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DossiêNº 81

O século XX, o Sul Global e a posição histórica da China

O estudioso chinês Wang Hui relembra o século XX, que nasceu de múltiplas revoluções nas áreas periféricas do mundo, incluindo a China.

Prefácio

Wang Hui (nascido em 1959) é professor de língua e literatura chinesas na Universidade de Tsinghua e diretor do Instituto Tsinghua para Estudos Avançados em Ciências Humanas e Sociais. Ele é autor de vários livros importantes, incluindo o estudo em quatro volumes A ascensão do pensamento chinês moderno (现代中国思想的兴起), publicado em 2004, cujos dois primeiros estão agora disponíveis em inglês na Harvard University Press. Em uma extensa análise, Zhang Yongle, que leciona na Faculdade de Direito da Universidade de Beijing, escreveu que “nada comparável ao trabalho de Wang Hui foi publicado na China desde o final do período Qing e início do período republicano” (na virada do século XX) (Yongle, 2010).

O primeiro trabalho de Wang Hui foi sobre Lu Xun (1881-1936), geralmente considerado o fundador da literatura chinesa moderna, detectou nele um personagem simpático que queria se aprofundar no pensamento e na cultura chinesas, mas que compreendia suas limitações em um mundo em que o progresso tecnológico havia acelerado o relógio. Dois pontos emergem daí: primeiro, a gravidade do colonialismo europeu forçou os países de fora da Europa a se medirem em relação a seu padrão — uma medição que pretendia deixá-los devendo —; segundo, o desenvolvimento humano não é linear, nem mesmo na Europa, tampouco tem base territorial, o que significa que os países e as culturas aprendem uns com os outros e enriquecem os recursos culturais uns dos outros. A oposição binária ocidental entre tradição e modernidade oculta, por um lado, o imenso peso do velho mundo sobre o novo e, por outro, a influência mútua entre a Europa e o resto do mundo. Essa orientação para o passado permitiu que Wang Hui aceitasse o fato de que houve rupturas revolucionárias no século XX, a partir da Revolução Russa de 1905, mas que elas mantiveram uma continuidade com o passado e se inspiraram nele de maneira produtiva e improdutiva. A cuidadosa reconstrução teórica do passado oferece muito mais do que interesse de antiquário: ela revela a maneira como países, tais como a China, se desenvolvem por meio de sua complexa relação com a imensidão de sua ruptura com o passado (as Revoluções Chinesas de 1911 e 1949) e as raízes dessas rupturas, tanto com uma história anterior a elas quanto com áreas do mundo (como a União Soviética) que as influenciaram. Essa atitude enriquecida em relação ao mundo cultural da China permitiu que Wang Hui produzisse um conjunto de obras extremamente importantes sobre o pensamento chinês.

Talvez não seja surpreendente, nesse contexto, que a China não tenha sido um marco referencial do trabalho acadêmico desde os tempos coloniais. A China, no modo de pensamento colonial, era comparada com o Ocidente ou avaliada com base em conceitos e categorias ocidentais e sempre era vista como insuficiente ou inferior. Mais uma vez, os binarismos de avançado versus atrasado impedem o pensamento intelectual sério. A Europa não é avançada, nem a China é atrasada, e essas duas regiões não estão imunes à influência mútua. No entanto, a arrogância do modo de pensar colonial continua conosco. Não só há uma falta geral de conhecimento do pensamento chinês (embora isso esteja mudando agora), como também tem existido pouca interação nas universidades do mundo com debates e discussões intelectuais chinesas. É exatamente por isso que o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social fez uma parceria com a importante revista chinesa Wenhua Zongheng (文化纵横) para produzir uma edição internacional, na qual Wang Hui faz parte do conselho editorial.

De maio de 1996 a julho de 2007, Wang Hui foi o editor da influente revista chinesa Dushu (读书, ou Leitura). A primeira edição dessa revista, em 1979, trazia um ensaio de Li Honglin intitulado “No Forbidden Zone in Reading” [Nenhuma zona proibida de leitura], que pedia um “movimento para libertar o pensamento”. Antes e depois de seu período em Dushu, Wang Hui escreveu uma série de ensaios importantes sobre a necessidade de revitalizar a política na China. “A democracia ocidental baseada em eleições gerais não é o único modelo de democracia”, escreveu ele, “nem a democracia é uma prática meramente formal. A democracia deve se basear no dinamismo político. Quando esse impulso é perdido, nenhuma forma de democracia pode sobreviver” (Hui, 2016). Esse dinamismo, argumentou Wang Hui em vários ensaios, tinha de vir da linha de massa, que Mao Zedong havia descrito como “das massas para as massas”.

Em abril de 2020, Wang Hui publicou um artigo fascinante em Wenhua Zongheng intitulado “A personalidade revolucionária e a filosofia da vitória: Comemorando o 150º aniversário de Lenin (汪晖, 《革命者人格与胜利的哲学–纪念列宁诞辰150周年). Nesse ensaio, Wang Hui refletiu sobre o surgimento de um novo dinamismo e revitalização política no governo chinês e no Partido Comunista da China, especialmente em relação à resposta à pandemia de Covid-19: a linha de massas, o otimismo revolucionário e a importância de um partido com um líder que tenha uma personalidade revolucionária. Mas essa é uma combinação frágil, com qualquer elemento passível de mudança, que exige vigilância intelectual. Foi exatamente isso que Wang Hui fez nos importantes ensaios e livros que publicou nos últimos trinta anos e neste dossiê. Temos o orgulho de apresentar o ensaio de Wang Hui em nosso dossiê de outubro, outubro da Revolução Russa e 2024 do centenário da morte de Lenin.


