A Educação Política para a Libertação na Guiné-Bissau entre 1963-1974

Um professor escreve na lousa em uma escola do PAIGC nas zonas liberadas nas florestas da Guiné em 1974.
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

[…] seja em Cabo Verde, seja em qualquer outra parte do mundo, a educação constitui a base fundamental em que deve assentar o trabalho de emancipação de cada ser humano, da conscientização do Homem, não em função das necessidades e conveniências individuais, ou de classe, mas, sim, relativamente ao meio em que vive, às necessidades da colectividade e aos problemas da Humanidade em geral. […] Hoje a educação visa o objectivo da realização plena do Homem, sem distinção de raças ou de origens, como um consciente e inteligente, útil e progressivo, integrado ao mundo e seu meio (geográfico, econômico e social), sem qualquer tipo de sujeição. Para isso e por isso, a questão da educação não pode ser tratada separadamente da questão econômica-social […]

– Amílcar Cabral, 1951

 

A child's drawing made at a school in the liberated area of Candjambary, 1974. Source: Roel Coutinho, Guinea-Bissau and Senegal Photographs (1973–1974)

Um desenho de uma criança feito em uma escola na zona liberada de Candjamari em 1974.
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

A luta do The PAIGC por libertação

A luta de libertação contra o colonialismo, para ser uma luta de libertação total, não se dá apenas pela conquista política do território (a chamada “independência de bandeira”); é uma luta para libertar o povo dos tentáculos do colonialismo. A luta de libertação é um fenômeno social e político que ganha força quando os colonizados se organizam para reivindicar sua soberania política e econômica e para desmantelar e destruir as instituições que dominam seu próprio senso de si e sua capacidade de controlar os frutos de seu trabalho. A luta de libertação emprega – em diferentes momentos – uma série de meios para acabar com a dominação colonial, desde a luta armada até as greves econômicas, projetos educacionais, programas e resistência cultural.

Foi neste contexto de colonialismo e opressão e através do processo de tomada de consciência destas estruturas que o Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) foi criado, em setembro de 1956. Fundado por um grupo de anticolonialistas militantes, principalmente da Guiné-Bissau e Cabo Verde, a Geração Cabral – em homenagem ao líder anticolonial guineense Amílcar Cabral – surgiu para liderar a luta pela libertação do colonialismo português.

Nascido na Guiné-Bissau e com uma extensa rede diaspórica, o PAIGC surgiu de uma longa tradição de resistência na Guiné-Bissau, Cabo Verde e Portugal. Numa luta que durou de 1903 a 1936, o povo guineense se revoltou contra o “imposto da palhota”, um tributo que incidia sobre as casas e que, em toda a África colonial, era usado para obrigar as pessoas ao trabalho assalariado. No caso das ilhas cabo-verdianas, uma significativa revolta camponesa, conhecida como a Revolta do Ribeirão Manuel (1910), se posicionou contra as deploráveis ​​condições de subsistência no campo. Em Lisboa, o centro político do colonialismo português, o descontentamento aumentou – particularmente após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – entre os estudantes africanos mais politicamente organizados que vieram de territórios colonizados para fazer estudos universitários em Portugal. A partir da Casa dos Estudantes do Império, criada pelo Estado, os estudantes africanos criaram o Centro de Estudos Africanos. A curiosidade política dos estudantes encontrou expressão em grupos de estudos clandestinos acolhidos na casa particular da família Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe. A casa tornou-se um centro onde o pensamento crítico em torno da independência e libertação nacional começou a surgir. Amílcar Cabral (1924-1973), que na época estudava agronomia em Lisboa, emergiu dessas experiências para liderar lutas na Guiné-Bissau e Cabo Verde e tornou-se um dos mais influentes líderes anticoloniais da libertação africana. Herdando os resultados coletivos dessas rebeliões políticas e intelectuais, os jovens africanos descobriram a missão de sua geração: lutar pela independência da África do colonialismo. Mais tarde, em uma narrativa ficcional que delineava o caminho percorrido por esses grupos de jovens e seus anseios de libertação, o escritor angolano Pepetela os descreveria como “a geração da utopia”.

Em 1961, seis anos após a criação do PAIGC, e após várias tentativas de negociação da independência com o regime colonial português, o Partido iniciou oficialmente uma luta armada de libertação em nome da independência total. Liderada de dentro dos territórios florestais da Guiné-Bissau, a guerrilha durou de 23 de janeiro de 1963 até abril de 1974. Em 24 de setembro de 1973, desafiando o domínio colonial português e a diplomacia internacional, o PAIGC declarou a independência da Guiné-Bissau, que só foi oficialmente reconhecida pelo governo português em 10 de setembro de 1974.

O objetivo da luta do PAIGC era muito claro: independência e libertação de dois territórios colonizados, Guiné-Bissau e Cabo Verde, que estavam ligados política e culturalmente pelos desenvolvimentos históricos do colonialismo. Para conquistá-la, o PAIGC procurou:

  1. Derrubar as instituições coloniais de opressão e exploração, e
  2. Criar um projeto de reconstrução nacional para buscar a libertação econômica, política e social do povo. Esse projeto combateria os resíduos tóxicos deixados pelas estruturas coloniais nos corpos e mentes das pessoas.

Esses objetivos foram aprofundados no Programa Maior do Partido, composto por nove seções. A primeira seção exigia a “independência nacional total e incondicional do povo da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde, o fim de todas as relações colonialistas ou imperialistas […] a revisão ou revogação de todos os acordos, tratados, alianças e concessões feitas pelo colonialista português”. A segunda e terceira seções defendiam a “unidade econômica, política, social e cultural” nacional, enfatizando a união entre Guiné-Bissau e Cabo Verde para a “construção de uma nação africana forte e progressista, com base na vontade popular devidamente consultada”. A quarta seção complementou essas duas últimas, defendendo a unidade africana. A quinta seção incidiu sobre que tipo de governo implementar nos territórios após a independência, ou seja, um governo que fosse  “democrático, anticolonialista e anti-imperialista” e comprometido com o princípio de que todos os cidadãos seriam iguais “perante a lei, sem distinção quanto à nacionalidade ou grupo étnico, sexo, origem social, nível cultural, profissão, posição, riqueza, crença religiosa ou convicção filosófica”. A sexta seção enfocou a independência econômica, uma economia estruturada e o desenvolvimento da produção “regida pelos princípios do socialismo democrático”; a sétima seção sobre “justiça e progresso” nos níveis social, educacional e cultural; e a oitava seção sobre defesa nacional e como ela estava “ligada ao povo e dirigida por cidadãos nacionais”. Finalmente, a nona seção explicou como a política internacional pretendia ser desenvolvida “no interesse da nação, da África e da paz e do progresso da humanidade”.

