CoronaChoque é um termo que se refere à forma como um vírus atingiu o mundo com uma força avassaladora e como a ordem social do Estado burguês desmoronou diante dele, enquanto a ordem socialista pareceu mais resiliente.
Este é o primeiro de uma série de três artigos sobre o CoronaChoque que analisará como a China identificou o novo coronavírus e como o governo e a sociedade chinesa lutaram contra sua disseminação mais ampla. O relatório é fruto da pesquisa de Vijay Prashad (diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social), Du Xiaojun (tradutor e linguista de Xangai) e Weiyan Zhu (advogada de Pequim). Esses artigos apareceram pela primeira vez no Globetrotter do Independent Media Institute. As ilustrações foram feitas por Li Zhong, um artista de Xangai. No final, há uma entrevista com ele conduzida por Tings Chak (designer-chefe do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social).
Cresce a xenofobia contra a China em meio ao CoronaChoque
No dia 25 de março, os chanceleres dos países que integram o G7 não conseguiram emitir uma declaração sobre a pandemia de Covid-19. Os EUA – que presidiam o organismo naquele momento – tinham a responsabilidade de apresentar um esboço, o que foi visto como inaceitável por diversos outros membros. No esboço, os EUA usaram a expressão “vírus de Wuhan” e afirmavam que a pandemia era de responsabilidade do governo chinês. O presidente Donald Trump já havia usado a expressão “vírus chinês” (e prometera que não usaria mais) e um membro de seu staff se referiu a esse processo de forma caluniosa, ao utilziar a expressão “Kung Flu” [um trocadilho com a palavra “kung fu”, sendo “flu”, gripe em inglês]. Na Fox News, Jesse Watters explicou de maneira racista o motivo do vírus ter começado na China: “Porque lá tem esses mercados onde comem morcegos e serpentes crus”. Os ataques violentos contra asiáticos dispararam, como consequência do estigma reforçado pelo governo de Trump.
Muito corretamente, o diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez um chamado “à solidariedade e não ao estigma”, em um pronunciamento do dia 14 de fevereiro, pouco antes do vírus chegar à Europa e América do Norte. Ghebreyesus sabia que haveria uma tentação em culpar a China pelo vírus, na verdade, em usá-lo para atacar o país asiático. O slogan “solidariedade, não estigma” tinha a intenção de demarcar claramente uma resposta humanista e internacionalista à pandemia, frente a uma resposta intolerante e não científica.
Origens
O SARS-CoV-2, nome oficial do vírus, se desenvolveu da mesma forma que muitos outros: por transmissão de animais a humanos. Ainda não existe um consenso sobre a origem desse vírus em particular. Novos patógenos surgem em vários criadouros de animais e passam para a população humana, o que dá origem a novas doenças e pode causar epidemias. Por exemplo, no período recente, vimos uma variedade de vírus como H1N1, H5Nx, H5N2 e H5N6.
Ainda que o vírus H5N2 tenha se originado nos EUA, não ficou conhecido como “vírus estadunidense” e ninguém estigmatizou o país por isso. A nome científico são usados para descrevê-los, e não são da responsabilidade desse ou daquele país; o surgimento desses vírus levanta questões fundamentais sobre a invasão humana nas florestas e o equilíbrio entre a civilização (agricultura e cidades) e a natureza.
A nomeação de um vírus é um tema controverso. Em 1832, a cólera avançou da Índia britânica em direção à Europa. Foi chamada de “cólera asiática”. Os franceses acreditaram que por serem democráticos, não sucumbiriam à doença vinda de territórios autoritários; mas a França foi devastada pela cólera que, para além da bactéria, tinha a ver com as práticas de higiene na Europa e América do Norte. (O Movimento de Banhos Públicos surgiu nos EUA quando a cólera chegou ao país em 1848).
A “gripe espanhola’ só recebeu esse nome porque ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial, quando o jornalismo na maioria dos países beligerantes foi censurado. A imprensa da Espanha, que não estava em guerra, denunciou amplamente a gripe e, portanto, a pandemia ganhou o nome do país. De fato, as evidências mostraram que a gripe espanhola começou nos Estados Unidos em uma base militar no Kansas, onde as galinhas transmitiram o vírus aos soldados. Depois, viajaria para a Índia britânica, onde morreram 60% das vítimas dessa pandemia. Ela nunca foi nomeada “Gripe Americana” e nenhum governo indiano jamais tentou recuperar custos dos Estados Unidos por causa da transmissão de animal para humano que lá ocorreu.
A China e o coronavírus
Em um importante artigo publicado na revista médica The Lancet, o professor Chaolin Huang escreveu: “A data de início dos sintomas do primeiro paciente [com covid-19, a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2] identificado foi 1 de dezembro de 2019”. Inicialmente, houve muita confusão sobre a natureza do vírus e se podia ser transmitido entre seres humanos. Considerou-se que era um vírus conhecido, transmitido principalmente de animais a humanos.
A doutora Zhang Jixian, diretora do Departamento de Medicina Respiratória e Cuidados Críticos do Hospital de Medicina Integrada de Medicina Chinesa e Ocidental da província de Hubei, foi uma das primeiras profissionais a alertar sobre o novo surto de pneumonia por coronavírus. No dia 26 de dezembro, ela atendeu um casal de idosos que apresentavam febre alta e tosse. Os exames adicionais descartaram influenza A e B, micoplasmas, clamídia, adenovírus e SARS. Uma tomografia do filho do casal mostrou que algo também tinha enchido parcialmente seus pulmões. Nesse mesmo dia, outro paciente, um vendedor do mercado de frutos do mar, apresentou os mesmos sintomas. A doutora Zhang reportou os quatro casos ao Centro de Prevenção e Controle de Doenças da China em Wuhan. Nos dias seguintes, ela e sua equipe atenderam outros três pacientes que tinham visitado o mercado de frutos do mar e tinham os mesmos sintomas. No dia 29 de dezembro, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças de Hubei enviou especialistas para investigar os sete pacientes do hospital. Em 6 de fevereiro, a província de Hubei reconheceu o valioso trabalho de Zhang e sua equipe na luta pela identificação do vírus. Não houve nenhuma tentativa de ocultar seu trabalho.
