Dossiê n. 67
A constituição e consolidação do capitalismo nos diferentes países do mundo é conformada não só pela lógica geral desse modo de produção, mas também pelos elementos sociais, históricos e culturais dos distintos territórios, cuja compreensão das formas de acumulação e expansão são fundamentais para a luta de classes.
A disputa entre os projetos capitalista e socialista durante o século XX gerou um rico ambiente de formulação teórica e política para enfrentar os desafios da desigualdade social nos países da periferia do capitalismo. Uma importante iniciativa nesse sentido foi a criação da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) pela Organização das Nações Unidas (ONU). Ao mesmo tempo, havia setores que encontravam a saída para essa problemática e formulavam uma estratégia a partir da transformação social, como os Partidos Comunistas alinhados às formulações da Terceira Internacional ou grupos de militantes de esquerda, que procuravam compreender a dinâmica do capitalismo latino-americano a partir da teoria do valor de Marx, com vistas à construção de uma alternativa socialista. Estas últimas formulações deram origem à chamada Teoria Marxista da Dependência.
Contudo, nas duas últimas décadas do século XX, o mundo assistiu ao desenvolvimento e a ampliação da globalização comercial, produtiva e financeira. Esse novo momento da economia mundial foi marcado pelo aumento do comércio de bens e serviços, pela maior participação internacional das operações produtivas das empresas transnacionais e pela intensa circulação de capitais no plano internacional em uma nova dinâmica do capitalismo mundial. Diante das exigências do capital financeiro – centro dinâmico desta nova etapa capitalista –, os países aumentaram o grau de abertura externa de suas economias e de desregulamentação de seus mercados, com redução da participação estatal na economia dentro da defesa do ideário do Estado Mínimo, a despeito das necessidades básicas não satisfeitas de um enorme contingente da população.
Dessa forma, políticas neoliberais foram implementadas em diversos países, buscando efetivamente desmontar o Estado de Bem-Estar Social na Europa e os poucos avanços na determinação constitucional do Estado Democrático de Direito na América Latina, apresentadas como condições necessárias para o desenvolvimento econômico e suplantação do “subdesenvolvimento”.
Frente a essa nova dinâmica do capitalismo contemporâneo, o escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, com a colaboração da professora Renata Couto Moreira, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e do Coletivo Anatália de Melo – Estudos Marxistas da Dependência, busca aprofundar o papel da Teoria Marxista da Dependência (TMD) na atualidade como uma importante ferramenta científica para entender a essência dos processos e as atuais tendências antidemocráticas e fascistas, bem como apontar os processos de emancipação ao longo do século XXI.
Para tanto, buscamos fazer um breve histórico do debate da dependência em suas diferentes correntes e perspectivas. Além disso, refletimos sobre a relevância de se compreender a superexploração da força de trabalho enquanto especificidade e atualidade dos países dependentes. Para nós, esta categoria é fundamental para a compreensão da forma que o processo de acumulação e apropriação de riqueza assume no Sul Global, e não faz sentido separar as possibilidades de superação da condição de superexploração da classe trabalhadora dos elementos estruturais que a determinam.
TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA E LUTA DE CLASSES NA AMÉRICA LATINA
O debate sobre o subdesenvolvimento e a dependência surge na década de 1960, guiado principalmente pela tentativa de compreensão do porquê do atraso dos países latino-americanos em relação aos países centrais. O debate internacional girou em torno de pontos de vista bastante distintos e até contraditórios entre si. Foi um momento de intenso diálogo para desenvolver um pensamento latino-americano via instituições, como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES), a Faculdade latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), centros universitários, como a Universidade do Chile, o Instituto de Economia da Universidade Católica do Chile e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Neste debate, respaldados pelo Banco Mundial, os economistas da Cepal – entre os quais, Celso Furtado, Raúl Prebish, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto – enxergavam o subdesenvolvimento como uma situação de “atraso” no desenvolvimento de mercados e suas instituições relacionadas. Para essa análise, havia a necessidade de superar uma série de condições estruturais nestes países, sobretudo para a industrialização, favorecendo, com isso, o desenvolvimento de mercados internos e melhores condições nos termos de trocas nas relações internacionais, o que seria possível por meio de uma atuação ativa do Estado. Colocava-se em questão a relação desigual entre os países do centro e da periferia do capitalismo nos termos do desenvolvimento e subdesenvolvimento, sem contudo levar esse questionamento à contradição entre as diferentes classes sociais dos países.