Para cumprir os objetivos do movimento e colocar em prática o programa e as estratégias de libertação, era preciso estar pronto para enfrentar obstáculos significativos. A maioria da população estava passando por grandes níveis de empobrecimento e subdesenvolvimento, manifestados em altas taxas de mortalidade infantil, fomes cíclicas, altos percentuais de analfabetismo, falta de infraestrutura e serviços públicos,  setores industriais subdesenvolvidos ou inexistentes. Em um discurso proferido em uma assembleia em Londres, em outubro de 1971, Amílcar Cabral explicou a triste situação:

a falta de proteínas e de muitos alimentos básicos impede o desenvolvimento do nosso povo. Em algumas regiões, houve uma taxa de mortalidade infantil de 80%. Ao longo da época áurea do colonialismo português tínhamos apenas dois hospitais com um total de 300 camas em todo o país e apenas 18 médicos, 12 deles em Bissau.

Quanto às escolas, eram apenas 45, e eram escolas missionárias católicas, ensinando apenas o catecismo. Havia 11 escolas oficiais para crianças assimiladas. Não havia escolas secundárias na [Guiné-Bissau] até 1959; agora existe uma. […] Havia apenas 2 mil crianças nas escolas em todo o país. E você pode imaginar o tipo de ensino. Foi uma decisão deliberada para impedir o desenvolvimento do nosso povo, tal como fizeram em Angola, Moçambique e outras colônias.

O caminho para a libertação exigia uma liderança que vivesse as palavras frequentemente citadas por Cabral: “Não conte mentiras… não reivindique vitórias fáceis”. Assim, na busca da libertação nacional, o PAIGC se deparou com a tarefa de recriar os processos, estruturas e espaços que pudessem começar a atender às necessidades materiais do povo e às necessidades da luta política. Investir na educação tornou-se um pilar fundamental da luta de libertação, nos níveis de resistência política, econômica, cultural e armada. Combatendo o analfabetismo, o medo e a ignorância, a educação se tornaria o meio pelo qual o povo africano poderia começar a reivindicar e recuperar suas vozes e emergir como membros politicamente conscientes e ativos da sociedade, tanto dentro de seu país quanto no curso da história mundial.

 

A student at a PAIGC semi-boarding primary school in the Sárà region reviews the mathematics textbook for grade one, produced for the Mozambique Liberation Front (FRELIMO) by Joachim Kindler and financed by the German Democratic Republic (DDR) under the International Solidarity Committee, 1974. Source: Roel Coutinho, Guinea-Bissau and Senegal Photographs (1973–1974)

Um estudante de uma escola primária de regime de semi-internato do PAIGC na região de Sárà revisa o livro de matemática para o primeiro grau, produzido para a Frelimo por Joachim Kindler e financiado pela República Democrática Alemã (RDA) no marco do Comitê Internacional de Solidariedade em 1974.
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

O projeto educacional do PAIGC

O primeiro Congresso do PAIGC, conhecido como Congresso de Cassacá, ocorreu entre 13 e 17 de fevereiro de 1964 na área liberada do sul das florestas guineenses. As “áreas libertadas” ou “zonas libertadas” (termos frequentemente usados nos escritos do Partido) eram os principais territórios sob controle da organização; aqui, o acesso ou influência portuguesa era muito limitado e praticamente inexistente. Em 1971, dois terços do país eram governados pelo PAIGC. Nesses territórios, o Partido desenvolveu os primórdios de um Estado revolucionário, que priorizava fornecer aos habitantes serviços básicos centrados nas pessoas, como saúde, órgãos judiciais, educação e pequeno comércio. Essas áreas libertadas desempenharam uma função política essencial na luta de libertação.

Um resultado chave do Congresso foi a reorganização política e militar do Partido. Isso gerou uma importante reestruturação no que diz respeito a:

  • o reforço do poder popular;
  • a regulamentação das atividades econômicas, administrativas, judiciais, educacionais e assistenciais nas áreas liberadas; e
  • a criação das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), que incluía os grupos guerrilheiros, exército popular e milícia popular.

Entre as resoluções que saíram do Congresso estava a necessidade de aprimorar o conhecimento. Isso se deu com a criação de escolas, com o investimento na educação de adultos e jovens e com o incentivo aos indivíduos a investirem em sua própria educação para o aperfeiçoamento dos quadros do Partido. Nas diretrizes que Cabral redigiu para o Congresso, ficou destacado como, para “continuar o desenvolvimento vitorioso de nossa luta”, o PAIGC precisaria:

Criar escolas e desenvolver a instrução em todas as áreas libertadas. […] Melhorar o trabalho nas escolas existentes, evitar um número muito elevado de alunos que pode prejudicar o aproveitamento de todos. Criar escolas, mas ter em conta as possibilidades reais para evitar que depois tenhamos que fechar algumas escolas por falta de meios. […] Criar cursos especiais para formação e aperfeiçoamento de professores […] Criar cursos para ensinar a ler e a escrever aos adultos, sejam eles combatentes ou elementos da população. […] Criar, a pouco e pouco, bibliotecas simples nas zonas e regiões libertadas, emprestar aos outros os livros a que dispomos, ajudar outros a aprender a ler um livro, o jornal e a compreender aquilo que se lê.

A criação de uma consciência nacional sobre o colonialismo português e a necessidade de lutar pela independência e reconstrução nacional sob a égide de uma identidade guineense pluralista mas singular foi um obstáculo significativo que o Partido teve de enfrentar no início da luta, em que o projeto de educação do PAIGC desempenhou um papel fundamental.