As autoridades provinciais souberam do novo vírus por volta de 29 de dezembro. No dia seguinte, informaram o Centro de Controle de Doenças da China e, um dia depois, 31 de dezembro, a China notificou a Organização Mundial da Saúde (OMS), um mês após a primeira infecção misteriosa ter sido relatada em Wuhan. O vírus foi identificado em 3 de janeiro; uma semana depois, a China compartilhou a sequência genética do novo coronavírus com o mundo inteiro, por meio de bancos de dados públicos e da OMS.
Com a divulgação da sequência do genoma de forma rápida pela China, o trabalho científico ocorreu imediatamente em todo o planeta. Charité – Universitätsmedizin Berlin, principal centro de medicina na Alemanha, usou esses dados para criar o primeiro kit de teste fora da China para o vírus, adotado pela OMS e disponibilizado para todos os países. O protocolo foi publicado em Berlim em 17 de janeiro. A busca por uma possível vacina também começou imediatamente e agora há pelo menos 71 candidatas, quatro nos estágios iniciais de testes.
Dois outros médicos – o Dr. Li Wenliang (oftalmologista do Hospital Central de Wuhan) e a Dr. Ai Fen (chefe do departamento de tratamento de emergência do Hospital Central de Wuhan) – causaram preocupação por conta de seus relatos. Nos primeiros dias, quando tudo parecia confuso, Li e sete outros foram repreendidos pelas autoridades, dia 3 de janeiro. O Dr. Li morreu de coronavírus em 7 de fevereiro. As principais instituições médicas e governamentais – a Comissão Nacional de Saúde, a Comissão de Saúde da província de Hubei, a Associação Médica Chinesa e o governo Wuhan – expressaram condolências públicas à sua família. Em 19 de março, o Departamento de Segurança Pública de Wuhan admitiu que o havia repreendido inadequadamente e puniu seus oficiais. A Dra. Ai Fen foi criticada pelo hospital em 2 de janeiro, mas em fevereiro recebeu um pedido de desculpas e, mais tarde, foi felicitada pela Wuhan Broadcasting and Television Station.
A Comissão Nacional de Saúde da China reuniu uma equipe de especialistas do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças, da Academia Chinesa de Ciências Médicas e da Academia Chinesa de Ciências; eles conduziram uma série de experimentos com amostras do vírus. Em 8 de janeiro, confirmaram que o novo coronavírus era realmente a fonte do surto. A primeira morte pelo vírus foi relatada em 11 de janeiro. Três dias depois, a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan disse que não havia evidências de transmissão entre os seres humanos, mas não podia afirmar com certeza que esse tipo de transmissão não era possível.
Uma semana depois, em 20 de janeiro, o Dr. Zhong Nanshan disse que o novo coronavírus poderia ser transmitido de uma pessoa a outra (Dr. Zhong, membro do Partido Comunista da China, é um especialista renomado e um dos líderes na luta contra a SARS na China). Alguns trabalhadores médicos foram infectados pelo vírus. Naquele dia, o presidente chinês Xi Jinping e o primeiro-ministro do Conselho de Estado, Li Keqiang, instruíram todos os níveis do governo a prestarem atenção à propagação do vírus; a Comissão Nacional de Saúde e outros órgãos oficiais foram instruídos a iniciar medidas de resposta emergenciais. Wuhan entrou em confinamento total em 23 de janeiro, três dias após a confirmação da transmissão entre humanos. No dia seguinte, a província de Hubei ativou seu alerta de nível 1. Em 25 de janeiro, o Premier Li reuniu um grupo de coordenação. Ele visitou Wuhan dois dias depois.
Algumas autoridades do governo local de Hubei subestimaram certos aspectos do vírus no início de janeiro e foram rapidamente removidos. Como mostramos, isso não afetou a velocidade vertiginosa da investigação científica, nem diminuiu as medidas decisivas tomadas por todos os níveis do governo chinês e dentro da sociedade chinesa.
Não está claro se a China poderia ter feito algo diferente, pois enfrentava um vírus desconhecido. Uma equipe da OMS que visitou a China entre 16 e 24 de fevereiro elogiou o governo e o povo chinês em seu relatório por fazer o possível para conter a disseminação da doença; milhares de médicos e outros trabalhadores da saúde chegaram a Wuhan, dois novos hospitais foram construídos para os infectados e vários órgãos cívicos entraram em ação para ajudar as famílias em isolamento. O que as autoridades chinesas fizeram para conter o aumento das infecções – como mostra um extenso estudo – foi colocar os infectados em hospitais, rastrear intensamente aqueles que haviam entrado em contato com eles e colocá-los em quarentena e monitorar de perto a população. Os lockdowns não foram suficientes. Foi essa política direcionada capaz de identificar aqueles que estavam na cadeia de infecção e, assim, quebrá-la.
A China e o mundo
A secretária de Saúde do estado indiano de Kerala, K. K. Shailaja, acompanhou o aumento dos casos em Wuhan e iniciou medidas de emergência em seu estado de 35 milhões de pessoas. Ela não esperou. Tampouco esperou o primeiro-ministro vietnamita Nguyễn Xuân Phúc e seu governo, que tomaram iniciativas para romper a cadeia de infecção. O que a China estava fazendo mostrou a Shailaja e Phúc e a suas equipes como reagir. Como resultado, foram capazes de conter o vírus nesta parte da Índia e no Vietnã.
Os EUA foram informados sobre a gravidade do problema imediatamente. No ano novo chinês, os funcionários do Centro de Controle de Doenças da China fizeram uma ligação para Robert Redfield, diretor do Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos, enquanto ele estava de férias. “O que ele escutou, o fez tremer”, escreveu o New York Times. Dias depois, Redfield conversou com o doutor George F. Gao, chefe do Centro de Controle de Doenças chinês e este “caiu em prantos” durante a conversa. Esta advertência não foi levada a sério. Um mês depois, em 30 de janeiro, Donald Trump assumiu uma postura muito arrogante. “Acreditamos que haverá um final feliz para nós”, disse, e acrescentou: “Isso eu posso assegurar”. Não decretou emergência nacional até dia 13 de março, quando o vírus já tinha começado a se propagar nos Estados Unidos.