Paralelamente, nos anos 1960, um grupo de economistas formado pelos professores Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Luiz Fernando Victor, Teodoro Lamounier, Albertino Rodrigues e Perseu Abramo organizaram seus primeiros estudos sobre a Teoria da Dependência, em Brasília, em um curso permanente de leitura d’O Capital, de Karl Marx. A proposta era analisar o desenvolvimento histórico e transformações da realidade latino-americana a partir do método marxista, para compreender a essência do fenômeno do subdesenvolvimento nos países da região. Esse esforço estava vinculado também à formulação de uma estratégia para enfrentar os desafios políticos colocados no Brasil de então, em um momento de efervescência dos movimentos populares em torno de um governo que propunha a realização de reformas de base – agrária, urbana, educacional – e a ofensiva das classes dominantes locais apoiadas pelas burguesias dos países centrais do capitalismo, sobretudo dos EUA.
Estes foram os primeiros estudos do que ficou reconhecida como a Teoria Marxista da Dependência (TMD). A partir das categorias marxianas da Lei Geral da Acumulação capitalista, mais-valia absoluta e relativa, os autores afirmavam que as raízes do subdesenvolvimento não se encontravam no atraso industrial de cada economia em si, mas no processo histórico e na forma como a América Latina tinha sido incorporada ao mercado mundial na colonização de seus territórios pela Europa, e as relações internacionais a que estavam submetidos, perpetuadas após suas independências políticas na forma de dependência econômica nos ditames da divisão do trabalho no capitalismo global.
Nessa perspectiva, passa-se a compreender o subdesenvolvimento enquanto forma necessária de ser da economia dependente para atender ao desenvolvimento combinado e desigual da acumulação capitalista em sua totalidade globalizada. Assim, a relação de dependência é criada e retroalimentada pelo próprio desenvolvimento da indústria capitalista, que transforma alguns países fornecedores de matérias-primas em uma verdadeira drenagem de riquezas aos centros industrializados. Ao mesmo tempo, para que esta drenagem tenha sustentação, é preciso apoiar-se na superexploração da força de trabalho, expressando o processo real de produção e reprodução do capital nos países latino-americanos.
A superexploração do trabalho se refere à existência de uma intensificação do processo de exploração do trabalho, resultando em uma extração de mais-valia acima dos limites historicamente estabelecidos nos países centrais. Esta se torna uma característica fundamental do sistema capitalista nas economias subdesenvolvidas, uma vez que o capital estrangeiro e as classes dominantes locais se beneficiam de baixos salários, condições precárias de trabalho e ausência de direitos trabalhistas, maximizando assim seus lucros e a acumulação de capital. Isso contribui para a reprodução da dependência e subordinação destes países na ordem internacional.
A partir da divisão internacional do trabalho, a superexploração da força de trabalho e a espoliação dos trabalhadores da América Latina e do Caribe, da África e da Ásia ajudaram a sustentar o Estado de Bem-estar Social nos países desenvolvidos. No Norte Global, havia uma espécie de compromisso entre Estado, patrões e trabalhadores que se centrava na expansão de métodos produtivos, cuja base eram os ganhos crescentes de lucro e de produtividade partilhados por meio de aumentos reais de salários e expansão da proteção social.
Portanto, como sistematiza a economista e militante popular Juliane Furno (2022), a TMD demonstra que o modo de produção capitalista em escala global dá origem a dois tipos de economia que se desenvolvem em ritmos distintos, em que desenvolvimento e subdesenvolvimento não são antagônicos, mas complementares, uma unidade dialética, porque levam a uma mesma lógica de acumulação. Assim, o capitalismo dependente é definido pela transferência de valor da periferia para o centro como dinâmica estrutural, a superexploração do trabalho como compensatória para as burguesias locais e um tipo particular de reprodução do capital no qual produção e consumo estão apartados.
Da América Latina para o mundo
O avanço dos governos ditatoriais na América Latina fez com que muitos intelectuais latino-americanos se exilassem no Chile, propiciando um intercâmbio ainda maior destas ideias em meio ao governo da Unidade Popular de Salvador Allende (1970-1973). As novas experiências político-sociais vividas no bojo das mudanças estruturais promovidas ali – como a reforma agrária e as novas relações com o capital estrangeiro via a exploração do cobre – propiciavam estudos e análises a partir das necessidades concretas apresentadas pela dinâmica complexa da experiência de uma transição pacífica ao socialismo.