Desenvolver campanhas de mobilização para popularizar as diretrizes partidárias do Congresso de Cassacá tornou-se um processo importante para a educação da população em geral, bem como para a formação dentro das estruturas organizativas do Partido. Através do trabalho do Comissário Político, essas campanhas tornaram-se uma atividade significativa para o Partido. As diretrizes do Congresso convidavam os militantes do PAIGC a “distribuir ao máximo o jornal do Partido, realizar sessões de leitura coletiva (em grupo) e levar os que leem a discutir e a dar opinião sobre o que leram”.

Sob a sombra dos manguezais, foram realizadas sessões abertas com a população em geral. A campanha de mobilização concentrou-se em dialogar sobre os aspectos práticos da vida cotidiana sob o domínio colonial português. Em janeiro de 1969, durante uma entrevista gravada na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colônias Portuguesas e da África Austral, em Cartum, Cabral partilhou o conteúdo dessas conversas e os objetivos que pretendiam atingir:

Não podíamos mobilizar as pessoas dizendo-lhes “a terra deve pertencer a quem trabalha” porque aqui a terra não falta. Há toda terra a que se precisa. Era pois necessário encontrar formas apropriadas para mobilizar nossos camponeses, em vez de usar termos que nossa gente não podia ainda compreender. Nunca mobilizamos as pessoas com base na luta contra o colonialismo. Isso não dava nada. Falar da luta contra o imperialismo não dava nada entre nós.

Em vez disso, falamos uma linguagem direta e acessível a todos: ‘Por que lutamos nós? Quem és tu? Quem é teu pai? O que é que lhe aconteceu ao teu pai, até agora? O que é que se passa? Qual é a situação? Já pagaste os teus impostos? O teu pai já pagou os seus impostos? O que é que já viste desses impostos? Quanto ganhas com o teu cânhamo? Já pensaste no que lucras com teu cânhamo? E o trabalho que ele custou à tua família? Quem é que já esteve preso? Tu já estiveste preso?

É com esta base que se faz a mobilização.

Vais trabalhar na estrada. Quem te dá a ferramenta para trabalhar? És tu que a das. Quem te dá a comida? És tu que a das. Mas quem anda pela estrada? Quem tem um carro? E a tua filha que foi violada por fulano – achas isso bem?

O significado e o impacto do colonialismo precisavam ressoar com as pessoas no nível mais pessoal de suas vidas diárias. As sessões abertas pretendiam conscientizar as pessoas sobre o que estava acontecendo com elas em suas terras e foram cruciais para as campanhas de mobilização do PAIGC e para o desenvolvimento inicial da formação política, também conhecida como “formação militante”.

Tais conversas com a população e o investimento mais amplo em educação contribuíram para o objetivo maior do Partido de “combater, sem violência, práticas nocivas, os aspectos negativos das crenças e tradições de nosso povo […] combater todos os particularismos (manias de separação) prejudiciais à unidade do povo, todas as manifestações de tribalismo, de discriminação racial ou religiosa”. As sessões contribuíram não apenas para aumentar e solidificar a consciência das pessoas sobre a luta, mas também para o estabelecimento de estruturas administrativas, políticas, jurídicas, econômicas e sociais nas áreas libertadas. Essas estruturas e processos promoveram uma grande mudança na vida das pessoas e foram cruciais para reforçar o desenvolvimento político de sua consciência. Como Cabral observou nas diretrizes do Congresso:

O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais, para poder viver em paz e melhor, para ver sua vida progredir e garantir o futuro de seus filhos. Libertação nacional, luta contra o colonialismo, construção da paz e do progresso – independência – tudo isso são coisas vazias e sem significado para o povo, se não se traduzem por uma real melhoria das condições de vida. De nada serve libertar uma região se o povo dessa região fica sem poder ter os artigos de primeira necessidade para sua vida.

 

A student uses a microscope during a PAIGC medical consultation in a college in Campada, 1973. Source: Roel Coutinho, Guinea-Bissau and Senegal Photographs (1973–1974)

Um estudante utiliza um microscópio em uma consulta medida do PAIGC no colégio de Campada em 1973. Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

Escolas do PAIGC nas áreas libertadas

Sob a palavra de ordem “todos os que sabem devem ensinar aos que não sabem”, o PAIGC desenvolveu dois projetos educativos simultâneos, um para adultos e outro para jovens. Os objetivos subjacentes do desenvolvimento de sistemas educacionais nas áreas libertadas eram “destruir na nossa resistência, tudo quanto faça da nossa gente cachorros – homens ou mulheres – para deixarmos avançar, crescer, levantar, como as flores na nossa terra tudo quanto possa fazer da nossa gente seres humanos de valor”.

Entre 1963 e 1972, o PAIGC desenvolveu instalações educacionais para três grupos: jovens, adultos e guerrilheiros. Iniciativas educativas para adultos e guerrilheiros vinham sendo realizadas desde o trabalho de mobilização dos primeiros anos, mas foram fortalecidas e institucionalizadas nesse período com a criação de infraestrutura escolar e educacional. Escolas de Tabanca (em vilarejos) e internatos foram construídos em áreas libertadas, com exceção de dois internatos localizados em países vizinhos: a Escola Piloto, na República da Guiné, e a Escola Teranga, na República do Senegal.

As escolas do PAIGC no exterior eram coordenadas pelo Instituto Amizade, criado pelo Partido em 1965, com representações permanentes em Conacri e Dacar. Os estatutos do instituto descrevem a organização como não política e com “fins humanitários”, trabalhando em estreita colaboração com o departamento de educação das áreas libertadas da Guiné-Bissau. Funcionava, portanto, como uma “espécie de esboço de um Ministério da Educação” dentro da estrutura do Partido. O instituto coordenou todos os aspectos decorrentes das diretrizes do Partido, desde a gestão das escolas até o desenvolvimento de currículos e materiais, passando pela gestão e distribuição de bolsas no exterior. Durante a luta de libertação, o PAIGC recebeu bolsas de estudo de países como Bulgária, Tchecoslováquia, Cuba, Hungria, Iugoslávia, República Democrática Alemã, Romênia, Estados Unidos e União Soviética. O instituto também era responsável por organizar e coordenar seminários para adultos, treinar quadros, educar trabalhadores do serviço social, como professores, e acompanhar o “rápido crescimento da vida escolar durante a luta de libertação”.

