Não só permanecer vivo, mas permanecer humano: uma entrevista com Pavel Égüez

Pavel Égüez, Cuarantena / ‘Quarentena’, 2020.

Pavel Égüez, Cuarantena / ‘Quarentena’, 2020.

Encostado na parede da sala de um amigo está uma reprodução de uma pintura do revolucionário cubano Fidel Castro. Meus olhos se voltam continuamente para ele durante mais uma chamada de videoconferência. Sobre a tinta preta, no canto inferior direito, estão as palavras:

A Fidel en sus 70 años
con la admiracion de 
siempre. 
Guayasamín

[Para Fidel em seus 70 anos
com a admiração de
sempre.
Guayasamin]

Oswaldo Guayasamín, Fidel Castro, 1996.

Oswaldo Guayasamín, Fidel Castro, 1996.

Esse seria o quarto e último retrato que o pintor indígena equatoriano Oswaldo Guayasamín (1919-1999) pintaria de Fidel durante uma amizade de décadas. Em vez da barba e sobrancelhas características de Fidel, a pintura chama a atenção para as duas mãos em concha, em direção ao céu. É uma oferta ampla e um pouco frágil, como se dissesse: yo vengo a ofrecer mi corazón [eu venho oferecer meu coração].

Essas mãos são surpreendentemente semelhantes às que sustentam o sol e a lua no mural central do edifício da Assembleia Nacional do Equador. O Mural de la Patria (Mural da Pátria), inaugurado em 1988, destaca a longa luta do país em direção à libertação nacional, na qual povos indígenas, mulheres, camponeses e lideranças da classe trabalhadora encamparam a luta contra os males do colonialismo, da ditadura militar e da intervenção imperialista. Se olharmos atentamente, à esquerda do painel está impressa a palavra “CIA” em letras maiúsculas claras no capacete de um soldado nazista. Acima está escrito pátria. À esquerda estão três mulheres, incluindo a líder indígena Dolores Cacuango e a revolucionária Manuela Sáenz, que ganhou o nome de “libertadora do libertador” depois de salvar a vida de Simón Bolívar. Pintado em painéis de fibra de vidro com uma mistura de tinta acrílica e pó de mármore, “é uma pintura feita para durar mil anos”, disse Guayasamín.

 

Oswaldo Guayasamín, Mural de la Patria / ‘Mural of the homeland’, National Assembly of Ecuador, 1988.

Oswaldo Guayasamín, Mural de la Patria/“Mural da Pátria”, Assembleia Nacional do Equador, 1988

 

Trabalhando ao lado de Guayasamín no mural estava Pavel Égüez, na época estudante de arte. Égüez bateu à porta do grande muralista equatoriano; logo depois, eles começariam a realizar projetos juntos. No ano passado, no centenário do nascimento de Guayasamín, Égüez escreveu: “Eu o conhecia, trabalhei com ele em várias ocasiões. Ele nos deixou um grande legado: sua paixão pela pintura, uma vida dedicada à arte e seu compromisso com causas justas para a humanidade”. Esse compromisso com as “justas causas da humanidade” é o que o próprio Égüez defendeu nas últimas três décadas, desde que o Mural de la Patria foi concluído.

Égüez é um pintor, muralista e humanista latino-americano cuja obra carrega os gritos e aspirações do povo das Américas. O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social se reuniu com Égüez em seu segundo mês de quarentena para falar sobre a situação no Equador e sua nova série de pinturas, Cuarantena [Quarentena]. Ele convida os artistas a refletirem e participarem das lutas do povo, e fala sobre o que significa não apenas permanecer vivo, mas permanecer humano.

 

Almoço na relva

 

Pavel Égüez, Cuarantena / ‘Quarantine’, 2020.

Pavel Égüez, Cuarantena/Quarantena, 2020.

 

Égüez começou a falar sobre a dupla crise econômica e do sistema de saúde no Equador, um pequeno país que se tornou um dos mais atingidos pela Covid-19 na América Latina. No início de junho havia mais de 44 mil casos confirmados e 3.700 mortes (o que se soma às milhares de “mortes prováveis” que não tiveram o diagnóstico confirmado). Em meados de maio, o primeiro caso foi confirmado em uma das comunidades indígenas amazônicas remotas do povo Waorani, ao qual se soma a outros 20 mil indígenas infectados na região amazônica, que abrange oito países. Quase 60% dos casos do Equador estão concentrados na principal cidade portuária de Guayaquil, uma vez caracterizada pelo governo local como uma “cidade modelo”. Mas Égüez sabe profundamente que os males revelados pela pandemia global não são uma causa, mas um sintoma do que ele chama de “crise civilizacional”, uma “tragédia na ordem política da globalização e do capitalismo”.