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Introdução

O século XX já passou. Como entendemos o legado histórico da China do século XX e sua posição na história mundial? O preâmbulo da Constituição da República Popular da China (1949/2024) afirma: “No século XX, ocorreram importantes mudanças históricas na China”. As guerras do imperialismo e a Guerra Fria moldaram profundamente o país, mas as revoluções desencadeadas pela guerra e pelas crises sociais, especialmente a fundação da República Popular da China como parte dessas revoluções, tiveram um impacto indelével sobre as mudanças subsequentes na China e no mundo: não apenas a independência nacional e a industrialização foram concluídas durante as revoluções e os processos de construção, mas também as relações sociais, humano-naturais, geopolíticas e outras passaram por transformações sem precedentes. Dificilmente há uma área que não tenha passado por mudanças profundas, desde as línguas orais e escritas até os sistemas políticos, passando pelas organizações sociais, trabalho, gênero, modas culturais, vida cotidiana, relações urbano-rurais, relações regionais, crenças religiosas e ética social. O “breve século XX” foi moldado por um processo amplo, complexo, profundo e intenso, com densidade, profundidade e amplitude sem precedentes.1 Atualmente, é difícil para as pessoas imaginarem uma vida diferente daquela que foi transformada pelo século XX. Sem as explorações, as inovações e os fracassos das revoluções, é impossível compreender a importância desse período.

O nascimento do século marca o surgimento da simultaneidade global na história chinesa e as lutas e explorações para transformar o desequilíbrio interno das relações simultâneas. Somente a partir das perspectivas duplas do contexto histórico chinês e das agitações históricas no mundo é que podemos compreender a posição da China do século XX.


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Primeira parte: o nascimento do século

Na virada dos séculos XIX e XX, tendo como pano de fundo mudanças significativas, várias forças formaram suas próprias avaliações da “propensão dos tempos” (时势), levando a visões concorrentes sobre o próprio conceito de tempo. Por exemplo, o pensador político e reformador Kang Youwei propôs o “Calendário Confucionista” no Prefácio às Notas sobre o Capítulo Liyun do Livro dos Ritos (《禮運注》叙, publicado em 1901, mas escrito em 1884, de acordo com seu próprio registro), enquanto o filósofo Liu Shipei apresentou o “Calendário do Imperador Amarelo” em 1903. Essas perspectivas sobre o tempo muitas vezes se opunham umas às outras, mas compartilhavam uma nova consciência de progresso em relação à unificação da história e da linha do tempo histórica.

À meia-noite de 30 de janeiro de 1900 — o Ano de Gengzi2 e também o 26º ano do reinado do Imperador Guangxu da Dinastia Qing —, Liang Qichao, um reformista, acadêmico e jornalista chinês que vivia no exílio no Havaí, ficou comovido com o desenrolar dos acontecimentos e escreveu Uma canção para o Oceano Pacífico no século XX  (《二十世紀太平洋歌》), no qual refletiu: “De repente, eu me pergunto que noite é esta e que lugar é este, percebendo que é a fronteira entre dois séculos e o centro dos hemisférios oriental e ocidental”. Liang Qichao reuniu dois novos conceitos importantes: um representando o tempo — o século XX — e o outro representando o espaço — o Oceano Pacífico. Essa nova perspectiva espaço-temporal, muito diferente das expressões anteriores, tornou-se mais difundida posteriormente, fornecendo uma nova estrutura para a exploração da posição histórica da China no século XX. Vamos primeiro examinar o conceito de tempo. O calendário gregoriano foi estabelecido em 1582, inicialmente usado pelos territórios católicos ultramarinos da Espanha e depois adotado pela Grã-Bretanha em 1752, pelo Japão em 1873, pela China em 1912 e pela Rússia em 1918. Para Liang Qichao, um século não era apenas um método de contagem de anos, mas também uma forma de entender e definir a propensão histórica da época, de julgar as condições para a ação. Todos os entendimentos do passado, do presente e do futuro foram recombinados nessa intensa mudança de consciência histórica. Embora o conceito do século XX tenha surgido no contexto do envolvimento com narrativas confucionistas como a “Teoria das Três Idades de Gongyang”,3 foi mais um produto do fato de que essas narrativas tradicionais não conseguiram lidar com a natureza das profundas mudanças da época.

A universalização do conceito de “século” é resultado da nova propensão dos tempos. De uma perspectiva espacial, a era do Pacífico está intimamente relacionada à ascensão dos Estados Unidos desde o final do século XIX. O centro capitalista global começou a se deslocar do Atlântico para o Pacífico: nesse vasto espaço, além dos antigos impérios do século XIX, surgiram duas novas entidades político-econômicas, ou, nas palavras do político Yang Du, “nações de guerra econômica”, a saber, os Estados Unidos e o Japão, que mudaram drasticamente a situação mundial. A China do século XX e seu destino estavam intimamente ligados a essa transformação. Liang Qichao já havia começado a usar o termo “imperialismo nacional” em seus longos poemas e, em 1903, discutiu as características do século XX a partir de uma perspectiva econômica. Naquele ano, enquanto viajava pelos Estados Unidos, Liang Qichao examinou de perto essa “nação de guerra econômica” e publicou o longo artigo Truste, o gigante do século XX (《二十世紀之巨靈托拉斯》), que analisava as novas características do capitalismo do século XX, como monopólios econômicos, superprodução e controle de capital. Ele propôs que “os trustes são o imperialismo do domínio econômico; a tendência inevitável do domínio político em direção ao imperialismo e a tendência inevitável do domínio econômico em direção ao truste são ambos resultados inevitáveis da seleção natural” (Qichao, 1903). Isso complementou sua interpretação em Uma canção para o Oceano Pacífico no século XX da verdadeira força motriz por trás da expansão dos EUA no Pacífico após a Guerra Hispano-Americana (1898).

A China do século XX foi a primeira época na história do país definida a partir do conceito de “século”, e as avaliações sobre as características dessa era estavam intimamente ligadas às observações de todo o padrão mundial. Uma canção para o Oceano Pacífico no século XX (1900) e Truste, o gigante do século XX (1903), de Liang Qichao; Monstros do século XX: Imperialismo (1901), de Kōtoku Shūsui; Imperialismo: um estudo (1902), de J.A. Hobson; Truste americana e sua significação econômica, social e política (1903), de Paul Lafargue; Capital financeiro (1910), de Rudolf Hilferding; A acumulação de capital (1913), de Rosa Luxemburgo; Ultra-Imperialismo (1914), de Karl Kautsky; e Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916), de Vladimir I. Lenin, fazem parte de uma longa sequência que contempla a natureza do século XX. O imperialismo não é apenas um sistema econômico e militar expansionista, mas também um espectro ideológico e de valores, com este último intervindo em várias narrativas sobre os outros e sobre si mesmo por meio de um sistema de conhecimento expansivo. A consciência do “século” é tanto uma consciência quanto uma forte resistência a esse processo.