As estruturas educativas centrais do PAIGC foram desenvolvidas por meio de campanhas de mobilização mais amplas e processos educativos para crianças e jovens coordenados pelo Instituto Amizade. Havia também um grupo de instalações para adultos: Lar Sami em Ziguinchor e Lar de Dakar na República do Senegal, bem como o Lar do Bonfim (também conhecido como Lar de Conacri) na República da Guiné. Eram centros multifuncionais que serviam como escritórios de representação do Partido para funções administrativas e políticas, pequenos hospitais e centros de recuperação para os feridos na luta armada e espaços educativos que ofereciam programas de alfabetização e cursos de educação política para aqueles que estavam se recuperando de ferimentos. Em 1966, o Partido criou dois outros espaços para a população adulta e militar: o Centro de Reciclagem e Aperfeiçoamento de Professores e o Centro de Instrução Política e Militar de Madina do Boé. Em 1964-65, o sistema educacional do PAIGC tinha 50 escolas com 4 mil alunos no total nas áreas libertadas; isso aumentou para 127 escolas com 13.361 alunos e 191 professores em 1965-66, e para 159 escolas com 14.386 alunos e 220 professores em 1966-67. Em um relatório de 1973 sobre o desenvolvimento do sistema educacional do PAIGC entre 1963-1973, o número total de quadros e estudantes treinados do Partido nas zonas libertadas foi registrado da seguinte forma:

Hoje, o Partido dispõe de 164 escolas primárias em suas regiões libertadas, onde o ensino é ministrado por 258 professores, servindo um total de 14531 alunos, dos quais cerca de um terço são raparigas […] Hoje, em menos de dez anos, o PAIGC formou 36 quadros universitários, temos 46 quadros de educação técnica superior; 241 quadros de ensino profissional e especializado; 174 quadros políticos e sindicais; e 410 quadros na assistência sanitária. Além destes já formados, temos neste momento, a receberem no estrangeiro uma formação média e superior, 422 alunos, aos quais se juntarão mais 100 este ano.

Para conhecer melhor as iniciativas e conquistas educacionais do PAIGC durante a luta de libertação, é necessário estudar a abordagem que orientou seu trabalho de educação política e de conscientização, que foi além dos programas convencionais de educação infantil e alfabetização.

 

A makeshift PAIGC school in the liberated areas built with leaves and branches, hidden under trees to avoid being spotted by aircrafts, 1974. Source: Roel Coutinho, Guinea-Bissau and Senegal Photographs (1973–1974)

Uma escola improvisada do PAIGC nas zonas liberadas, construída com folhas e troncos, escondida sob as árvores para evitar ser vista por aviões, 1974.
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

Uma abordagem militante para a educação

Muitos países africanos declararam sua independência na segunda metade do século XX, liderados por seus movimentos de libertação e em interação com as lutas anticoloniais e anti-imperialistas em todo o mundo. O PAIGC, juntamente com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), e outros, foi profundamente influenciado pelas ideologias comunistas e socialistas. A adoção do termo militante, por exemplo, para identificar membros particulares do Partido foi extraída das estruturas revolucionárias dos contemporâneos internacionais do PAIGC.

Submersos no movimento ideológico, político, social e armado, os militantes caracterizavam-se pela adesão disciplinada à luta de libertação e pelo envolvimento ativo na luta pela independência total do governo colonial português. Em 1974, Samora Machel – comandante militar, líder da Frelimo e socialista na tradição do marxismo-leninismo – forneceu a seguinte definição de militante e militância:

O militante é aquele que vive a preocupação da organização e que no detalhe do cotidiano, pela aplicação criadora que faz da nossa linha, se torna para todos um modelo do servidor do povo, do edificador da nova sociedade. A tarefa que lhe é confiada é cumprida com sentido que ela está ao serviço do povo, recebendo a sua missão do povo, a ele tudo consagra, incluindo a própria vida.

Na luta de libertação do PAIGC, “militante” foi usado como um termo guarda-chuva para todos aqueles que participaram conscientemente da luta, fossem eles combatentes, comandantes, comissários políticos, “trabalhadores responsáveis”, professores, enfermeiros, médicos ou civis. O Partido considerava o militante o participante chave da vanguarda da luta, com as seguintes considerações em mente: “Lembrar-se sempre que um bom militante (como um bom cidadão) é aquele que faz bem o seu dever. É aquele que, além de fazer bem o seu dever, consegue melhorar-se a cada dia para ser capaz de fazer mais e melhor”. Ou ainda em outra passagem:

Hoje é do Partido toda a gente da nossa terra disposta a acabar com o colonialismo português e disposta a seguir as palavras de ordem do Partido, a respeitar e a cumprir as ordens da Direcção do nosso Partido. Esses são do Partido. Mas amanhã serão do Partido só aqueles que têm uma conduta moral exemplar como homens dignos ou como mulheres dignas da nossa terra. Que trabalha e tem trabalho mesmo, porque os vadios não podem ser do nosso Partido, de maneira nenhuma. E que põe como sangue da sua vida, alma da sua alma, cumprir o programa do nosso Partido na nossa terra, combatendo seja quem for.

Durante um seminário para os membros do PAIGC, realizado entre 19 e 24 de novembro de 1969, Cabral explicou como, “a serviço da liberdade e do progresso” do povo guineense, o militante deve defender a todo o custo os avanços que estão a ser feitos na luta de libertação. O militante deve viver “entre o povo, à frente do povo, atrás do povo. Eles devem trabalhar para o Partido com a certeza de que estão trabalhando para o povo de nossa terra”.