Outros funcionários ao redor do mundo tomaram medidas semelhantes às dos políticos franceses de 1832, que acreditavam que a França não podia ser afetada pela “cólera asiática”. Em 1832, não existia nenhuma cólera asiática, só existia a cólera, que podia prejudicar as pessoas que viviam em más condições higiênicas. Tampouco existe um “vírus chinês”, apenas o SARS-CoV-2. O povo da China nos mostrou o caminho para enfrentar este vírus, ainda que isso tenha acontecido depois de ensaios e erros. É hora de aprender esta lição. Como disse a OMS “teste, teste e teste” e depois fechamentos, isolamentos e quarentenas. Os médicos chineses que se tornaram especialistas na luta contra o vírus estão agora no Irã, na Itália e e em outros lugares, carregando o espírito do internacionalismo e a colaboração.
Em 4 de março, o New York Times entrevistou o doutor Bruce Aylward, que comandou a equipe da OMS que visitou a China. Quando questionado sobre a resposta do país diante do vírus, disse: “Estão mobilizados como se fosse uma guerra e é o medo do vírus o que os impulsiona. Realmente se viram na primeira fileira de proteção do resto do país e do mundo”.
A descoberta do novo coronavírus pela China semanas antes da pandemia global
A Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia global no dia 11 de março, a “primeira pandemia causada por um coronavírus”, segundo Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da entidade. “Nas últimas duas semanas, o número de casos de covid-19 fora da China aumentou 13 vezes, e o número de países afetados triplicou”, anunciou na ocasião. A partir do dia 11 de março, ficou evidente que o vírus era letal e tinha a capacidade de se alastrar pela sociedade com facilidade. Mas isso nem sempre foi tão claro.
No dia 17 de março, Kristian Andersen do Instituto Scripps de Pesquisa (EUA) e sua equipe demonstraram que o novo coronavírus, SARS-Cov-2, possuía uma mutação genética conhecida como clivagem polibásica local, jamais vista em outros coronavírus encontrados em morcegos ou pangolins. Andersen apontou também que é possível que o vírus já teria sido contraído por humanos, e não necessariamente na cidade chinesa de Wuhan, primeiro epicentro do contágio. Em uma pesquisa publicada no dia 20 de fevereiro, Chen Jinping e seus colegas do Instituto Aplicado de Recursos Biológicos de Guandong, mostram que seus dados não indicavam que o novo coronavírus encontrado em humanos teria evoluído diretamente daqueles encontrados em pangolins. “Embora a covid-19 tenha aparecido primeiro na China, não quer dizer que se originou aqui”, disse o renomado epidemiologista chinês Zhong Nanshan.
A mídia ocidental tem constantemente feito declarações sobre a procedência do vírus, sem fundamentos científicos, embora cientistas ocidentais tenham feito alertas contra isso. Com certeza, essa mídia não estava escutando os médicos em Wuhan, ou os profissionais de saúde chineses.
Quando médicos em Wuhan se depararam com os primeiros pacientes da doença em dezembro, acreditavam que eles tinham pneumonia, mesmo com os raios-X mostrando danos pulmonares severos. Os pacientes não estavam respondendo aos tratamentos normais. Especialistas estavam alarmados, mas não havia razão para acreditar que isso se tornaria uma epidemia local e, na sequência, uma pandemia global.
No momento em que as autoridades médicas de Wuhan finalmente entenderam o que estavam enfrentando, assim que ficou claro que esse era um vírus novo que se espalhava rapidamente, eles entraram em contato com o Centro de Controle de Doenças da China (CDC) e a Organização Mundial da Saúde.
Seria difícil saber disso lendo apenas jornais ocidentais, notavelmente o jornal estadunidense New York Times, que sugeriu em uma matéria que o governo chinês havia escondido informações sobre a epidemia, e que os sistemas de alerta preventivos chineses não funcionavam.
Nossa investigação concluiu que nenhum destes argumentos é verídico. Não há nenhum indício de que o governo chinês sistematicamente reprimiu dados sobre o surto. O que existe são provas de que alguns médicos foram advertidos por seus hospitais e polícias locais, por divulgarem informações ao público sem usar os protocolos formais.
Também não existem provas de que o sistema de alerta e registros chinês não funcionou; apenas que, como qualquer sistema, este não se adequou a algo novo e não facilmente classificável.
O sistema de saúde da China possui procedimentos rigorosos para a divulgação de informações em uma emergência sanitária. Trabalhadores médicos relatam o que descobrem para seus administradores, que por sua parte entram em contato com as diversas entidades governamentais, desde o município ao nível federal. Não demorou para os profissionais relatarem o problema, e menos ainda para uma equipe de investigação chegar em Wuhan.
O governo chinês escondeu informações?
A diretora do centro de Medicina Respiratória do Hospital Provincial de Hubei atendeu um casal de idosos no dia 26 de dezembro. A condição deles a preocupou. Ela fez exames pulmonares no casal que parecia saudável. O resultado porém demonstrou “opacidade em vidro fosco”. Incerta sobre as causas, Zhang relatou a situação ao vice-presidente do hospital, Xia Wenguang, e outros departamentos médicos. O hospital rapidamente informou a sede local do Centro de Controle de Doenças Chinês. Tudo isso decorreu em 24 horas.
Mais pacientes foram admitidos ao Hospital Provincial de Hubei nos dia 28 e 29 de dezembro. Os médicos ainda não sabiam nada além de que esses pacientes apresentavam sintomas de pneumonia, e tinham danos pulmonares extensivos. Ficou claro muito cedo que o local imediato da disseminação do vírus era o Mercado de Frutos do Mar de Huanan. No dia 29 de dezembro, conforme os casos foram aumentando, o vice-presidente do hospital, Xia Wenguang, informou diretamente a comissão de saúde provincial, que instruiu o Centro de Controle de Doenças do distrito de Jianghan a visitar o Hospital Provincial de Hubei e conduzir uma investigação epidemiológica. No dia 31 de dezembro, um grupo de peritos da Comissão Nacional de Saúde, vindos de Pequim, chegou em Wuhan. Ou seja, oficiais do governo central chegaram ao epicentro apenas 5 dias após os primeiros sinais de problema.