“Esta crise também mostra que o modelo de 30 anos de governo de direita em Guayaquil é um fracasso total – criou uma sociedade altamente desigual”. A cidade densamente povoada é uma das mais desiguais em um país com uma taxa de pobreza de 25%. Muitos de seus moradores estão precarizados ou desempregados e boa parte ganha o suficiente para sobreviver àquele dia, o que significa que ordens de permanência em casa não podem ser obedecidas. O governo está envolvido em escândalos de corrupção, e os alimentos sendo vendidos a preços vertiginosos, assim como suprimentos médicos e outros bens essenciais (máscaras custam 12 dólares e bolsas para corpos, 148 dólares). “Talvez o governo aproveite a situação e implemente uma série de políticas neoliberais”, diz ele, referindo-se à Lei Orgânica de Apoio Humanitário e Lei Orgânica de Regulação das Finanças Públicas, adotada pelo governo do presidente Lenín Moreno. Aprovadas de forma ofensiva em resposta à pandemia, essas leis impuseram medidas de austeridade, reduzindo ainda mais a seguridade social e os direitos trabalhistas no meio da crise.

Diante dessa calamidade, Égüez assiste, testemunha. Quando falamos no início de maio, na sexta semana de quarentena de Égüez, ele havia criado quarenta pinturas a óleo, parte da série Cuarantena. São retratos assustadores feitos em papelão, em preto, branco e cinza – um forte contraste com as paletas vívidas de seu trabalho mais conhecido. “Todos eles estão nas sombras para retratar a sensação de que, mesmo estando protegidos em nossas casas, não podemos parar de observar o sofrimento das pessoas. Elas não têm nada para comer, e as condições em que vivem não permitem quarentena. Você deve olhar através dos olhos que [o revolucionário cubano José] Martí tinha em relação ao mundo, em relação àqueles que mais precisam, os pobres”. Em um tom consolador, ele acrescenta: “Com esta série, de alguma forma, sofro um pouco menos”.

 

Pavel Égüez, Almuerzo sobre la hierba / ‘Luncheon on the Grass’, 2020.

Pavel Égüez, Almuerzo sobre la hierba/Almoço na relva, 2020.

Cuarantena encontra seu equilíbrio com outra série mais privada da obra de Érgüez em cores – suas interpretações de Almoço na relva, de Édouard Manet (1863). A pintura pré-impressionista francesa original apresenta dois homens totalmente vestidos em um piquenique com uma mulher nua, modelada pela colega pintora Victorine Meurent. O Almoço na relva chocou os espectadores da época por seu conteúdo e estilo ousado, foi rejeitado pela exposição Salon e desde então tem sido objeto de inúmeras interpretações feministas. Por que ela estava nua e o que seu olhar franco significava? Como muitas mulheres e artistas da classe trabalhadora, Meurent mal chegou às notas de rodapé da história da arte. Por meio dessa pintura agora canônica, no entanto, ela continua a existir. Em sua luminosidade brilhante e seu olhar desafiador, ela está sendo observada, mas está olhando de volta para nós. Para Égüez, é uma metáfora e um pedido de esperança. “Quando você está trancado, a única coisa que resta é pensar nesse almoço na relva”.

 

Édouard Manet, Le Déjeuner sur l’herbe / ‘Luncheon on the Grass’, 1863.

Édouard Manet, Almoço na relva, 1863.

 

Artistas conquistam nosso olhar através da criação

 

Pavel Égüez, Grito de la Memoria / ‘Scream of the excluded’, Quito, 2014.

Pavel Égüez, Grito de la Memoria / Grito da memória, Quito, 2014.

“É hora de um trabalho mais intimista. É hora de pensar nesse momento histórico”, comenta Égüez sobre suas pinturas feitas na quarentena. Elas contrastam com o trabalho dele como muralista, que normalmente fica nas ruas e tem escala arquitetônica. Um de seus principais murais é o Grito da Memória, de 340 metros de largura (2014), em Quito, uma homenagem de azulejos de cerâmica à importância da esfera pública. Seus murais privilegiam os espaços públicos em detrimento dos comerciais ou privados. Ele defende o acesso à arte pública da mesma forma que defende o setor público, que acredita ser vital no combate à crise de saúde global.