Tornar-se militante do PAIGC era considerado um ato consciente. Como tal, “alguma evidência específica de satisfação de certos requisitos” deveria ser dada à liderança do Partido, algo que demonstrasse conhecimento sobre seu programa e princípios. O militante também deveria ter atuado em um trabalho organizacional que buscasse alcançar na prática os objetivos do Partido.

Para atingir esses objetivos, essa vanguarda militante, ou o que o PAIGC chamava de militante armado, também precisava estar ativamente liderando ou engajado na formação política sobre a luta entre civis adultos, membros do Partido, jovens e crianças. A vanguarda militante precisava ser a força motriz por trás da educação política daqueles grupos estratégicos que poderiam ser forjados em instrumentos políticos para a luta de libertação e para a reconstrução nacional após a independência. A criação dessa vanguarda, como Cabral delineou durante as sessões de novembro de 1969, deveria ser “constantemente mais apurada, mais afiada, mais aperfeiçoada, e nosso povo deve embelezá-la constantemente”.

Foi nesse contexto que o PAIGC desenvolveu seu conceito de formação militante (também chamada de formação política). Esse não era um termo frequentemente utilizado nos documentos do PAIGC; somente em 1978 foi adotado para caracterizar o sistema de formação desenvolvido durante a luta. A concepção e aplicação prática da formação militante do PAIGC foram profundamente influenciadas pelo momento histórico específico em que surgiram e moldadas por uma série de fatores: lutas de libertação africana e suas posições anticoloniais; movimentos pan-africanos e o princípio da unidade africana; a Guerra Fria e os blocos ideológicos socialistas; o Movimento dos Não-Alinhados e a solidariedade internacional; o período de conflito armado interno no território guineense; e a luta internacional pelos direitos humanos do movimento de libertação no âmbito das Nações Unidas.

A formação militante era um processo educacional anticolonial comprometido, engajado e consciente, focado em um conceito expansivo de libertação “enraizado e apoiado pelas realidades e necessidades da comunidade” e princípios de descolonização. Seu “papel pedagógico combinou três aspectos: aprendizado político, treinamento técnico e formação de comportamentos individuais e coletivos”. Por meio dessa educação, estudantes e cidadãos seriam orientados a se desenvolverem plenamente e incentivados a dar contribuições conscientes para o desenvolvimento sustentável do país recém-independente. A formação militante ou política foi aplicada a três grupos: o professor militante, o combatente militante e o estudante militante.

 

O professor militante

Os professores militantes deixavam suas vidas cotidianas e se somavam à luta; eles vinham da classe trabalhadora (artesãos, trabalhadores de serviços e da indústria urbana etc.), do campesinato (agricultores e camponeses) e alguns da pequena burguesia (ex-professores do ensino fundamental, ex-funcionários do governo e alunos). Suas idades variavam de 15 a 25 anos. Estudantes das escolas coloniais portuguesas recrutados para se juntarem à luta também eram treinados para se tornarem professores militantes do PAIGC.

Para um professor militante, a profissão e o trabalho envolviam mais que preparar aulas, ministrar os currículos estabelecidos e avaliar o desempenho acadêmico dos alunos. A educação militante buscava transformar comportamentos e hábitos, superar experiências passadas, repensar e produzir novos conhecimentos, adaptar-se ao mundo em transformação e às demandas da luta de libertação.

Dessa forma, tornar-se professor militante era passar por dois processos simultâneos: descolonizar os materiais didáticos existentes e produzir novos currículos e materiais escolares como parte do trabalho educacional mais amplo do PAIGC. Portanto, o professor militante era tanto um recurso pedagógico quanto um espelho dos ideais da luta pela libertação. Até a publicação do primeiro manual escolar em 1966, os professores do PAIGC tinham que lecionar utilizando manuais e materiais coloniais. Por exemplo, os professores tinham uma dupla tarefa ao usar o manual de ortografia do português: além de fundamentos como o ensino do alfabeto, também cabia a eles interpretar criticamente a mensagem que os livros em português transmitiam e reformulá-la de forma mais relevante para o universo dos alunos.

No entanto, para que isso acontecesse, os próprios professores tiveram que passar por um processo próprio de descolonização para desconstruir e desmantelar o saber colonial que lhes foi imposto pelo governo português. Embora o Partido tenha desenvolvido cursos de formação de professores que abordassem temas como a pedagogia e a aquisição de competências pedagógicas, o processo de tornar-se professor militante caracterizou-se, em grande medida, pelo reinvestimento e reavaliação por parte dos professores da sua própria formação e conhecimento. Muitas vezes, isso acontecia por meio de aprendizados precoces em sala de aula junto com seus alunos.

Os professores dessas escolas encontravam-se em uma posição em que seus conhecimentos, habilidades e atitudes poderiam funcionar para criar ambientes de aprendizagem que incentivassem o pensamento crítico entre os alunos. O processo de questionar, interrogar e despertar a curiosidade não apenas construiu confiança nos alunos; também transformou os professores em agentes de mudança. Embora o professor militante e o combatente militante estivessem engajados em diferentes frentes na luta pela independência e pela libertação, ambos foram incumbidos não apenas de desempenhar funções técnicas, logísticas e operacionais cotidianas (como contribuir para o funcionamento de escolas e participar de operações militares), mas também com a formação consciente e a educação política da futura geração, que conduziria o país à libertação e reconstrução pós-independência. Nesse processo, cabia a eles desenvolver as abordagens e materiais pedagógicos – bem como as condições emocionais – que cultivassem os princípios e objetivos traçados pelo Partido.

 

O Combatente Militante

Inspirado no modelo de treinamento militar cubano, o Centro de Instrução Política e Militar de Madina do Boé foi criado, em 1966, pelo comandante do PAIGC Pedro Verona Pires, que havia recebido treinamento militar em Cuba. Seguindo as diretrizes do PAIGC, era importante que os militares do Partido estivessem conscientes das estratégias políticas da luta de libertação: as forças armadas revolucionárias só poderiam fazer uma campanha militar eficaz se soubessem porque a luta era necessária e quais eram os resultados pretendidos. As lições políticas sobre o colonialismo e os princípios e objetivos da luta de libertação eram parte integrante de seu treinamento.