No dia antes da chegada do grupo de peritos, a médica Ai Fen expressou a alguns colegas acadêmicos sua frustração em relação ao novo e misterioso vírus. Ai Fen viu um resultado de exame que dizia “pneumonia não identificada”. Ela grifou as palavras “SARS coronavírus” em vermelho, tirou uma foto, e enviou para seus colegas. Sua frustração se espalhou entre os médicos de Wuhan, incluindo Li Wenliang (membro do Partido Comunista) e sete outros que, posteriormente, também foram advertidos pela polícia. Dia 2 de janeiro, o chefe do Hospital Central de Wuhan alertou Ai Fen a não divulgar informações fora dos canais internos do hospital.
A repreensão que esses médicos sofreram é utilizada como prova da contenção de informações sobre o vírus, o que não faz sentido. As advertências ocorreram no começo de janeiro. No dia 31 de dezembro um grupo de peritos de Pequim havia chegado a Wuhan e a OMS já havia sido informada. Tanto o Centro de Controle de Prevenção e Doenças da China (CDC) quanto a OMS haviam sido notificados antes dos médicos serem advertidos.
No dia 7 de fevereiro, a Comissão Nacional de Supervisão decidiu enviar uma equipe investigativa a Wuhan. No dia 19 de março, eles divulgaram os resultados de sua investigação em coletiva de imprensa. As descobertas levaram o Bureau de Segurança de Wuhan a circular uma nota para retirar as repreensões contra Li Wenliang. No dia 2 de abril, Li e outros 13 médicos que morreram combatendo o vírus foram honrados pelo governo com o título de “Mártires” (a maior honra concedida pelo Partido Comunista e o Governo Chinês aos seus cidadãos).
Não há provas de que oficiais locais tiveram medo de informar o governo central sobre a epidemia. Não há provas de que “delatores” foram necessários para a informação se tornar pública, como aponta o New York Times. Zhang não era uma delatora, ela também seguiu os protocolos estabelecidos, o que levou a informação às mãos da OMS em poucos dias.
Sistema de alerta chinês
Em meados de novembro de 2002, houve um surto de SARS em Foshan, na província de Guandong, na China. Os médicos não conseguiam entender o que estava acontecendo. Finalmente, no meio de fevereiro, o Ministério da Saúde da China escreveu um e-mail para o escritório da OMS em Pequim “descrevendo” uma “estranha e contagiosa doença” que “já deixou mais de cem mortos” em uma semana. Na mensagem, oficiais também mencionaram a “atitude de pânico onde pessoas estão esvaziando prateleiras de qualquer medicamento que acham que pode ajudar”. Demorou oito meses para conter a epidemia de SARS.
Nos anos decorrentes, o governo chinês estabeleceu um sistema central de alerta preventivo, para que emergências sanitárias não saíssem do controle. O sistema funciona bem para doenças infecciosas claramente definidas. O médico Hu Shanlian, professor de economia da saúde na Universidade de Fudan, descreve dois incidentes que elucidam isso. Uma vez, ele e sua equipe descobriram dois casos de poliomielite em Qinghai. O governo local relatou os casos ao governo central, que imediatamente iniciou um programa de imunização emergencial, dando vacinas para crianças em cubos de açúcar, para impedir que a doença espalhasse. Além disso, houve dois casos de peste bubônica em Pequim, que tiveram origem na Região Autônoma da Mongólia Interior. “Doenças como essas podem ser identificadas rapidamente e absorvidas pelo sistema de alerta”, escreveu Shanlian.
Enfermidades conhecidas como pólio e a peste bubônica podem facilmente ser identificadas num sistema de alerta preventivo. Porém, se médicos estão confusos sobre vírus, o sistema não funciona tão fácil assim. A médica Ai Fen, que compartilhou seus registros com colegas, disse que o sistema de alerta é muito eficaz para coisas comuns, como hepatite e tuberculose. “Dessa vez era algo desconhecido”, relatou. O Dr. Zhang Wenhong, de Xangai, disse que o sistema de notificação direto “é mais poderoso que aqueles na maioria dos países do mundo para patógenos conhecidos [como MERS e H1N1] ou patógenos que não se espalham rapidamente e têm transmissão humana limitada [como H7N9]”. Confrontados com um novo vírus, a equipe médica e o sistema de denúncia direta ficaram desorientados.
A maneira mais eficaz de proceder quando não há clareza sobre a infecção é informar o departamento de controle de doenças no hospital. Foi exatamente isso que a Dra. Zhang Jixian fez, e seu superior, chefe do hospital, entrou em contato com o CDC local, que entrou em contato com o CDC nacional da China e com a Comissão Nacional de Saúde da China. Cinco dias após o alarme do Dr. Zhang, a OMS foi informada sobre um vírus misterioso em Wuhan.
Desde o dia 21 de janeiro, a OMS tem feito um relatório diário sobre a situação. O primeiro destacou os eventos entre os dias 31 de dezembro e 20 de janeiro. O primeiro item do relatório diz que, no dia 31, o escritório regional da Organização Mundial da Saúde foi informado sobre “casos de pneumonia de etiologia desconhecida, na cidade de Wuhan, na província chinesa de Hubei”. As autoridades isolaram o novo tipo de coronavírus no dia 7 de janeiro, e logo depois, no dia 12, compartilharam a sequência genética, para ser usada em kits de teste. Informações concretas sobre como a doença era transmitida não viriam até mais tarde. O sistema de alerta preventivo foi revisado no dia 24 de janeiro de 2020, com informações sobre o novo coronavírus, aprimorado com a experiência.