O golpe militar contra o governo da Unidade Popular, no entanto, patrocinado pelas classes dominantes e pelo Estado dos EUA, em 1973, causou a dispersão do grupo da TMD. No entanto, poucos anos depois, muitos dos autores se reencontrariam no México, onde as suas formulações teóricas teriam um desenvolvimento ainda maior, principalmente entre os professores exilados na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É numa perspectiva não apenas teórica, mas de práxis transformadora que a Teoria Marxista da Dependência se desenvolve, produzida por verdadeiros intelectuais orgânicos, vinculados às organizações socialistas e a problemas de seu tempo.
Ruy Mauro Marini, por exemplo, se tornaria referência entre as leituras fundamentais nos processos de formação política de militantes de muitas organizações socialistas e movimentos sociais, como o Movimento Esquerda Revolucionária (MIR) do Chile e a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua. Além disso, a TMD influenciou os programas de governo da Unidade Popular chilena, do governo militar revolucionário do Peru e da Teologia da Libertação dos militantes cristãos de todo o continente. Em sua autobiografia O país sob minha pele: memórias de amor e guerra, a poeta Gioconda Belli recorda que, em 1973:
Ler, estudar, era uma exigência militante na qual me empenhava. Devorava a literatura rebelde da América Latina nessa época: livros do Che, os tupamaros, a teoria da dependência de Ruy Mauro Marini, e também Lukács e suas teses sobre a ética, os debates sobre o compromisso da arte, as propostas de Freire sobre educação para a libertação (BELLI, 2002, p.89).
Ainda que gestada na América Latina e em um contexto específico de revolução e contrarrevolução das décadas de 1960 a 1970, a Teoria Marxista da Dependência não se restringiu à sua elaboração latina. Ao contrário, ela se tornou uma ferramenta necessária para compreender as manifestações do imperialismo em todo o Sul Global.
Um dos principais elaboradores da TMD, Theotônio dos Santos (2008), relembra que Norman Girvan aplicou o conceito de dependência à realidade do Caribe, com certa influência sobre o governo Manley na Jamaica, iniciando uma “escola caribenha da dependência de língua inglesa”. Na África, a TMD teve “uma fusão bastante profícua”, graças ao esforço de Samir Amim para reunir em Dakar, em 1970, os pensamentos sociais latino-americano e africano; também é parte deste movimento, o Congresso de Economistas do Terceiro Mundo, em Argel, em 1974. Podem ser acrescentadas ainda as publicações de Kwame Nkrumah (Neocolonialismo: o estágio final do imperialismo, 1965); Walter Rodney (Como a europa subdesenvolveu a África, 1972); e Issa Shivji (Lutas de classes na Tanzânia, 1976).
Theotonio dos Santos registra que na Índia já havia uma longa tradição de crítica anti-imperialista e de formulação de caminhos próprios de desenvolvimento, e que a TMD passou a integrar este repertório analítico, como na obra organizada por Ngo Manh-Lan (Unreal Growth, Critical Studies in Asian Development, 2 vols, Delhi, 1984). Além disso, ela também influenciaria os fóruns internacionais, como a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em Santiago, no Chile, em 1972, e a formulação da Nova Ordem Econômica Internacional.
SUPEREXPLORAÇÃO COMO ESSÊNCIA DA DEPENDÊNCIA
A categoria da superexploração da força de trabalho foi desenvolvida por Ruy Mauro Marini no contexto dos anos 1970. Apesar das transformações na lógica e na dinâmica de acumulação de capital nos últimos 50 anos, tal formulação é ainda relevante para compreender a luta de classes nos países do Sul Global. É importante, no entanto, a reinterpretação desta categoria, considerando os desdobramentos históricos do modelo de desenvolvimento dependente na realidade atual dessas economias. Pensar a superexploração nestes termos só faz sentido se for como uma forma de expressão do processo de produção, acumulação e apropriação de riqueza historicamente determinada no continente.
A superexploração é entendida por Marini (1972) como uma mudança qualitativa na relação social de produção específica da América Latina, combinando de forma complexa três mecanismos de ampliação da expropriação do valor excedente produzido na jornada de trabalho: o prolongamento da jornada do trabalhador/a; a intensificação da jornada, acelerando o processo de produção e o próprio trabalho em si; e a possibilidade de expropriação de parte do trabalho socialmente necessário para a reprodução da classe trabalhadora. Isto é, a superexploração carrega como principal característica o pagamento da força de trabalho regularmente abaixo de seu valor. Trata-se, em outros termos, de uma situação em que os salários médios permanecem constantemente abaixo do valor socialmente necessário para a família trabalhadora reproduzir sua condição de vida e sua capacidade de trabalhar.