Devido à elevada taxa de analfabetismo na Guiné-Bissau, o centro de instrução também promoveu aulas de alfabetização para combatentes militantes. Ensinar habilidades de leitura e escrita era um aspecto crucial nas forças armadas não apenas porque era necessário para engajar e compreender os materiais do Partido, mas também porque era necessário para desenvolver a logística militar, preparar ataques, fazer a comunicação entre as fontes e o quartel-general do Partido e entender as coordenadas e as tecnologia militares.

Dando continuidade a esse trabalho de mobilização política e ideológica e de educação dos civis, o PAIGC criou, em 1968, as Brigadas de Trabalho Político, que foram reorganizadas sob a designação de Brigadas de Ação Política em 1970. De acordo com os estatutos das Brigadas de Ação Política, de 1971, suas funções principais eram:

fortalecer o trabalho político do Partido […] fortalecer e desenvolver a consciência política de militantes, combatentes e populações, a explicação e popularização das palavras de ordem e de outras directrizes do Partido em todos os ramos de nossa actividade. […] 8 – A brigada deve dispor de meios materiais para a realização de sua função (documentos de base do Partido, boletins, comunicados, fotografias e outros meios audiovisuais) que lhe são fornecidos pela direção do partido; 9 – A brigada, como qualquer organismo vivo da direcção do partido deve viver no seio de seu povo […].

 

O estudante militante

Foi sob a palavra de ordem “Educação, trabalho, luta” e a saudação “viva o PAIGC, força, luz e guia do nosso povo na Guiné e Cabo Verde!” que o Partido começou a formar o que considerava ser “os melhores filhos e filhas” da nação, a saber, alunos militantes e alunos da organização juvenil Pioneiros do Partido. Em 1966, paralelamente à inauguração do internato Escola Piloto, em Conacri, o PAIGC criou o Pioneiros do Partido para alunos dos 10 aos 15 anos que concluíram o primeiro ano do ensino primário. Como uma “organização de vanguarda”, visava criar espaços e processos que produzissem estudantes militantes. De acordo com os seus estatutos, os Pioneiros do Partido buscavam contribuir para uma educação de qualidade para as crianças, baseada nos princípios do Partido, e reforçar o amor ao povo guineense e cabo-verdiano, a dedicação à luta, o respeito pela família e pelas escolas e “predileção pela justiça, trabalho, progresso e liberdade”. Seus objetivos e atividades visavam tornar todos os seus membros “dignos militantes” do Partido e “cidadãos conscientes” capazes de assumir as grandes responsabilidades da reconstrução nacional no futuro, bem como a “defesa intransigente da conquista da revolução”.

Além do trabalho envolvido em ser um bom estudante, outras tarefas do incluíam:

discutir tudo o que diz respeito à luta, à escola e à terra. Devem reunir-se com os pais, […] dirigentes, funcionários, militantes, combatentes, amigos estrangeiros e todos aqueles que se interessam pelo trabalho dos Pioneiros. Devem organizar competições desportivas, de desenho, concursos de jogos, canto, trabalhos manuais, etc., tanto com os alunos da escola como com outros pioneiros.

 

Os combatentes do PAIGC utilizam seu tempo de descanso para aprender a ler e escrever, pondo em prática uma das palavras de ordem do partido de “exigir aos trabalhadores responsáveis do partido que se dediquem seriamente ao estudo (…) e melhorem constantemente seus conhecimentos, sua cultura, sua formação política (…) e aprendem constantemente”.  
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

Transformando materiais pedagógicos e currículos

A educação política era obrigatória em todas as frentes de luta e era uma das maiores prioridades do PAIGC. Como Cabral explicou em um seminário para membros do Partido, em novembro de 1969:

É preciso lutar com a consciência política na cabeça. É preciso termos consciência de que é a consciência do homem que guia a arma, e não a arma que guia a consciência. A arma vale porque o homem está atrás, agarrado a ela. E vale tanto mais quanto mais vale a consciência do homem, quanto mais a consciência do homem servir a uma causa justa, bem definida, clara.

A educação militante ou política do PAIGC era anticolonial e afrocentrada nos seus objetivos, visando desmantelar o sistema e as práticas educativas preconceituosas, hierárquicas e opressoras herdadas da educação colonial portuguesa. Trouxe novos conhecimentos e experiências de vida social para os manuais e currículos escolares, enfatizando o aprendizado sobre as realidades concretas do povo africano, os processos históricos que eles desafiavam na época – ou seja, o colonialismo – e as relações violentas e estruturais que emergiram de suas práticas.

Igualmente importante foi a ênfase especial colocada na aprendizagem e no ensino de estratégias de resistência às práticas coloniais. As experiências do povo africano, seu passado, seu presente e seu futuro tinham que estar no centro dessa nova educação. Os currículos escolares precisavam lidar e serem moldados pelas formas de conhecimento que existiam nas comunidades locais. Com essas novas abordagens, o PAIGC pretendia cultivar nos estudantes um sentido pessoal de obrigação para consigo próprios, com seus pares e com suas comunidades. Já em 1949, Cabral defendia que a produção de conhecimento se concentrasse nas realidades africanas existentes através das suas experiências de investigação sobre as condições agrícolas em Portugal e nos seus territórios africanos. Ele argumentou que uma das melhores maneiras de defender a terra era aprender e entender como usar o solo de forma sustentável e melhorar conscientemente os benefícios que obtemos dele. Conhecer e compreender a terra era uma forma de defender o povo e seu direito de melhorar suas condições de vida.

Os currículos desenvolvidos para a formação do aluno militante compreendiam diversas disciplinas, da matemática ao aprendizado da língua portuguesa, ginástica, artes, geografia, ciências, teatro e música. Entre 1966 e 1974, o PAIGC desenvolveu quatro manuais escolares para o 1º até o 4º ano e quatro manuais para o 5º e 6º anos. Os materiais incluíam um manual sobre a história geral da África, um sobre a história da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, outro sobre lições políticas e, finalmente, uma tradução de Uma Breve História da Sociedade Pré-Capitalista (o primeiro volume de um estudo de dois volumes escrito por D. Mitropolsky, Y. Zubritsky, V. Kerov e outros, em 1965, na Patrice Lumumba Friendship University, em Moscou, URSS). Os manuais escolares do PAIGC foram criados coletivamente por professores e outros militantes e impressos em Uppsala, na Suécia, pela tipografia Wretmans Boktryckeri.