Fatos e ideologia
O senador da Florida, Marco Rubio, acusou a OMS de “subserviência ao Partido Comunista Chinês”. Ele escreveu que os Estados Unidos iriam “investigar a inaceitável demora no processo de declarar ou não uma pandemia global, e como a China comprometeu a integridade da OMS”. Como era de se esperar, Rubio não ofereceu nenhuma prova para apoiar suas acusações. O presidente Trump repercutiu as acusações de Rubio e depois afirmou que sua administração cortaria a verba anual de 400 milhões de dólares que os EUA envia à OMS. Trump e seu secretário Mike Pompeo fizeram acusações infundadas de que o vírus veio do Instituto de Virologia de Wuhan.
A OMS demorou para declarar uma pandemia global? Em 2009, o primeiro caso de H1N1 foi detectado na Califórnia no dia 15 de abril; a Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia global no dia 11 de junho, dois meses depois. No caso da SARS-CoV-2, o primeiro caso foi detectado em janeiro de 2020; a OMS declarou a pandemia global dia 11 de março – um mês e meio depois. Nesse período, a organização enviou equipes investigativas para Wuhan (dias 20-21 de janeiro), e para Pequim, Guandong, Sichuan e mais uma vez Wuhan, entre os dias 16 e 24 de fevereiro; as investigações, que vieram antes da declaração, foram cirúrgicas. O tempo entre os primeiros casos e a declaração da pandemia é parecido com o de 2009, porém mais rápido em 2020.
Posicionamentos como os do New York Times e do senador Marco Rubio mostram uma urgência para concluir que o governo e sociedade da China são culpados pela pandemia global, e que seus erros não apenas comprometem a OMS, mas são a causa da pandemia. Fatos se tornam irrelevantes.
O que demonstramos nessa reportagem é que não houve nem a repressão de fatos, nem medo por parte de profissionais da saúde em informar o governo central de Pequim; de fato, o sistema de alerta também não estava quebrado. A epidemia de coronavírus é misteriosa e complexa, as autoridades e médicos chineses identificaram o que estava acontecendo rapidamente para depois tomarem decisões racionais com base nos fatos disponíveis.
Como a China quebrou a corrente de transmissão do coronavírus
No dia 31 de março de 2020, um grupo de cientistas de todo mundo – desde Oxford até a Universidade Normal de Pequim – publicaram uma pesquisa importante na revista Science. O artigo, intitulado “Uma Investigação das Medidas de Controle de Transmissão Durante os Primeiros 50 Dias da Epidemia de Covid-19 na China”, sugere que se o governo chinês não tivesse efetivado o isolamento da cidade de Wuhan e implementado uma resposta emergencial nacional, haveriam 744 mil casos de coronavírus a mais fora da cidade. Os autores argumentam que as “medidas de controle adotadas na China contém lições para outros países pelo mundo”.
No relatório mensal da OMS de fevereiro, após uma visita à China, os membros da equipe escreveram que, “ao se deparar com um vírus até então desconhecido, talvez a China tenha efetuado o mais ambicioso, ágil e agressivo plano de controle de transmissão na história”.
Na parte 3, nós detalhamos as medidas adotadas nos diversos níveis do governo chinês e, também, por movimentos sociais no combate ao vírus, numa época em que cientistas estavam começando a entender a doença e trabalhando sem a disponibilidade de vacina ou algum tratamento eficaz contra a covid-19.
O plano de emergência
Nos primeiros dias de 2020, a Comissão Nacional de Saúde (NHC, na sigla em inglês) e o Centro de Controle de Doenças da China (CDC, na sigla em inglês) começaram a estabelecer protocolos para lidar com diagnóstico, tratamento e testes laboratoriais do que, na época, era considerada uma “pneumonia viral de causa desconhecida”. Um manual foi produzido pela NHC e por departamentos médicos da província de Hubei, e enviado para todas as instituições médicas da cidade de Wuhan, no dia 4 de janeiro; um treinamento em massa de profissionais também foi feito no mesmo dia. No dia 7 de janeiro, o CDC já havia isolado o tipo de coronavírus e, três dias depois, o Instituto de Virologia de Wuhan desenvolveu um kit de testagem.
Na segunda semana de janeiro, já se conhecia mais sobre a natureza do vírus e um plano para sua contenção começou a ser formulado. No dia 13 de janeiro, a NHC instruiu as autoridades de Wuhan a começarem a medir temperaturas em portos e estações, e reduzir o número de aglomerações públicas. No dia seguinte, a mesma entidade fez uma teleconferência que alertou a China inteira sobre o virulento novo tipo de coronavírus, e avisou a população para se preparar para uma emergência sanitária. No dia 17 de janeiro, a NHC enviou sete equipes de especialistas para províncias chinesas visando treinar autoridades da saúde pública no combate ao vírus. No dia 19, distribuíram kits de testes para os departamentos sanitários do país. Também no dia 19, uma equipe liderada por Zhong Nanshan – ex-presidente da Associação Médica Chinesa – chegou em Wuhan para conduzir inspeções.
Ao longo dos dias seguintes, a NHC começou a entender como o vírus era transmitido e como essa transmissão podia ser impedida. Entre os dias 15 de janeiro e 3 de março, a NHC publicou sete edições de suas diretivas sobre o assunto. Analisando as publicações, se nota um desenvolvimento preciso do conhecimento sobre o vírus e os planos de contenção, que incluíam novos métodos de tratamento, como o uso de ribavirina e uma combinação de medicamentos da medicina moderna e da Medicina Tradicional Chinesa (MTC). A Administração Nacional de Medicina Tradicional Chinesa depois relatou que em 90% dos casos em que foi administrada, a medicina tradicional se provou efetiva.
No dia 22 de janeiro, já havia ficado claro que o transporte para dentro e fora de Wuhan deveria ser restringido. Neste dia, o Conselho de Informação Federal pediu para que as pessoas não viajassem a Wuhan. No dia seguinte, a cidade inteira foi fechada. Nesse momento, a triste realidade do vírus já estava evidente para todos.