O advento do “século” é um evento: a adoção desse conceito de tempo foi precisamente para pôr fim a antigos conceitos de tempo, de modo que o século XX não poderia derivar ou evoluir naturalmente desses conceitos anteriores  nem das cronologias dinásticas, do calendário do Imperador Amarelo ou do calendário confucionista, nem poderia ser compreendido por meio dos conceitos sequenciais de tempo dos séculos XVIII, XIX e XX. Entretanto, todos os outros conceitos de tempo seriam reconstruídos como a pré-história do século XX. O conceito de “século” fornece uma estrutura epistemológica que integra diversos espaços e tempos em uma história universal de simultaneidade, provocando assim reflexões sobre os desequilíbrios internos, as contradições e os conflitos dessa história universal. A distinção do século XX de todas as épocas passadas não é apenas temporal, mas uma compreensão da propensão da época. Nesse momento histórico único, para que o povo chinês pudesse criar sua própria pré-história para a China moderna e pudesse distinguir sua posição única no mundo, também tiveram que pensar sobre as questões na Europa e em todo o mundo nos séculos XVIII e XIX, e até mesmo em períodos anteriores.

Portanto, a narrativa histórica do século XX deve ser entendida de maneira inversa: o século XX não é o resultado de sua pré-história, mas seu criador.

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Segunda parte: Revoluções em áreas periféricas

A Europa do século XIX é o eixo central da narrativa histórica moderna. Muitas discussões históricas e teóricas, seja sobre o período clássico, a Idade Média, o início do período moderno ou o século XX e as eras pós-modernas, são reconstruídas, em sua maioria, de acordo com a visão histórica e a consciência do problema do século XIX europeu. O século XIX e o conceito de modernidade se sobrepõem quase completamente: enraizados na revolução dupla (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial Britânica) e na narrativa da modernidade capitalista, com as revoluções, o capital, os impérios e suas flutuações formando a história central. As mudanças em outras regiões do mundo estão subordinadas a essa história central.

Em comparação com o “longo século XIX”, o século XX continua sendo uma breve “era de extremos”: A Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a limpeza étnica, a Guerra Fria, a tirania etc., são todos experimentos sociais que terminaram em fracasso.4 Certa vez, Eric Hobsbawm lamentou o fato de o século XX estar intimamente ligado ao destino de um único país: a União Soviética. Em tais narrativas, que posição a China e outros mundos não ocidentais ocupam?

A ascensão do imperialismo, o padrão das grandes potências competindo e colaborando para dividir os territórios coloniais e a mudança do centro do poder global para o Pacífico constituem as condições históricas necessárias para entender as questões fundamentais do século XX. Da perspectiva da China, se falarmos apenas do fenômeno do imperialismo, é difícil traçar uma fronteira hoje tão clara quanto a traçada por muitos escritores clássicos sobre o imperialismo entre 1840 e 1870.

Juntamente com a mudança do centro capitalista mundial, o nascimento do século XX foi acompanhado por uma série de revoluções em áreas periféricas. O imperialismo não é apenas um sistema internacional, mas também um sistema militar, econômico, político, social e cultural que se infiltra internamente nas sociedades. O que distingue claramente o século XX do século XIX são as revoluções em áreas não ocidentais, que foram alimentadas pelas condições internas e externas da era dos impérios. A novidade desse novo período não é definida apenas pela história desenvolvimentista de que o capitalismo se espalhou das áreas centrais para o todo o globo. Em vez disso, ela também foi moldada, por um lado, pela resistência contínua das colônias e semicolônias contra a hegemonia imperialista do desenvolvimento econômico, bem como por sua luta pela independência política e sobrevivência cultural e, por outro lado, pelas transformações das relações sociais internas que obstruíram tanto os objetivos quanto a exploração de novas formas sociais nesse processo de resistência e transformação. Por exemplo, na era da guerra e da revolução, para entender as transformações da China do século XX por meio da própria guerra, é necessário perguntar quais eram as características da guerra dessa época na China. A Expedição do Norte (1926-1928), a Guerra Revolucionária Agrária (1927-1937), a Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1937-1945), a Guerra de Libertação (1946-1949) e as guerras anteriores ao século XX, como as Guerras do Ópio (1839-1842, 1856-1860), a Guerra Sino-Francesa (1884-1885) e a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), têm diferenças significativas. Esses são conflitos de organizações revolucionárias mobilizadas em guerras, conflitos de revolução travados por meio de guerras, lutas para construir um país revolucionário durante a guerra, lutas para criar um novo sujeito político, “o povo”, por meio de guerras que combinaram libertação nacional com a luta antifascista internacional e guerras que alcançaram o objetivo de libertação nacional por meio de guerras revolucionárias domésticas e repercutiram no movimento socialista internacional.

A China do século XX nasceu dentro desse contexto. Por isso, é provável que o século XX não seja, como sugeriu Eric Hobsbawm, definido apenas por um único país (a União Soviética), mas, sim, esteja ligado a revoluções em áreas periféricas e suas consequências. Discutir os pontos de partida e de chegada do século XX é, portanto, explorar as múltiplas origens, os processos complexos e as formas de declínio das ondas revolucionárias dessa era. Uma análise dessa questão deve começar com uma análise da não uniformidade do sistema imperialista. Se a não uniformidade do sistema mundial imperialista cria o “elo fraco” desse sistema internacional, então as divisões domésticas causadas pela concorrência entre as principais potências também fornecem o “elo fraco” para as revoluções domésticas. Portanto, na era do imperialismo, há dois tipos de elos fracos. Um tipo, como disse Lenin, é o “desenvolvimento econômico e político desigual” como “uma lei absoluta do capitalismo”, o que leva à conclusão de que “a vitória do socialismo é possível primeiro em vários ou até mesmo em um único país capitalista”. Outro surge do desenvolvimento político e econômico desigual no âmbito interno, bem como das contradições entre os agentes imperialistas dentro das nações oprimidas. Esse segundo “elo fraco” proporcionou as condições para que as forças revolucionárias chinesas sobrevivessem e se desenvolvessem no vasto interior, ao longo das fronteiras provinciais e nas áreas periféricas.5

