundos de pensão do setor público.
Construir fontes alternativas de financiamento para as armadilhas de endividamento-austeridade do FMI:
- Estabelecer controles de capital para evitar tanto a fuga de capital estrangeiro quanto doméstico, políticas que até o FMI argumenta serem importantes (Fundo Monetário Internacional, 2022a). Como destacado anteriormente, a fuga de capitais não é apenas prejudicial para os mercados financeiros locais: ela também rouba o continente dos recursos necessários para conduzir uma agenda de desenvolvimento autônomo. Com controles de capital, os governos serão capazes de elaborar políticas monetárias eficazes em um ambiente que não seria fustigado por choques e fragilidades inesperadas. Os controles de capital devem ser implementados juntamente com um sistema robusto de coleta de impostos sobre a riqueza, políticas de distribuição pró-trabalho e a prevenção da dolarização.
- Atrair investimentos de instituições que não impõem condições de ajuste estrutural, tais como a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) e o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS. A ausência de condições semelhantes às do SAP nessas fontes emergentes e alternativas de capital explica sua crescente popularidade no Sul e na África, em especial.
- Aproveite os acordos de swap do banco central em moeda local (como os oferecidos pelo Banco Popular da China).
- Adotar tetos nas taxas de juros que os credores comerciais e multilaterais cobram dos países em desenvolvimento.
Aprimorar o regionalismo:
- Incentivar a criação de mecanismos regionais de comércio e reconciliação.
Notas
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