Atuação do governo
No dia 25 de janeiro, o Partido Comunista Chinês (CPC) formou o Comitê de Prevenção e Controle da covid-19. O presidente Xi Jinping pediu ao grupo para utilizar o mais avançado pensamento científico para formular suas políticas de contenção, e também usar todos os recursos necessários para garantir que os interesses do povo viessem antes dos econômicos. No dia 27 de janeiro, o vice-premiê do Conselho de Estado, Shun Chunlan, liderou uma equipe para coordenar a reação agressiva do governo no controle do vírus. Ao longo do tempo, o Partido Comunista desenvolveu uma estratégia para lidar com a doença, que pode ser resumida em quatro pontos principais:
- Prevenir a difusão do vírus mantendo não apenas a província isolada, mas também minimizando o movimento dentro dela. Isso foi complicado pelo feriado do ano novo chinês, que já havia começado (originalmente de 24 a 30 de janeiro): famílias se visitando, feiras e mercados lotados (é a maior migração temporária da humanidade, quando quase 1.4 bilhão de chineses viajam). Tudo isso teria que ser prevenido. Como parte dos esforços para combater a disseminação do vírus, o feriado foi estendido até dia 2 de fevereiro. Autoridades locais usaram as ferramentas epidemiológicas mais avançadas para rastrear transmissões. Isso era essencial para impedir que a doença se espalhasse.
- Providenciar recursos que funcionários da saúde e pacientes precisavam, incluindo equipamentos de proteção individual, leitos de hospital, testes e medicamentos. Esse esforço incluiu a construção de centros de tratamento temporários e, depois, dois hospitais completos. Para fazer mais testes, kits tinham que ser desenvolvidos e fabricados.
- Assegurar que durante a quarentena na província, comida e combustível estivessem disponíveis aos residentes.
- Assegurar que as informações divulgadas ao público fossem baseadas em fatos científicos e não boatos. Para garantir isso, equipes investigavam todos os relatos de irresponsabilidade de comunicação por parte das autoridades desde o início de janeiro.
Esses quatro pontos principais guiaram as ações tomadas pelo governo federal e poderes locais entre os meses de fevereiro e março. Um mecanismo de controle foi estabelecido com a liderança da NHC, com a capacidade de coordenar a batalha para interromper o ciclo de transmissão. A cidade de Wuhan e a província de Hubei permaneceram em isolamento por 76 dias.
No dia 23 de fevereiro, o presidente Xi Jinping discursou em uma teleconferência para 170 mil líderes militares e quadros do Partido Comunista de toda a China. “Isso é uma crise, mas também um grande teste”, disse o presidente. A China priorizaria o bem-estar das pessoas no seu combate à pandemia e, ao mesmo tempo, garantiria que seus interesses econômicos de longo prazo não fossem comprometidos.
Comitês de bairro
Algo muito importante – e várias vezes ignorado – em sua resposta ao coronavírus é algo que define a sociedade chinesa. Nos anos 1950, organizações civis urbanas – ou juweihui – foram criadas para os cidadãos de bairros organizarem segurança e assistência mútua. Em Wuhan, durante o confinamento, foram os membros dessas entidades que bateram de porta em porta para checar temperaturas, distribuir alimentos (especialmente aos idosos) e suprimentos médicos. Em outras partes da China, os comitês de bairro ergueram pontos de teste, onde monitoravam todos que entravam e saíam do bairro; isso é a saúde pública básica e descentralizada. Até o dia 9 de março, 53 pessoas exercendo essas funções morreram, 49 delas membros do Partido Comunista.
Os 90 milhões de membros do Partido Comunista ajudaram a moldar as ações públicas tomadas pelo país inteiro, nas mais de 650 mil comunidades urbanas e rurais. Médicos que fazem parte do partido foram até Wuhan ajudar na linha de frente. Outros membros do partido se voluntariaram em seus bairros ou desenvolveram novas plataformas para combater o vírus.
A descentralização definiu a criatividade das reações à pandemia. No vilarejo de Tianxinqiao, no distrito de Yuhua, província de Hunan, o radialista local Yang Zhiqiang utilizou 26 auto-falantes, simultaneamente, para pedir que residentes não saíssem no ano novo para visitar familiares e celebrar. Em Nanning, na Região Autônoma de Guangxi, a polícia usou drones com buzinas como um sistema de alerta para aqueles que violassem a diretiva de isolamento.
Em Chengdu, província de Sichuan, 440 mil cidadãos formaram equipes responsáveis por diversas ações públicas contra o vírus: divulgaram os regulamentos sanitários, mediam temperaturas, entregavam comida e medicamento, e encontravam maneiras de entreter uma população traumatizada. A cúpula do Partido Comunista liderou esse esforço, unindo comerciantes, movimentos sociais e voluntários numa estrutura autoadministrada. Em Pequim, moradores desenvolveram um aplicativo que envia alertas aos usuários sobre o vírus e cria um banco de dados que pode ser utilizado para rastrear o movimento do vírus na cidade.
Intervenção médica
Li Lanjuan foi uma das primeiras médicas a chegar em Wuhan. Ela relembra que, quando chegou, testes “eram difíceis de encontrar” e a situação de equipamentos era “bem ruim”. Em poucos dias, mais de 40 mil funcionários médicos chegaram na cidade. Pacientes com sintomas leves eram tratados em centros de saúde temporários, e aqueles com sintomas graves eram levados para os hospitais. Equipamentos de proteção pessoal, kits de teste, respiradores e outros suprimentos chegaram às pressas. “A taxa de mortalidade reduziu muito”, disse a Dra. Lanjuan. “Em apenas dois meses, a epidemia em Wuhan estava basicamente sob controle”, acrescentou.
Mais de 1,8 mil equipes de epidemiologistas de toda China – cada equipe com cinco pessoas – foram a Wuhan monitorar a população. Yao Laishun, membro de uma das equipes vindas da província de Jilin, afirma que em poucas semanas sua equipe havia feito mais de 374 mapeamentos epidemiológicos, que rastrearam e monitoraram 1.383 contatos; esse trabalho era essencial para localizar quem estava infectado, aqueles que precisavam ser isolados mesmo ainda não apresentando sintomas ou testando negativo. Até o dia 9 de fevereiro, as autoridades públicas inspecionaram 4,2 milhões de residências (10,5 milhões de pessoas) em Wuhan; isso quer dizer que atingiram 99% da população local, um feito gigantesco.