Considero o “curto século XX” como o século das revoluções. Esse século revolucionário não se originou do estabelecimento da hegemonia econômica e militar na Europa ou nos Estados Unidos, mas da nova “não uniformidade” causada pelo processo de estabelecimento dessa hegemonia – ou, mais precisamente, das oportunidades revolucionárias criadas por essa “não uniformidade” – que consiste em uma série de grandes eventos interconectados: revoluções nacionais, políticas e sociais. A Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) desencadeou diretamente a Revolução Russa de 1905, que inspirou a greve maciça do Partido Socialista Polonês e a insurreição de Lodz no mesmo ano, afetando a Revolução Constitucional Persa (1905-1911) e a Revolução Turca (1908-1909). Essas revoluções, com a Revolução Chinesa de 1911, criaram uma sequência revolucionária na Ásia (e na Europa Oriental).6 A Revolução de Outubro de 1917 na Rússia e a Revolução Nacionalista de 1924 na China sob a Primeira Frente Única, que também podem ser colocadas dentro dessa sequência revolucionária, forneceram a premissa para o movimento de revolução agrária liderado pelos comunistas chineses. A Revolução de Outubro é geralmente entendida no contexto da guerra europeia, mas isso ignora a continuidade entre essa revolução e a sequência revolucionária asiática. Intimamente relacionados a essa sequência estão os movimentos de descolonização e independência nacional que se desenvolveram de diferentes formas em vários países e regiões, como o movimento de independência da Índia. Embora todas essas revoluções e movimentos tenham ocorrido em diferentes contextos históricos e culturais, constituindo diferentes caminhos modernos, suas interconexões e inspirações mútuas são evidentes. Anos depois, essas revoluções e movimentos fizeram parte da base histórica da Conferência de Bandung (1955) e do Movimento dos Não Alinhados (1961 até o presente). Portanto, o nascimento do “breve século XX” teve que começar com uma exploração dos “elos fracos”, que só podem ser identificados na busca de oportunidades de revolução e mudança. Do ponto de vista da busca de oportunidades para revolução e mudança, não é a antiga competição geopolítica eurasiana, mas a situação revolucionária causada pela nova estrutura na Ásia após a Guerra Sino-Japonesa e a Guerra Russo-Japonesa, não as guerras imperialistas, mas o “despertar da Ásia” desencadeado por essas guerras e moldado pela série de revoluções mencionada anteriormente, que marcou os múltiplos começos do “breve século XX”.

Portanto, em termos temporais, o “curto século XX” não começou em 1914, mas entre 1905 e 1911; em termos espaciais, não começou em um único ponto, mas em um conjunto de começos; e em termos de oportunidade, não surgiu de guerras destrutivas, mas da exploração dupla que buscava romper o sistema imperialista e os antigos regimes. Geopoliticamente, o século XX não foi apenas uma era pós-colonial, mas também uma era pós-metropolitana,7 durante a qual as revoluções e reformas nas áreas periféricas não apenas transformaram suas próprias regiões, mas também as relações centro-periferia do mundo, afetando significativamente as regiões centrais e as transformações pelas quais passaram. Só recentemente, em um momento em que os países do Sul Global representam quase 60% do PIB global e os países do BRICS mais de 30%, que as pessoas começaram a entender as características da “era pós-metropolitana”, embora esse seja um processo prolongado (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2024). Os conceitos transgeopolíticos amplamente utilizados, o “tricontinentalismo” (亚非拉), o surgimento de movimentos de independência nacional e o Movimento Não Alinhado, bem como o surgimento do Sul Global ao longo dessa trajetória, são todos decorrentes desse processo revolucionário sequencial. O que é o Sul Global? O Sul não é apenas uma região ou meramente uma área “atrasada” ou empobrecida; na tradição da Conferência de Bandung, ele se une ao Leste, formando uma unidade por meio das diferenças. A China e o Sul Global não são mais meras áreas periféricas totalmente dominadas pelas metrópoles coloniais da era colonial; são as forças de época que impulsionaram a transição da era metropolitana para a era pós-metropolitana. Esse processo começou há um século e é uma das premissas para a compreensão do século XXI.

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Terceira parte: A política de deslocamento e a criação de continuidade

O nascimento do século significa a transformação de vários mundos sob diferentes períodos em desigualdade dentro de um mundo de sincronicidade, criando assim uma necessidade absoluta de observar a história ao longo de um eixo horizontal. Essa transformação temporal é, na verdade, condicionada pela chamada “revolução espacial”. Sob a premissa da revolução espacial, as relações temporais assumem cada vez mais uma natureza lateral, e as mudanças contemporâneas — bem como os discursos que descrevem essas mudanças — não podem ser narradas ao longo de um eixo longitudinal de relações diacrônicas. Em vez disso, eles devem ser explicados em vários períodos. Esse fenômeno pode ser resumido como um movimento lateral conceitual, cuja função é transformar conteúdos históricos de diferentes linhas do tempo em realidades que podem ser expressas pelo mesmo conjunto de discursos dentro de uma estrutura de sincronicidade.

Nesse contexto, como ocorre a política? Sem uma série de conceitos ou categorias inteiramente novos, a política do século XX e seu significado histórico parecem impossíveis de serem representados; no entanto, ao mesmo tempo, se esses conceitos, que foram traduzidos ou transcritos, forem usados como categorias fundamentais para construir e explicar cenários históricos, o desalinhamento entre os sistemas de discurso e as condições sociais é, muitas vezes, bastante aparente. Nesta era, conceitos como indivíduo, cidadão, Estado, nação, classe, povo, partido político, soberania, cultura e sociedade tornam-se centrais na nova política; produção, modos de produção, formações sociais e seus conceitos associados tornam-se categorias fundamentais para descrever a sociedade chinesa e outras sociedades; conceitos como “elo fraco”, relações amigo-inimigo, “áreas de fronteira”, “meio-termo”, “Três Mundos”, frente unida e assim por diante, todos surgem de avaliações e pensamentos estratégicos e táticos sobre as realidades globais e domésticas sob condições imperialistas.

Dipesh Chakrabarty, um importante acadêmico indiano de estudos subalternos, descobriu que os esforços para buscar sujeitos revolucionários na Índia e em outros mundos não ocidentais produziram uma série de substitutos para a categoria ocidental de proletariado, como camponeses, massas, subalternos e assim por diante (Chakrabarty, 2011). Entretanto, o fenômeno da repetição e do deslocamento não ocorre apenas com categorias como o proletariado, mas também com quase todas as categorias mencionadas acima. Tanto a revolução quanto a contrarrevolução incorporam a lógica desse deslocamento.