Isso se torna possível devido à submissão das economias dependentes à configuração da divisão internacional do trabalho para atender as demandas por matérias-primas e alimentos a baixos custos das economias imperialistas. Marini (2005) caracteriza desta forma a evolução do capitalismo nos países da América Latina com base no rompimento do ciclo de realização do capital nos mercados internos. Dentro das relações de dependência, a economia fica subordinada a uma especialização produtiva voltada à exportação de commodities. Esta especialização produtiva em exportação de produtos primários e de baixa tecnologia incorporada representa a outra face das relações de dependência e cria as condições para o aprofundamento das desigualdades salariais internas e da própria superexploração dos/as trabalhadores/as.
Internamente, nos países dependentes, a superexploração também é um mecanismo de compensação do envio de parte da mais-valia das burguesias locais para os centros do capital, dos quais depende financeira e tecnologicamente. É determinante ainda a existência e manutenção de um gigantesco Exército Industrial de Reserva, que mantenha as reivindicações salariais rebaixadas. Portanto, a superexploração não deve ser compreendida apenas como um aumento do grau de exploração, que seria solucionável com o aumento dos salários nas lutas sindicais, mas sim como uma dinâmica de extração de valor vigente nos países dependentes.
A dependência é apreendida dentro das funções e dos limites estabelecidos no desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção, com o fim de assegurar a reprodução ampliada do capital global em sua totalidade, e da própria dependência em sua especificidade. A acumulação nos centros imperialistas da riqueza produzida na economia global sustenta e é sustentada pelas relações de dependência.
Assim, a superexploração e a dependência são as duas faces da mesma moeda que limitam e mantêm os países dependentes dentro da dinâmica de acumulação do capitalismo em sua totalidade. Desta forma, só podem ser superadas em conjunto: a superação da superexploração da força de trabalho só será possível com a superação da dependência nas relações internacionais do mercado mundial e, portanto, do próprio sistema capitalista de acumulação.
Os economistas indianos Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik (2020) destacam que o “antigo” imperialismo utilizava o Estado colonial para impor a deflação de renda aos trabalhadores da periferia por meio do sistema de tributação colonial e da geração de desemprego. Em sua fase contemporânea, a adoção das cadeias globais de valor permitiu também a formação de um Exército de Reserva Global que atua tanto com a expropriação do campesinato quanto com a deflação de renda imposta, desempenhando ainda um papel global de manter baixo o vetor dos salários em dinheiro em todos os países, inclusive na metrópole. Além da expropriação das terras camponesas e o êxodo rural, políticas de terceirização e precarização do trabalho contribuem para a formação deste Exército global.
Essas colaborações reafirmam a atualidade da TMD, ao mesmo tempo que exigem a revitalização de algumas de suas categorias de análise para compreender os mecanismos de conformação do padrão de acumulação e de dependência, agora sob o jugo do capital fictício, do sistema financeiro e das políticas neoliberais. Mencionemos nesse sentido os esforços teóricos de autores como Jaime Osorio, Claudio Katz, John Smith, Intan Suwandi entre outros.
SUPEREXPLORAÇÃO, QUESTÃO AGRÁRIA E LUTA DE CLASSES NA ATUALIDADE DA AMÉRICA LATINA
Esta compreensão dos caminhos percorridos pela TMD até aqui nos conduz a mudanças específicas nos processos políticos e na luta de classes na América Latina. É a partir da totalidade do sistema que entendemos a atualidade da categoria “superexploração” na análise da dependência das economias latino-americanas.
Como resposta à crise financeira global de 2008, as economias capitalistas atuaram em torno de dois eixos para compensar as perdas e manter inalterável a dinâmica do sistema financeiro: ampliar a exploração do trabalho por meio da redução de direitos trabalhistas e destruir de maneira acelerada os bens comuns da natureza.
Uma das consequências imediatas é o aprofundamento das relações capitalistas na agricultura, assim como das desigualdades entre as grandes empresas transnacionais capitalistas agrícolas e as unidades de produção familiar camponesas.
A polarização desta contradição, em última instância, leva à queda no preço dos produtos agrícolas pagos aos produtores familiares em oposição à tendência de valorização dos preços das commodities. Essa queda também se verifica no preço de suas terras, gerando um processo de constante endividamento e expulsão das famílias camponesas de seus territórios. Ao mesmo tempo ocorre a destruição ampliada da base material de produção de riqueza e o desenvolvimento das forças produtivas em um modelo depredador dos recursos naturais que contrata cada vez menos trabalhadores. Isso aprofunda ainda mais a superexploração da força de trabalho e o esgotamento dos recursos naturais, que são as bases da produção da riqueza social.