A velocidade da produção de equipamentos médicos – especialmente de proteção como luvas, máscaras e jalecos – foi impressionante. No dia 28 de janeiro, a China produzia menos de 10 mil itens de proteção pessoal por dia, porém, no dia 24 de fevereiro, a produção chegou a mais de 200 mil equipamentos diários. No dia 1 de fevereiro, o governo produzia 773 mil kits de teste por dia; no dia 25 do mesmo mês, esse número saltou para 1,7 milhão; no dia 31 de março, já eram 4,2 milhões por dia.
Diretivas do governo central fizeram com que fábricas se empenhassem para produzir equipamentos de proteção, ambulâncias, respiradores, monitores, umidificadores, desinfetantes aéreos, máquinas de hemoglobina e análise sanguínea. O governo focou suas atenções para que não houvesse falta de nenhum equipamento médico.
Chen Wei, uma das mais importantes virologistas da China, que batalhou contra a epidemia de SARS em 2003 e também foi a Serra Leoa em 2015 desenvolver a primeira vacina contra o Ebola do mundo, foi às pressas para Wuhan com sua equipe. Eles ergueram um centro de testes móvel no dia 30 de janeiro; no dia 16 de março, já haviam produzido a primeira vacina contra a covid-19 a entrar em testes clínicos, com a Dra. Chen sendo uma das primeiras pessoas a ser vacinada.
Alívio
Fechar uma província com 60 milhões de pessoas por mais de dois meses, e em grande parte isolar um país de 1,4 bilhão de habitantes não é uma tarefa fácil. O impacto socioeconômico seria enorme com certeza. No entanto, o governo chinês – com suas medidas iniciais – afirmou que os danos financeiros não definiriam a sua reação; o bem-estar do povo tinha que ser a força dominante na formulação de qualquer política.
No dia 22 de janeiro, o governo informou em nota pública que todo tratamento de covid-19 seria fornecido gratuitamente. Mais uma política de reembolsos para custos médicos, que garantiu que todos os gastos com medicamentos e serviços durante o tratamento fossem oferecidos, mais uma vez, gratuitamente. Nenhum paciente teve que pagar nada em nenhum momento.
Durante o isolamento, as autoridades criaram um mecanismo para assegurar o fornecimento de comida e combustível a preços normais. As empresas estatais de alimentos aumentaram suas produções de arroz, trigo, óleo, sal e carne. A Federação Chinesa de Cooperativas de Abastecimento ajudou na comunicação direta com fazendeiros e outras entidades como a Câmara Comercial da Indústria Agrícola para garantirem a estabilidade de preços.
O Ministério de Segurança Pública se reuniu, dia 3 de fevereiro, para monitorar e punir o abuso do aumento de preços e estocagem indevida. Até o dia 8 de abril, a procuradoria pública investigou 3.158 casos de crimes relacionados à pandemia. O Estado ofereceu apoio financeiro para pequenas e médias empresas; da sua parte, essas empresas se comprometeram a aderir aos protocolos de segurança com mais rigor.
Isolamento
Um estudo publicado no The Lancet por quatro epidemiologistas de Hong Kong mostra que o isolamento de Wuhan, iniciado no fim de janeiro, impediu que o vírus se espalhasse para fora de província de Hubei. Grandes cidades como Pequim, Shangai, Shenzhen e Wenzhou, segundo esses peritos, viram um rápido declínio em infecções dentro de duas semanas após o começo da quarentena. Apesar disso, os epidemiologistas advertem que, por causa da infecciosidade da covid-19 e a falta de imunidade coletiva, deve haver uma segunda onda de contágio. Isso preocupa muito o governo chinês, que mantém sua vigilância contra o novo coronavírus (um conjunto de casos em Harbin, perto da fronteira entre China e Rússia, reforçou a necessidade de vigilância).
Mesmo assim, as luzes comemorativas se espalharam por toda Wuhan quando o isolamento foi encerrado. Funcionários, médicos e voluntários respiraram aliviados. A China utilizou seus amplos recursos – e suas instituições e cultura socialista – para rapidamente quebrar a corrente de transmissão.
Pintando uma epidemia: uma entrevista com Li Zhong
9 de abril de 2020, Xangai
Nos sentamos com Li Zhong (李钟) em uma pequena casa de chá ao ar livre de um amigo; Zhong é pintor da Academia de Pintura e Caligrafia de Xangai e presidente da Associação de Artistas do Distrito de Fengxian. Um homem de quarenta e poucos anos, Zhong usava um blazer azul marinho e jeans e, é claro, uma máscara no rosto. Mesmo três meses após o início da epidemia da covid-19, em Xangai – uma cidade relativamente protegida do vírus que retomou a vida cotidiana – 100% das pessoas ainda usam máscaras enquanto estão fora de suas casas. As máscaras podem nos impedir de nos reconhecer nas ruas, mas ainda podemos sorrir atrás delas.
E há motivos para sorrir – o isolamento de 76 dias da cidade chinesa de Wuhan, a mais atingida, havia sido suspenso pouco mais de 24 horas antes de nos conhecermos. “Este é um momento muito emocionante para o povo chinês”, reflete Zhong. “Isso significa que a China derrotou o vírus e que as pessoas de toda a China confiam na ciência. Mas não podemos deixar de ser vigilantes ou todos os nossos esforços anteriores terão sido em vão”. Ele está se referindo às preocupações com o recente aumento de casos importados do vírus e os temores de uma segunda onda de infecções no país.