Essas categorias não podem ser explicadas simplesmente pela lógica do século XIX, nem por suas raízes clássicas. A maioria desses conceitos, categorias e proposições-chave (com exceção de alguns que surgiram de lutas específicas, como “áreas de fronteira” e “meio-termo”) tem origem em traduções e apropriações de conceitos e proposições europeus do século XIX. Entretanto, o conteúdo político desses termos ou conceitos — como Estado, soberania, povo, classe, cidadão, partido político etc. — não pode ser definido apenas por suas origens europeias. Os revolucionários e reformadores do século XX utilizaram rapidamente esses conceitos, categorias e proposições para práticas políticas específicas, causando muita angústia aos historiadores da nova era. Por exemplo, se “feudal” foi originalmente um termo mal utilizado, então qual é a base para descrever formas sociais anteriores e posteriores? Da mesma forma, com o desenvolvimento do capitalismo e do colonialismo europeus no século XIX, os socialistas inventaram o conceito de “proletariado”, que era visto como o verdadeiro sujeito revolucionário voltado para o futuro. Na China do século XX, a busca pelo proletariado como um sujeito revolucionário foi um processo político contínuo. Entretanto, em uma sociedade com uma industrialização tão fraca, havia poucos grupos de trabalhadores em termos de número, escala e nível organizacional, e é questionável se o grupo capitalista, como sua contraparte, constituía ou não uma classe. Isso implica que a própria Revolução Chinesa foi o produto de um “mal-entendido”?

Muitas categorias e temas da China do século XX são repetições da Europa do século XIX, mas cada repetição é também um deslocamento — não apenas um produto de contextos diferentes, mas também um deslocamento político. Dessa forma, é necessário questionar a formação e significado de categorias como Estado, nação, soberania, partido político, povo, classe etc., em condições históricas específicas; indagar sobre como as guerras populares transformaram e criaram novas organizações políticas (embora com os mesmos nomes) e formas de Estado (como o soviete) diferentes dos partidos políticos anteriores; indagar sobre como, por meio da organização e da mobilização, os camponeses se tornaram uma força motriz ou uma classe política na revolução; e indagar sobre como entender a soberania e as disputas soberanas dentro da Liga das Nações e a guerra entre essas nações. Nesse sentido, nenhuma dessas categorias pode ser explicada simplesmente de acordo com a lógica do século XIX, nem pode se basear nas raízes clássicas dos termos. Esses conceitos reorganizaram as narrativas históricas e romperam o domínio das antigas narrativas, abrindo caminho para o surgimento de novas políticas. Isso não quer dizer que as práticas discursivas dessa época não envolviam o uso incorreto de conceitos ou categorias, mas sim que, sem analisar o desdobramento político desses conceitos ou categorias, não podemos entender seu verdadeiro significado, força e limitações e, portanto, não podemos usá-los para entender a singularidade da China do século XX. Quando esses conceitos desconhecidos foram usados em condições históricas muito diferentes daquelas que lhes deram origem, eles não apenas promoveram uma nova consciência, valores e ações, mas também produziram uma nova lógica política. Portanto, sem a perspectiva interna da Revolução Chinesa, é difícil explicar a importância da China do século XX.

Esse deslocamento político fornece uma premissa metodológica para a compreensão de dois aspectos únicos da China do século XX, ou seja, que não foi um simples transposição, mas um deslocamento sob condições históricas específicas e contextos tradicionais que estabeleceram uma relação dialética entre revolução e continuidade. A partir dessa perspectiva, podemos reexaminar dois aspectos singulares da China do século XX.

O primeiro se concentra no início do “século breve”, especificamente na questão da continuidade entre a antiga dinastia e o novo Estado durante o processo revolucionário de construção do Estado. O século XX começou com as revoluções nacionais asiáticas e a democracia constitucional, e podemos considerar a Revolução Russa de 1905, a Revolução Constitucional Persa de 1905-1911, a Revolução Turca de 1908-1909 e a Revolução Chinesa de 1911 como os eventos inaugurais do “Despertar da Ásia”. A Revolução de 1911 levou rapidamente à fundação da primeira república da Ásia, conferindo à revolução o significado de um verdadeiro começo. Também coloco a Revolução Russa de 1905 na sequência das revoluções asiáticas, não apenas porque seu gatilho direto foi a Guerra Russo-Japonesa e a derrota da Rússia no território da dinastia Qing, mas também porque essa guerra e essa revolução catalisaram o processo da revolução nacional chinesa (o Tongmenghui da China, ou Aliança Revolucionária da China, foi fundado no mesmo ano), desencadeando debates ferozes entre republicanos e constitucionalistas e inspirando as revoluções subsequentes no Irã e na Turquia.

Podemos associar o “Despertar da Ásia” à Primeira Guerra Mundial como uma era de colapso de impérios. Embora a revolução de 1905 tenha fracassado, ela revelou sintomas de decadência no enorme e multiétnico império russo, que acabou entrando em colapso em meio à fumaça de revoluções e guerras. A Revolução Russa e as forças nacionalistas marcharam juntas, e o princípio da autodeterminação nacional prevaleceu nas regiões de fronteira da Rússia, como a Polônia e a Ucrânia. Embora as nações fronteiriças tenham se juntado posteriormente à União Soviética como “repúblicas federadas”, a dissolução de 1991 revelou que a estrutura soviética estava profundamente ligada ao princípio nacional. Em 1918, o Império Austro-Húngaro, estabelecido em 1867, entrou em colapso, e a Áustria e a Hungria estabeleceram suas próprias repúblicas, enquanto as nações menores que antes faziam parte do império adquiriram o status de nações independentes. O conceito nacionalista do Partido Social Democrata da Áustria de revolução e reforma dentro do Império Austro-Húngaro — consistente com a teoria de Otto Bauer — resultou em um fracasso total. O Império Otomano tinha um vasto território e uma grande população que abrangia a Europa e a Ásia; sua ascensão foi um evento histórico mundial internacionalmente significativo que provocou a era das explorações marítimas europeia. No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, esse império, sobrevivente de revoluções anteriores, caminhava a passos largos para o colapso, e a recém-nascida Turquia abriu mão de seu pluralismo institucional por um território menor e uma estrutura menos complexa. Nos sucessivos colapsos desses três grandes impérios, o nacionalismo, a reforma constitucional e a desintegração do complexo pluralismo institucional foram facetas diferentes do mesmo evento. Em 1918, os “quatorze pontos” de Woodrow Wilson colocaram o princípio nacional acima dos interesses imperiais em nome da autodeterminação nacional; a nação, o nacionalismo e o Estado-nação como antíteses do império dominaram a lógica política de todo o século XX.