O Partido também desenvolveu uma série de meios de comunicação, incluindo jornais como o Jornal Libertação e o PAIGC Actualités internacional, em língua francesa. Além disso, desenvolveram uma revista para jovens, Blufo – Órgão dos Pioneiros do PAIGC que também foi amplamente lida por adultos. Os discursos transcritos e escritos de Cabral também foram utilizados como material didático. Outra iniciativa do Partido foi a Rádio Libertação, que transmitia diariamente notícias sobre a luta e contribuía para o programa de educação de adultos do PAIGC.

 

Currículos para crianças e jovens

Fortemente inspirado pela orientação política e ideológica do Partido e influenciado pela conjuntura global da época, o currículo do PAIGC para crianças e jovens foi dividido em duas fases: da 1ª a 2ª série e da 3ª a 5ª série, cada uma com um escopo diferente. A educação política para o primeiro e segundo grau foi dedicada à história da luta de libertação. Aqui, temas como a criação do PAIGC e sua estrutura e organizações, heróis e heroínas, objetivos e programa foram centrais. Ensinar sobre a luta de libertação exigiria, por sua vez, discutir o colonialismo, a opressão e a exploração em geral, e o colonialismo português em particular.

A educação política do 3º ao 5º ano era mais abrangente que os currículos da 1ª e 2ª séries e centrava-se na dedicação da luta de libertação ao internacionalismo. O PAIGC ensinou sobre lutas semelhantes no continente africano, como a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo); o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP); o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA); e a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP), organização de cooperação entre os movimentos de libertação nacional dos territórios africanos colonizados pelos portugueses. Tais lutas nacionais foram exploradas em relação a outras questões internacionais, incluindo:

  • Lutas diplomáticas, como a pelo reconhecimento internacional da ocupação colonial dos seus territórios pelos portugueses.
  • Lutas de gênero, visando avançar os direitos de mulheres e crianças em um contexto em que a dominação patriarcal feudal e colonial estava entrelaçada – o que líderes do PAIGC, como Carmen Pereira, chamavam de “dois colonialismos”.
  • Lutas históricas em outros lugares, como a revolução socialista na Rússia em outubro de 1917 e o movimento trabalhista na África do Sul.
  • Luta de classes, destacando a conexão entre o PAIGC, sindicatos, como o Sindicato Nacional dos Trabalhadores Guineenses, e a classe trabalhadora internacional.
  • Racismo, liberdade, progresso, reconstrução nacional e história africana (incluindo o tráfico de africanos escravizados e os grandes impérios que antecederam a colonização).

A redação de textos escolares foi central para a transmissão das ideias definidas no currículo escolar e para auxiliar os professores a transmitir informações densas aos alunos da escola de forma acessível e interessante. Uma maneira de fazer isso era transformar a luta de libertação, questões políticas e ideológicas em contos e fábulas que exploravam comportamentos humanos, cívicos e militantes e complementavam o currículo.

Para a primeira e segunda séries, os professores ficaram encarregados de criar manuais escolares e desenvolveram uma ampla gama de planos de aula. Nos currículos da primeira à quarta série, os temas políticos e ideológicos foram adaptados aos textos escolares, entrelaçando resultados concretos de aprendizagem com textos que expressavam diretamente os objetivos da luta de libertação, incluindo os seguintes títulos:

  • O programa principal do nosso Partido, que introduziu os princípios do Partido aos alunos da 1ª série.
  • O grande patriota, que abordou o tema do combatente militante para os alunos do 2º ano.
  • O passado do nosso povo e Séculos de dor e esperança, sobre a história do colonialismo português para alunos do 3º ano.
  • O poema de um militante e Os Objetivos da nossa Luta, que compartilhavam os objetivos centrais da libertação para os alunos da 4ª série.

Ao contrário dos materiais do passado, que representavam cenas longínquas do Portugal colonial, esses novos materiais e processos de aprendizagem incorporaram a geografia, vida social e organização dos territórios onde a luta pela libertação estava ocorrendo. Já se encontravam textos com títulos como Vida na Tabanca e As Profissões, este último revelando a estrutura e a organização social local. Houve também um foco em explicações científicas do mundo natural. As aulas abordavam as maravilhas da natureza, como os oceanos e a riqueza da vida botânica. O objetivo era desmistificar os fenômenos naturais, tendo o cuidado de não colocar em questão as crenças religiosas dos alunos. Outro tema importante explorado foi como utilizar os recursos naturais para o desenvolvimento do país de forma sustentável.

No entanto, os programas e textos escolares do PAIGC nem sempre atingiram os objetivos para a educação, principalmente nos manuais escolares do 1º ao 3º ano. A grande ênfase em celebrar a luta, as batalhas e os heróis contemporâneos do PAIGC deixou temas sobre cultura e história africana quase inexplorados nos manuais escolares.

 

Currículos para educação política de adultos

A formação política de adultos no Centro de Instrução Política e Militar de Madina do Boé seguiu os mesmos temas da educação de jovens, mas com uma análise mais profunda. O currículo de instrução do centro, Programa para a formação do soldado FARP, consistia em 180 horas de aulas durante um período de trinta dias, das quais 60 horas eram dedicadas à “preparação política”.

O currículo de educação política para adultos foi dividido em cinco seções. A primeira seção foi focada na história e geografia, abordando temas como “a exploração do nosso povo pelo governo colonial português bem como suas consequências”, “a distinção entre colonialismo português e povo português” e “opressão”. Foi uma parte importante da política do PAIGC esclarecer que eles estavam lutando contra uma estrutura colonial opressora – não contra seu povo. Isso deixou duas questões muito claras: primeiro, que o povo combatente não resultou necessariamente na eliminação da estrutura colonial e, segundo, que o povo português também foi vítima da opressão perpetrada por um regime autoritário.