Conhecemos Zhong por meio de uma série de pinturas que ele fez em solidariedade aos trabalhadores que combatiam a covid-19 em Wuhan. As cenas retratam momentos cotidianos sensíveis em um estilo tradicional de pintura chinesa – tons de tinta preta com detalhes em cores, mais destacadamente os azuis e vermelhos das roupas médicas. Um guarda de trânsito sorvendo sua xícara de macarrão instantâneo, ainda de uniforme. Um segurança tirando uma soneca durante as intensas noites e dias de trabalho. Trabalhadores medindo temperaturas, costurando equipamentos de proteção individual, recolhendo o lixo e entregando suprimentos. Trabalhadores que, por trás das máscaras, se tornam anônimos e, em uma série, se tornam inteiros. Zhong começou a postar essas imagens em seus moments do WeChat (semelhantes às stories de outras redes sociais), que foram divulgadas e finalmente chegaram a alguns meios de comunicação. Porém, pouco foi dito sobre as origens das pinturas e quem estava por trás delas. Por isso, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social foi conversar com Li Zhong, em Xangai.
“Bem, este foi um ano especial”, disse Zhong. Depois de se apresentar brevemente, Zhong mergulha na sequência de eventos da epidemia de covid-19, que o levou a pintar: “Eu estava registrando o processo de como o povo chinês lutou contra o vírus; é um tipo de registro da bravura do povo chinês”. Ele é um artista que acredita profundamente na ciência. Ele categorizou seu trabalho meticulosamente: Epidemia violenta, Guerreiro da linha de frente, Perseverança popular, Apoio logístico, Suspensão de classes e Esboços antiepidêmicos. Mas reluta a falar sobre si mesmo como protagonista nessa história. Em vez disso, fala sobre valores socialistas. Elogia as ações decisivas do governo; nos últimos dois meses, milhões de pessoas foram mobilizadas em todo o país para trabalhar na linha de frente, com a maioria da população de 1,4 bilhão em alguma forma de isolamento.
“A razão pela qual eu criei as pinturas foi para mostrar os benefícios de um país socialista, e isso é diferente do capitalismo ocidental. Por exemplo, o povo chinês é um povo para quem a solidariedade é fundamental; nós somos um povo trabalhador. Durante a véspera de Ano Novo, as famílias chinesas se reúnem. No entanto, muitas pessoas sacrificaram esse precioso tempo com suas famílias para ajudar a combater o vírus. Muitas equipes médicas foram para Wuhan. Fiquei muito emocionado com essas ações. Foram tão nobres, mas são pessoas comuns como nós. Não são apenas a equipe médica, mas também a equipe e funcionários de base, funcionários da comunidade, muitas pessoas que abriram mão de seu festival tradicional. E isso é difícil para outros países fazerem”.
Homenagem a um anjo – um jantar diferente na véspera de Ano Novo (致敬天使·不一样的年夜饭) apresenta duas equipes médicas comendo às pressas, agachados, ainda paramentados. Uma refeição “diferente” também é retratada em um estilo diferente. Ele emprega o estilo tradicional chinês de pintura a serviço do momento contemporâneo, para “desenvolver o novo do antigo”, como Mao Zedong poderia ter dito. A pintura por lavagem de tinta surgiu durante a dinastia Tang e é comum em todo o leste asiático. Sua tinta preta característica, diluída em várias concentrações e tons, é pintada em um papel de arroz altamente absorvente e delicado. Depois que um traço é pintado, ele não pode ser modificado ou desfeito. Sua capacidade de capturar um momento não é medida por seu realismo, mas por sua essência – é uma captura instantânea que já começa a desaparecer quando o pincel encontra o papel, como se estivesse mudando com a velocidade de um vírus.
Na tradição da pintura socialista, Zhong volta nosso olhar para os trabalhadores – os sujeitos que foram consistentemente excluídos da pintura burguesa e que agora estão ausentes nas imagens da mídia ocidental sobre a resposta chinesa à pandemia. “Em todo o mundo, as pessoas podem dizer coisas ruins sobre a China, mas essa experiência mudou totalmente a opinião delas. Surpreendentemente, nunca consideraram a solidariedade do povo chinês […], mas agora todos estão pedindo ajuda à China e nós somos os únicos ajudando. A China ajudou 120 países, tanto com suprimentos quanto com pessoal”.
Ao celebrar aqueles que trabalham, o próprio Zhong também foi trabalhar. Durante sua auto-quarentena de um mês e meio, ele criou 129 pinturas – mais de duas novas pinturas por dia. Seu compromisso social é claro, tanto como artista quanto como membro do Partido Comunista da China. Zhong estudou e fez referência a imagens de reportagens online e televisionadas na China, “que mostraram muitas perspectivas dos trabalhadores”. As pinturas também voltaram para os próprios trabalhadores, como os vinte funcionários médicos de sua comunidade que foram para Wuhan. As pinturas lhes deram coragem e estímulo. “Eles me disseram que minhas pinturas refletem a verdade do surto. No futuro, quando virem minhas pinturas, não esqueceremos”, explicou Zhong.
No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social estamos envolvidos em uma batalha de ideias, que entendemos ser também uma batalha sobre o visual. Zhong fez arte que marca uma disputa nesta batalha. Uma arte “para mostrar aos soldados que estão lutando contra o vírus, e esses soldados não são apenas as equipes médicas. Incluem as pessoas que ficam em casa, elas também são lutadoras”. Ele nos convidou para ver uma representação diferente.
Uma de suas pinturas mostra uma criança em um cavalete, colorindo letras maiúsculas. Parem as aulas, mas não parem de aprender (抗击 疫情 停课 不停 学). “Por causa do vírus, as crianças não podem ir à escola”, explica Zhong. “Os especialistas dizem que o vírus pode ser transmitido de pessoa para pessoa. Então, as escolas tiveram que ser fechadas. Os alunos devem permanecer em quarentena, então eles estão desenhando quadrinhos em apoio aos trabalhadores médicos”. É um desenho dentro de um desenho, um registro de um registro sendo feito.
Quanto aos artistas, o que podemos fazer? “Eles podem refletir a situação positivamente. Eles devem ser verdadeiros. Não culpe outros países, não divulgue informações erradas, pois o maior desafio é derrotar o vírus, o que exige unidade”. Como soldados nessa batalha internacional contra a pandemia do covid-19, trabalhando nas linhas de frente ou nos bastidores, em quarentena em casa ou fora dela, cuidando ou sendo cuidados, em computadores ou cavaletes, Zhong nos lembra da ciência, do aprendizado e da verdade.