O Grito da Memória carrega consigo a grande tradição muralista latino-americana – Rivera, Siqueiros, Orozco, Guayasamín, Portinari – que começou com a Revolução Mexicana de 1910. Nascido da luta por terra e liberdade, o muralismo mexicano inspirou um movimento de descolonização da arte e da cultura. Para Égüez, segundo a história colonial da América Latina, não apenas os assuntos sociais e políticos foram excluídos – até a paisagem foi excluída da arte. Tudo foi sequestrado. “Se não descolonizarmos a cultura, não teremos outra maneira de ver. Temos que conquistar nosso próprio olhar, e os artistas conquistam seu próprio olhar através da criação”.

 

O povo em luta mostra o caminho aos artistas

 

Pavel Égüez, La Patria Naciendo de la Ternura / ‘The Nation Being Born of Tenderness’, Caracas, Venzuela, 2006.

Pavel Égüez, La Patria Naciendo de la Ternura/A pátria nascendo da ternura, Caracas, Venezuela, 2006.

 

Na busca de uma nova maneira de ver – uma estética do povo – Égüez destaca o protagonismo dos movimentos sociais: “Você não pode falar do ‘popular’ sem levantar as bandeiras do povo, as ideias-chave sendo a luta pela terra e identidade, e a recuperação da história e das culturas indígenas que foram apagadas”. Nos murais de Égüez, é exatamente isso que encontramos – os excluídos se tornam os protagonistas e os que trabalham se tornam os donos de suas capacidades. Nas palavras do pintor, “o povo em luta mostra o caminho aos artistas; os artistas seguem seu caminho quando o povo abre as fronteiras”.

“Cuba abriu um novo caminho para nós, assim como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”, diz Égüez sobre o movimento popular brasileiro. Sob a bandeira da luta pela terra, reforma agrária e transformação social, “o MST emergiu como um dos primeiros movimentos preocupados com questões-chave, como soberania alimentar, defesa da terra e combate ao grande capital, ao agronegócio, e contra a distribuição desigual da terra”, explicou.

Égüez tem uma lição para artistas de todo o mundo: junte-se a movimentos sociais. Afinal, ele acrescenta, “movimentos sociais constroem uma tese para o futuro”, e as ideias e reivindicações que emergem dos movimentos são o que pode “potencializar a arte”. Égüez coloca essa teoria em prática, como demonstrado pela arte que disponibiliza online: Migrantes, Dictadura nunca más, Ele não, Ayotizinapa, Xenofobia, Free Assange, 8 de Marzo, Venezuela. Essas são apenas algumas das lutas das pessoas que compõem seu corpo de trabalho, com mais de 10 mil peças criadas a serviço dos movimentos sociais.

 

Não permanecer vivo, mas permanecer humano

Na série Cuarentena, Pavel Égüez inclui uma citação do romance distópico de George Orwell, 1984, publicado pela primeira vez em 1949: “O objetivo não era permanecer vivo, mas permanecer humano”. Égüez elabora essa citação: “O que o capitalismo nos mostrou nesta crise é sua maneira desumana de enfrentar a crise (…) Ser humano é viver juntos, cuidar um do outro, o Estado cuidar do povo e de nossa cultura – o que o neoliberalismo fracassou em fazer. Precisamos de um modelo diferente, onde possamos ser humanos”. Precisamos de uma cultura popular que possa nos conduzir a esse momento histórico mundial e abrir um novo caminho para a vida.

No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, construímos uma rede de artistas alinhados ao movimento em conjunto com a plataforma política internacional da Assembleia Internacional dos Povos. Lançamos a primeira convocatória para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas. Essa série de quatro exposições online nos próximos meses servirá como instrumentos culturais para animar e aprofundar o processo político da Semana Internacional da Luta Anti-Imperialista, uma plataforma política que emergiu de centenas de movimentos, organizações políticas e redes de pessoas de todo o mundo. A próxima convocatória para inscrições terá como tema o neoliberalismo.

Convidamos você a contribuir com sua arte para esse processo.
Esperamos que você possa se junte a nós.
Esperamos reencontrar, na luta, onde possamos mais uma vez fazer almoços na grama, como seres humanos.

 

Abertura da “I Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas: Capitalismo

 


 

Tings Chak é designer-chefe do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Pavel Égüez é um conhecido artista, pintor, ilustrador e muralista latino-americano. Foi Conselheiro Cultural do Equador na Embaixada do Equador no Brasil e na Venezuela. Sua ampla trajetória artística pode ser resumida por dezenas de murais e exposições em países da América Latina e Europa.