No início, a dinastia Qing parecia muito semelhante a outros impérios: uma revolta regional em 1911 provocou o colapso de todo o sistema imperial, e ventos de separatismo e independência se espalharam por todo o império. Em um nível filosófico, o nacionalismo étnico ressoou em áreas com povos han, mongóis, tibetanos e uigures. Zhang Taiyan, um líder revolucionário intelectual, comparou os Qing com os impérios austro-húngaro e otomano (Taiyan, 1963). Surpreendentemente, no entanto, apesar da violenta turbulência, da fragmentação e das invasões estrangeiras, a precária república acabou conseguindo permanecer unificada, mantendo o território e a população do império anterior. Como podemos explicar a continuidade única entre o império multiétnico unificado e um Estado soberano multiétnico unificado?

A segunda característica exclusiva da China moderna é a continuidade entre os períodos revolucionário e pós-revolucionário no final do “breve século XX”. No “breve século XX” na Ásia, que começou com a Revolução Russa de 1917, os movimentos revolucionários nacionais não estavam mais simplesmente aliados à democracia constitucional burguesa, mas também às revoluções sociais e a certos tipos de movimentos de construção do Estado com orientação socialista. A Revolução de Outubro na Rússia foi um produto das guerras europeias, mas ecoou o espírito das revoluções asiáticas porque continuou o caminho estabelecido pela Revolução Chinesa de 1911, que combinou a revolução nacional com um programa econômico socialista e um projeto de construção do Estado.8 Por outro lado, um Estado socialista e um programa de ação precisavam ser estabelecidos para desenvolver o capitalismo em um país agrário atrasado (capitalismo sem burguesia).9 A principal característica que diferenciou a Revolução Chinesa de 1911 da Revolução Russa de 1905, da Revolução Constitucional Persa de 1905-1911 e da Revolução Turca de 1908-1909 foi o fato de ela ter vinculado os movimentos nacionais aos movimentos socialistas de construção da nação e às revoluções internacionais. Essa característica pressagiava a diferença radical entre as revoluções do século XX e as dos séculos XVIII e XIX, como exemplificado pelas Revoluções Americana e Francesa. Portanto, a Revolução Chinesa de 1911 foi um ponto de inflexão significativo para a sequência de revoluções que se seguiu a 1905; em outras palavras, foi a Revolução de 1911 — e não a Revolução Russa de 1905 — que marcou o verdadeiro início desse “século breve” (que se estende mais do que a “era dos extremos”). A efêmera Revolução de 1911 foi um grito de alerta para a longa Revolução Chinesa. A Revolução Chinesa de 1911, a Revolução Russa de 1917 e o estabelecimento do campo socialista global remodelaram o cenário global, que havia sido dominado pela expansão unidirecional do capitalismo desde o século XIX. Portanto, não podemos entender a ordem mundial geral após o final do século XIX sem a perspectiva da “revolução”.

Após o fim da Guerra Fria, a União Soviética e os países socialistas do Leste Europeu se desintegraram um após o outro, e o princípio nacional e o sistema capitalista de democracia de mercado obtiveram uma dupla vitória. No Ocidente, essa mudança foi comparada à desintegração de impérios anteriores e vista como um momento de libertação para nações e povos do império soviético “despótico” e um passo em direção à democracia constitucional. Na União Soviética e na Europa Oriental, a ruptura entre as eras da revolução e da pós-revolução era facilmente visível. Porém, desde o fim da “era dos extremos” descrita por Eric Hobsbawm, a própria China não só manteve a integridade de sua estrutura política, composição populacional e tamanho, como também concluiu, ou está a caminho de concluir, uma transformação econômica orientada para o mercado e dirigida por seu sistema estatal socialista. Por que isso acontece?

A primeira consideração ao responder a essa pergunta tem a ver com as relações entre a dinastia Qing e a nação chinesa moderna, por um lado, e entre os sistemas imperial e republicano, por outro. A segunda consideração tem a ver com as relações entre o socialismo e a economia de mercado. Depois de 1989, ninguém esperava que a China desenvolvesse sua economia tão rapidamente quanto o fez, mantendo sua estrutura política. Da mesma forma, nos anos turbulentos que se seguiram a 1911, ninguém fazia ideia de onde a agitação social da época levaria. A estrutura política da China moderna é o produto da construção revolucionária da nação que começou em 1949; seu tamanho e suas relações soberanas, no entanto, remontam à continuidade estabelecida entre a dinastia Qing e a recém-nascida república após a Revolução de 1911. Em outras palavras, a criação de revolução, transformação e continuidade —inevitavelmente também expressa como rupturas de continuidade — encapsula os segredos cruciais do “breve século XX” da China. Se esse processo político único também for visto pelas lentes da “continuidade da soberania”, fica evidente que o surgimento, a renovação e a conclusão da “continuidade soberana” no decorrer do processo revolucionário e de construção do Estado chinês foram acompanhadas pelo nascimento de um novo sujeito político e sua capacidade cada vez maior de integração política.

Ao contrário das Revoluções Francesa e Russa, a Revolução Chinesa não pode ser definida por um único evento, em vez disso, é um longo processo de mobilização e transformação da sociedade em todos os campos — político, econômico, cultural, militar etc. —, um processo de criação de continuidade por meio da autotransformação contínua e até mesmo da autonegação, e um processo que não apenas estabeleceu sua posição nas relações globais, mas também mudou a desigualdade global. A revolução é moldada não apenas por personagens e eventos tangíveis, mas também por forças invisíveis, como ideias, valores, costumes e tradições que fazem parte dos eventos instigantes e se unem em sua erupção. A subjetividade política do “povo chinês” nasceu e se fortaleceu durante esse longo processo. A continuidade histórica da China moderna nasceu em eventos históricos específicos, produzidos por seus participantes sob várias forças históricas. A energia e a capacidade da China do século XX de criar sua própria continuidade por meio da revolução e da transformação estabelecem a base para enfrentar os desafios contemporâneos e futuros.