Encerram-se, com isso, as limitações impostas por esta lógica de valorização do lucro e das rendas especulativas ao próprio desenvolvimento do sistema capitalista como um todo. Os exemplos aparecem na carteira de investimentos das grandes empresas transnacionais com atuação nos mercados de commodities agrícolas e minerais, nas aquisições e fusões de empresas dos complexos agroalimentares e de grandes fundos de investimentos em terras agrícolas nos países dependentes.
Em sua busca incessante por lucros, os grandes investidores internacionais procuram realizá-los cada vez mais na compra de ativos físicos, de terras a refinarias, abundantes nos países da periferia do sistema, e na especulação nos mercados financeiros em derivativos da produção de commodities e outros ativos financeiros, o que por sua vez influi na própria determinação dos preços das commodities.
A política agrícola neoliberal para os países da América Latina continua priorizando o setor primário exportador, extremamente concentrado e sob o controle de grandes corporações e fundos financeiros de investimentos internacionais. Das exportações do agronegócio brasileiro, 83% estão concentradas em apenas cinco complexos agroindustriais: 46% na produção de soja, 14,3% no setor de carnes, 12,7% nos “produtos florestais”, os monocultivos para as “papeleiras”, 4,5% no complexo sucroalcooleiro e 5,4% na produção de café (MAPA, 2019)
O afluxo de investimentos diretos estrangeiros nos países dependentes da América Latina, sobretudo no Brasil, estabelece assim um eficiente mecanismo de compensação das quedas crescentes das taxas de lucro na crise do capitalismo global. No entanto, a saída que as classes dominantes encontram para a crise acarreta no aprofundamento da sua própria crise existencial. É nessa perspectiva que compreendemos o movimento que vem se dando no Congresso Nacional brasileiro que incide sobre a regulação da aquisição de terras por estrangeiros no Brasil.
Com a prioridade dada ao agronegócio, como carro-chefe da economia agroexportadora brasileira, as políticas e recursos públicos são apropriados crescentemente pelos grandes oligopólios internacionais das cadeias agroalimentares, viabilizando um mecanismo de apropriação crescente da riqueza produzida e aprofundando a dependência econômica e a superexploração da classe trabalhadora na América Latina. Esta lógica orienta as decisões dos grandes jogadores (“global players”) do sistema capitalista sobre os investimentos e pode levar a crise aos extremos da escassez de alimentos e recursos naturais e à própria destruição das condições de existência humana no planeta.
Dados organizados e publicados pela Grain (2012) evidenciam essa expansão da aquisição de terras por estrangeiros nos países da América Latina. o Brasil, por exemplo, 2,9 milhões de hectares de terras foram adquiridas por pessoas jurídicas estrangeiras. Desse total, 30,9% estão nas mãos de empresas do setor financeiro, somando um total de 907 mil hectares. Outros 65,4% são controlados por empresas do agronegócio e agroindústria, evidenciando a articulação entre os capitais financeiro e agrário no processo de financeirização do capitalismo atual. A maior parte destes capitais vêm de empresas transnacionais com sede nos Estados Unidos, controlando 35,4% das aquisições de terras agrícolas no Brasil.
Segundo o relatório do Banco de dados da luta pela terra (Dataluta, 2020), o número de propriedades de empresas de capital internacional do agronegócio de exploração de recursos naturais está concentrado nas empresas “papeleiras”, que somaram 1.402 propriedades adquiridas entre 2013 e 2018. A remessa permanente de lucros e dividendos aos países de origem destes capitais amplia o processo de valorização e apropriação crescente da riqueza produzida nessas terras e de seus recursos naturais. O que coloca os grandes oligopólios transnacionais de papel e celulose no centro da luta de classes e da questão agrária nos nossos territórios.
As classes dominantes dos países de economias dependentes se subordinam, assim, aos interesses dos países imperialistas e de suas grandes corporações transnacionais, que cada vez mais orientam seus investimentos às terras e recursos naturais da América Latina. Podemos notar, na atualidade, o reflexo desta reorientação das classes dominantes ainda mais dependentes e subordinadas ao imperialismo dos EUA pela retirada de recursos e esvaziamento das políticas públicas para a reforma agrária e a agricultura familiar.