A segunda seção do currículo foi dedicada à história e ideologia do PAIGC, que seguiu mais ou menos as mesmas linhas que já estavam implementadas no currículo para crianças em idade escolar. Maior foco e detalhamento foi dado à história do PAIGC, especialmente no que diz respeito às suas primeiras mobilizações e início da luta armada e seu desenvolvimento, dificuldades e realidade na época. As discussões também se concentraram no programa e nos princípios do Partido, bem como em algumas das debilidades da luta. Os conceitos socialistas e leninistas como a crítica, a autocrítica, o centralismo democrático e a democracia revolucionária foram expostos com maior detalhe, esclarecendo as influências políticas que o Partido recebeu de outras ideologias e como pretendia adaptá-las ao contexto guineense.

A terceira seção do currículo foi dedicada a questões internacionais. O objetivo foi contextualizar a luta de libertação do PAIGC no contexto mais amplo das lutas que estavam acontecendo ao redor do mundo e estabelecer as conexões entre elas. O objetivo era destacar temas internacionais como a luta de libertação contemporânea e a descolonização na África, Ásia e América Latina; a Guerra Fria, imperialismo, e organizações anticoloniais em todo o mundo. As discussões de temas como o imperialismo, o socialismo, o “Terceiro Mundo” e a luta de libertação contra o imperialismo foram centrais.

A quarta seção incidiu sobre o caráter sociológico e etnográfico da Guiné-Bissau no presente e no futuro. Eles abordaram tópicos como religião, etnia e racismo, bem como economia, trabalho organizacional, desenvolvimento e métodos de planejamento. A religião precisava ser enfrentada pelo seu papel dominante na vida social e pela preocupação de que a forte influência dos líderes religiosos pudesse comprometer o desenvolvimento da luta.

A última seção do programa foi focada no treinamento e comportamento cívico das forças armadas militantes. Isso incluía a igualdade de gênero e a expectativa de que os combatentes se comportassem com disciplina e camaradagem tanto entre si quanto com os civis.

 

El horario diario de una escuela primaria en régimen de semi-internado de la región de Sárà que pretende "mejorar los servicios" del centro, que debe "cumplirse estrictamente... [pero] modificarse si las circunstancias lo requieren", 1974. Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau and Senegal Photographs (1973–1974)

O horário diário de uma escola primária semi-internato na região de Sárà que visa “melhorar os serviços” da escola, que deve ser “estritamente respeitado … [mas] alterado se necessário pelas circunstâncias”, 1974.
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

Educação, revolução e resistência

A luta de libertação e a educação política do PAIGC não eram apenas ideais. Foram um processo contínuo de reflexão, organização e ação que procurou desenvolver uma consciência militante, anticolonial e decolonial nas mentes e nos corpos dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Apesar de a educação política do PAIGC ter sido posta em prática apenas por um breve período (1964-1973) e dentro de um pequeno território, ela permanece uma parte importante da luta de libertação mais ampla. O estudo das práticas educativas do PAIGC durante a sua luta de libertação nos obriga a sair do campo teórico e a nos envolver com os processos históricos concretos que se desenrolaram. Aprofundar-se no campo material de como os ideais da luta foram colocados em prática na vida cotidiana e como eles foram transmitidos às gerações futuras é uma homenagem aos princípios revolucionários que guiaram a luta de libertação.

No início da luta, o Partido e seus militantes compreenderam o papel crucial e o poder da educação para cumprir os objetivos da luta de libertação. Isso os levou a colocar em prática ideias e iniciativas revolucionárias como:

  • Criar escolas nas zonas libertadas para jovens, adultos e combatentes. Além de ensinar a ler e escrever, e outras aprendizagens, as escolas enfatizavam o desenvolvimento de currículos de educação baseados nas realidades do povo e de sua luta.
  • Realizar campanhas de mobilização para educar e aumentar a consciência política da população.
  • Estabelecer a educação política como central no processo de libertação nacional e fundamentar a educação nas práticas anticoloniais e decoloniais.
  • Desenvolver currículos e materiais escolares que refletissem a realidade da África em relação a outras lutas internacionais com o objetivo de cumprir os objetivos da libertação total.
  • Valorizar a importância do trabalho dos professores, seu papel na vanguarda da luta e sua responsabilidade com o avanço do país.
  • Estabelecer redes internacionais de apoio educacional. Isso incluiu países como Cuba, Hungria, Iugoslávia, URSS, Romênia, República Democrática Alemã, Tchecoslováquia e Bulgária, onde os alunos podiam continuar seus estudos técnicos e superiores, bem como treinamento de quadros.
  • Produzir e publicar mídias por meio de suas próprias plataformas e canais de comunicação (jornais, revistas e rádios), que funcionaram como material educativo adicional ao longo da luta de libertação.

Juntos, a educação política e o processo revolucionário tornaram-se cruciais para produzir consciência política e facilitar a luta que levou à libertação nacional. A educação política era a forma mais importante de manter viva a ideologia do Partido e a única maneira de solidificar as raízes da independência necessária para imaginar e criar o futuro. Ideologia, educação e politização consciente trabalharam juntas no processo de educação política do PAIGC de uma forma que nos permite ver a luta de libertação como um processo político e uma práxis educacional.

A experiência do PAIGC de construir escolas na floresta, sua forma pioneira de educação política, o desenvolvimento de currículos emancipatórios específicos para seu contexto e o estabelecimento de redes internacionais de apoio a esse processo de educação são nosso legado e inspiração. São processos com os quais devemos aprender e avançar à medida que visualizamos e encenamos nossas lutas hoje.

 

Students inside of a PAIGC classroom in a primary school in the liberated areas, 1974. Source: Roel Coutinho, Guinea-Bissau and Senegal Photographs (1973–1974)

Estudantes dentro de uma sala de aula do PAIGC em uma escola primária nas áreas liberadas, 1974.
Créditos: Roel Coutinho, Guinea-Bissau e Senegal Photographs (1973–1974)

 

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer Sónia Vaz Borges por produzir este estudo em colaboração com o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

 

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