Interpretar a história da China do século XX ou discutir a China contemporânea e seu futuro depende da avaliação fundamental da questão da continuidade, que não pode ser vista como uma extensão natural da China tradicional e de sua civilização nem como uma invenção das revoluções e transformações modernas. A discussão sobre continuidade não existiria sem as revoluções e transformações da China do século XX: tanto as experiências práticas da revolução e reforma chinesas quanto a relação entre a China moderna e a civilização clássica devem ser compreendidas dentro dessa estrutura.

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Quarta parte: Crise e oportunidade na era pós-metropolitana

Se uma das características globais do século XX foram as revoluções que surgiram nas regiões periféricas fora do centro do capitalismo global, essa série de revoluções também significou o surgimento de novos sujeitos políticos nas relações globais, sucessivamente chamados de nações oprimidas, Movimento dos Não-Alinhados, Terceiro Mundo e Sul Global, com base em diferentes condições históricas. As nações e os povos sob essas designações diferem tremendamente em várias condições históricas e contextos culturais. Como afirmou o presidente indonésio Sukarno na cerimônia de abertura da Conferência de Bandung em 1955, as nações participantes “não se reuniram em um mundo de paz, unidade e cooperação. Grandes abismos se abrem entre nações e grupos de nações. Nosso mundo infeliz está dilacerado e torturado, e os povos de todos os países andam com medo de que, sem culpa alguma, os cães de guerra sejam soltos mais uma vez” (Conferência de Bandung, 1955). Décadas depois, as contradições ainda são abundantes entre nações, religiões, grupos étnicos, classes, gêneros e entre a humanidade e a natureza, formando uma cadeia de crises.

A base histórica da globalização neoliberal está nos múltiplos monopólios formados durante a era do imperialismo e da Guerra Fria, incluindo finanças, tecnologia, recursos naturais, armas de destruição em massa e comunicações. Desde as revoluções industrial e elétrica até as revoluções biotecnológica e digital, essa ordem global e suas desigualdades inerentes deixam cada vez mais de atender às necessidades de desenvolvimento da China e da região asiática, de dar apoio ao desenvolvimento dos países da África e da América Latina ou de oferecer uma nova estrutura para o desenvolvimento global justo e para a superação das crises ecológicas. Se as nações oprimidas, o Terceiro Mundo e o Movimento dos Não-Alinhados foram respostas ao imperialismo e à política hegemônica, o Sul Global hoje deve enfrentar a cadeia de crises provocada pela globalização neoliberal e defender um novo relacionamento político, econômico e cultural e uma nova ordem internacional que acomode a ascensão das regiões periféricas.

Comparando a conjuntura internacional durante a era de Bandung com a atual, a diferença ou o desenvolvimento mais significativo é a ascensão da China e de outras regiões periféricas, que, por meio de revolução e transformação, mudou parcialmente a estrutura hegemônica da ordem global. A partir da era de Bandung, a hegemonia persistiu, mas estava se afrouxando de uma forma difícil de conter. Se a crise da guerra na era colonial foi causada por conflitos entre nações imperialistas que disputavam colônias, esferas de influência e o chamado equilíbrio de poder, as maiores ameaças à paz de hoje surgem dos esforços para suprimir a ascensão de regiões periféricas à medida que as estruturas hegemônicas começam a se afrouxar. Após a Segunda Guerra Mundial, os países do Sul Global, incluindo o Leste, obtiveram as condições básicas para a modernização por meio de movimentos de libertação nacional e socialistas. Com essa base, alguns países e regiões fizeram progressos significativos por meio do desenvolvimento independente e cooperativo e buscam continuamente uma ordem mais justa nos processos globais. Acompanhados por crises internas e externas, os países do Norte Global passaram da globalização neoliberal para uma contenção e um monopólio mais evidentes, e as crises de guerra regionais têm o potencial de se transformar em conflitos globais de maior escala. As restrições e sanções financeiras, comerciais e tecnológicas impostas repetidamente pelos Estados Unidos e pela União Europeia são manifestações de uma crise hegemônica. Os países do Norte Global não podem mais monopolizar os recursos naturais como na era colonial. Mesmo em termos de armas de destruição em massa e mídia, o monopólio das nações hegemônicas está em declínio. A questão da defesa da paz, levantada na Conferência de Bandung, apresenta uma nova urgência e implicações diferentes no contexto de uma nova era. Atualmente, os conflitos contemporâneos mais intensos estão intimamente relacionados a mudanças internas em cinco estruturas de monopólio: finanças, tecnologia, recursos naturais, armas de destruição em massa e comunicações.

Primeiro, vamos dar uma olhada no sistema financeiro, onde a hegemonia ainda existe, mas claramente começou a diminuir. A internacionalização do renminbi já está em andamento, pois a China usa sua própria moeda em acordos comerciais com vários países. As sanções financeiras impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia durante a guerra entre a Rússia e a Ucrânia agiram como uma faca de dois gumes; ao mesmo tempo em que prejudicaram outros países, também expuseram as evidentes fraquezas do sistema do dólar. O sistema de hegemonia financeira não acabou, mas a luta em torno dele está se tornando cada vez mais intensa.

Em segundo lugar, na situação atual, a crise nos monopólios tecnológicos é ainda mais grave do que no setor financeiro. A lei estadunidense Chips (Creating Helpful Incentives to Produce Semiconductors) e a Lei de ciência (Science Act) (2022) são exemplos típicos disso; assim que os países não ocidentais fazem avanços tecnológicos e fortalecem sua autonomia, os países do Norte Global recorrem a todos os meios necessários para suprimir, sancionar, limitar ou dividir os países do Sul Global. O processo de desordem imposto pela globalização neoliberal está evoluindo para um processo de conflitos intensos.

Em terceiro lugar, também surgiu uma crise no monopólio do Norte Global sobre os recursos naturais, à medida que os países do Sul Global ganham independência e crescente autonomia econômica. A hostilidade e a resistência da Europa e dos EUA em relação à Iniciativa de Cinturão e Rota refletem os desafios sem precedentes ao monopólio de recursos estabelecido desde a era colonial. Portanto, a forma como a China desenvolve um modelo diferente da hegemonia europeia e articula claramente sua estratégia de desenvolvimento em escala global também é uma questão crucial para os países do Sul Global.