Tomando como exemplo a Lei Orçamentária Anual (LOA) do governo Jair Bolsonaro em 2020, os efeitos são evidentes: os cortes de recursos para a reforma agrária foram expressivos em todas as áreas, somando 71% de redução para aquisição de terras para reforma agrária, 63% para assistência técnica, 62% para promoção de educação do campo, 61% para monitoramento de conflitos agrários e pacificação no campo e 52% para fiscalização ambiental e prevenção e combate a incêndios florestais (Bragon, 2020).
Considerações finais
A partir de todo este cenário apresentado, podemos dizer que a luta pela reforma agrária, em sua relação essencial com a luta pela terra e na terra, deixa de apresentar o caráter reformista das reformas agrárias clássicas implementadas nos processos de revolução burguesa e passa a ter um forte caráter revolucionário de contraposição aos mecanismos de poder e superexploração estabelecidos no capitalismo dependente.
Frente à violência institucionalizada contra qualquer alteração do status quo, em que as classes dominantes se inserem de forma privilegiada, qualquer forma de ação de resistência dos movimentos sociais populares exige a combinação de amplas frentes de luta a partir das possibilidades de avanços democráticos dentro da ordem burguesa e de ações contra esta ordem.
Para tanto, pela análise da TMD, as transformações necessárias somente seriam possíveis transgredindo a lógica imposta pela financeirização do capitalismo globalizado. O que nos remete à construção de uma revolução contra esta ordem como estratégia e desafio para a classe trabalhadora do campo e da cidade.
Reafirmamos, com isso, a importância da TMD como instrumento científico para tecermos reflexões e apontar ações em torno das questões e mudanças com o avanço da financeirização do capital e sua crise contemporânea, sobretudo sobre os países latino-americanos. Justifica-se, assim, revisitarmos o debate da TMD, na historicidade e na atualidade da elaboração, relacionadas dialeticamente ao momento em que vivemos da luta de classes no Brasil, na América Latina e no mundo.
Créditos das imagens
As ilustrações deste dossiê trazem adaptações visuais de capas de livros e revistas, incluindo:
- Marini, Ruy Mauro. “Dialética da dependência” e outros escritos. Roberta Traspadini e João Pedro Stedile (orgs.). São Paulo: Expressão Popular, 2005.
- Dos Santos, Theotônio. Imperialismo y dependencia. Caracas: Fundação Biblioteca Ayacucho, 2011.
- Rodney, Walter. How Europe Underdeveloped Africa. New York and London: Verso, 2018.
- Shivji, Issa. Class Struggles in Tanzania. New York and London: Monthly Review Press, 1976.
- Katz, Claudio. La teoría de la dependencia, cincuenta años después. Buenos Aires: Editorial Batalla de Ideas, 2019.
Referências
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DATALUTA-Banco de Dados da Luta pela Terra. Relatório BRASIL 2020. Presidente Prudente (SP), UNESP, 2020.
DOS SANTOS, Theotonio. Imperialismo y dependencia. Caracas: Biblioteca Ayacucho de Clásicos Políticos da América Latina; Banco Central de Venezuela, 2012.
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FURNO, Juliane. Imperialismo: uma introdução econômica. Rio de Janeiro, Da Vinci livros, 2022.
GRAIN, Acaparamiento de tierras. GRAIN Organização Internacional, 2012. Disponível em: https://grain.org/media/W1siZiIsIjIwMTIvMDMvMjMvMDVfMjNfMThfMzcyX0dSQUlOX0FjYXBhcmFtaWVudG9fZGVfdGllcnJhcy5wZGYiXV0.
MARINI, Ruy Mauro. “Dialéctica de la dependencia: la economía exportadora”. Sociedad y Desarollo, n. 1, p. 35-51, 1972.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro (org.). Ruy Mauro Marini – vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 137-180.
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Manh-Lan, Ngo, ed. Unreal Growth: Critical Studies in Asian Development. Volume 1 & 2. New Delhi: Hindustan Publishing Corporation Press, 1984.
MOREIRA, Renata Couto e MENDONÇA, Luiz Jorge. Dependência, questão agrária e lutas sociais na América Latina. São Paulo: Expressão Popular, 2022
PATNAIK, Utsa e PATNAI, Prabhat. Imperialismo na era da globalização. In: LÓPEZ, Emiliano (org). As veias do sul continuam abertas: Debates sobre o imperialismo do nosso tempo. São Paulo, Expressão Popular, 2020. P.14-51.
https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/