Em quarto lugar, quando se trata de armas de destruição em massa, ainda existe um monopólio, embora ele não seja abrangente. Isso levou a um novo perigo de uma crise nuclear global e de uma corrida armamentista. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o acordo trilateral Austrália-Reino Unido-Estados Unidos (AUKUS) foram concebidos para manter o monopólio das armas de destruição em massa e estabelecer novas estruturas estratégicas globais que promovam esse objetivo.

Em quinto lugar, o monopólio das comunicações continua forte. Após o colapso do sistema socialista, o monopólio dos grandes meios de comunicação ocidentais não apenas persiste, mas se tornou ainda mais forte. O surgimento de plataformas de mídia social como o TikTok e as audiências no Congresso dos EUA provam que os EUA e a Europa usarão todos os meios para suprimir qualquer tecnologia que possa romper parcialmente o monopólio da mídia, seja ela um grande meio de comunicação nacional ou uma plataforma de mídia social. Entretanto, as novas políticas digitais restritivas que estão sendo formadas e estabelecidas pelos EUA e pela Europa também revelam a situação cada vez mais tensa dessas regiões.

O que não parou em meio a essas mudanças foi a contínua ascensão da posição da Ásia na economia global, as novas possibilidades de desenvolvimento econômico nos países africanos, a tendência de longo prazo dos países latino-americanos de buscar cada vez mais o desenvolvimento independente e as ondas do socialismo do século XXI. Trinta anos atrás, Samir Amin disse que a globalização não é ordem, mas desordem, e hoje essa desordem está se transformando em conflitos por meio de uma cadeia de múltiplas crises, o que representa uma ameaça significativa à paz e ao desenvolvimento globais. Como um amplo movimento global, o objetivo do Sul Global não é apenas buscar o desenvolvimento unilateral, mas trabalhar em prol de uma ordem mundial mais justa, pacífica e ecologicamente correta. Para isso, é fundamental desmantelar os monopólios das finanças, da tecnologia, da mídia, dos recursos naturais e das armas de destruição em massa e organizar o desarmamento global para defender a paz. Nesse sentido, o movimento do Sul Global não é simplesmente um movimento no Sul, mas um movimento global que promove mudanças nas relações globais e busca uma nova universalidade para a sobrevivência e o desenvolvimento da civilização humana.


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Referências bibliográficas

CONFERÊNCIA DE BANDUNG, Indonesia 1955, Asia-Africa Speaks from Bandung. Jakarta: Ministry of Foreign Affairs Republic of Indonesia, 1955.

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YONGLE, Zhang. ‘The Future of the Past’, New Left Review, n. 62, 1 abr. 2010.

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Notas

1 “O século breve” é um termo cunhado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm, referindo-se ao período entre o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e o colapso da União Soviética, em 1991. Ver: Eric Hobsbawm, 1995.

2 O Ano do Gengzi (庚子年) refere-se a um ano no ciclo de tempo tradicional chinês de 60 anos. 1900 foi o Ano do Gengzi mais conhecido por causa da Rebelião Boxer anticolonial e antiestrangeira, apoiada pela dinastia Qing sob o comando do imperador Guangxu (光绪帝), e a subsequente invasão da Aliança das Oito Nações, que incluía forças do Japão, Rússia, Grã-Bretanha, França, Estados Unidos, Alemanha, Itália e Áustria-Hungria. Esse ano representa a humilhação e a crise nacional da época.

3 Atribuída ao estudioso confucionista Gongyang Gao durante o período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.), a “Teoria das Três Idades de Gongyang” (公羊三世说) apresenta uma visão confucionista do tempo na qual a história progride por meio de “idades” distintas, cada uma representando um nível diferente de desenvolvimento moral e político.

4 O “longo século XIX”, conforme teorizado por Eric Hobsbawm, refere-se ao período histórico entre a Revolução Francesa em 1789 e o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, um período caracterizado pelo surgimento do capitalismo industrial, pela disseminação do nacionalismo e pela expansão dos impérios europeus, entre outras mudanças significativas.

5 V. I. Lenin, “On the Slogan for a United States of Europe”, Lenin Collected Works, vol. 2, 709.

6 A Revolução Chinesa de 1911, também conhecida como Revolução Xinhai, pôs fim à última dinastia imperial da China, a dinastia Qing, e levou ao estabelecimento da República da China.

7 “Metropolitana” refere-se às potências coloniais ocidentais representadas por metrópoles, como Londres e Nova York, e sua relação associada de dominação de colônias, semicolônias e pós-colônias. Portanto, a chamada “era pós-metropolitana” corresponde ao “pós-colonialismo”. Hoje, com a ascensão econômica da China e do Leste Asiático e as mudanças na ordem mundial, iniciou-se a era “pós-centro (ocidental)”, um processo que começou com as revoluções e mudanças que ocorreram nas áreas periféricas no século XX. A influência dessas áreas sobre as áreas centrais aumentou de tal forma que a sociedade ocidental hoje precisa enfrentar sua própria realidade “pós-central” ou “pós-metropolitana”.

8 Lenin notou pela primeira vez as características distintas da Revolução Chinesa em 1912-1913. Em 1919, ele argumentou que a revolução socialista “será uma luta de todas as colônias e países oprimidos pelo imperialismo, de todos os países dependentes, contra o imperialismo internacional”. Ver Vladimir Lenin, Collected Works of Lenin, v. 30 (Pequim: People’s Publishing House, 1957), 137. Para conhecer a “descoberta” de Lenin sobre a Revolução de 1911, ver Wang Hui, 2008.

9 O aspecto socialista da Revolução Chinesa de 1911 foi incorporado pelo fato de que o programa de construção do Estado de Sun Yat-sen, o “pai da China moderna” e primeiro presidente da República, implicava não apenas uma revolução política nacional, mas também uma revolução social que visava superar a fraqueza do capitalismo. Suas principais táticas para atingir esse objetivo foram equalizar a propriedade da terra e aumentar os impostos sobre o valor da terra, uma política influenciada pelas teorias de Henry George.

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