CoronaChoque e a guerra híbrida contra a Venezuela
CoronaShock n. 2
CoronaChoque é um termo que se refere à forma como o vírus atingiu o mundo com uma força avassaladora e como a ordem social do Estado burguês desmoronou diante dele, enquanto a ordem socialista pareceu mais resiliente.
Este é o segundo de uma série de três artigos sobre o CoronaChoque. É baseado em vários artigos escritos por Ana Maldonado (Frente Francisco de Miranda, Venezuela), Paola Estrada (Assembleia Internacional dos Povos e Movimentos da ALBA – capítulo Brasil), Zoe PC (People’s Dispatch) e Vijay Prashad (diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social).
But even the president of the United States
sometimes must have to stand naked.
[Até mesmo o presidente dos Estados Unidos
às vezes precisa ficar nu]
[Bob Dylan, It’s Alright, Ma, 1965.]
A loucura da guerra híbrida
O coronavírus e a Covid-19 movem-se rapidamente, percorrem continentes, saltam oceanos, aterrorizando populações em todos os países. O número de pessoas infectadas continua a aumentar, assim como o número de vítimas fatais. Mãos estão sendo lavadas, testes estão sendo feitos, o distanciamento social está sendo realizado. Não sabemos ainda o quão devastadora será essa pandemia ou quanto tempo durará.
Em 23 de março, doze dias após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, disse: “a fúria do vírus ilustra a loucura da guerra. É por isso que hoje estou pedindo um cessar-fogo global imediato em todos os cantos do mundo. Chegou a hora de encerrar o conflito armado e concentrar-se na verdadeira luta de nossas vidas”. O secretário-geral falou sobre silenciar as armas, deter a artilharia e acabar com os ataques aéreos. Ele não se referiu a um conflito específico, deixando seu pedido pairar pesadamente no ar. Após seis semanas de deliberação e atraso, causado por Washington, na primeira semana de maio o governo estadunidense bloqueou uma votação no Conselho de Segurança da ONU sobre uma resolução que pedia um cessar-fogo global.
No entanto, mesmo essa resolução não dedicava atenção ao tipo de guerra que os EUA estão levando a cabo contra Cuba, Irã e Venezuela, entre outros. Trata-se da imposição de uma guerra híbrida. O complexo militar dos EUA fez avanços em seu programa de guerra híbrida, que inclui uma série de técnicas para minar governos e projetos políticos, como a mobilização do poder dos EUA sobre instituições internacionais (como o FMI, o Banco Mundial e o serviços de transferências bancárias internacionais) para impedir que governos administrem sua atividade econômica básica; o uso do poder diplomático dos EUA para isolar governos; utilização de sanções para impedir que empresas privadas façam negócios com certos países; uso de guerra de informações para construir a imagem de governos e forças políticas como criminosos ou terroristas, e assim por diante. Esse poderoso complexo de instrumentos é capaz – à luz do dia – de desestabilizar governos e justificar mudanças de regime (para mais informações, consulte o dossiê n. 17 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Venezuela e guerras híbridas na América Latina).
Durante uma pandemia, é de se esperar que todos os países colaborem de todas as maneiras para mitigar a propagação do vírus e seu impacto na sociedade. É de se esperar que uma crise humanitária dessa magnitude possibilite pôr fim a todas as sanções econômicas desumanas e isolamentos políticos contra certos países. Em 24 de março, um dia após o pedido do Secretário-Geral da ONU, Guterres, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, concordou que “neste momento crucial, tanto por razões de saúde pública global, quanto por apoiar os direitos e as vidas de milhões de pessoas nesses países, as sanções setoriais devem ser flexibilizadas ou suspensas. Em um contexto de pandemia global, impedir esforços médicos em um país aumenta o risco para todos nós”.
Alguns dias depois, Hilal Elver, relatora especial da ONU sobre direito à alimentação, disse estar satisfeita ao ouvir Guterres e Bachelet pedir o fim do regime de sanções. O problema, ela indicou, está em Washington: “os EUA, sob o atual governo, estão muito interessados em continuar com as sanções. Felizmente, alguns outros países não. A União Europeia, por exemplo, e outros países europeus estão respondendo positivamente e flexibilizando as sanções durante esse período do coronavírus. Eles não estão levantando completamente as sanções, mas as interrompendo, e há algumas conversas em andamento, mas não nos EUA, infelizmente”.Em 6 de maio, outros três relatores especiais da ONU – Olivier De Schutter (pobreza extrema e direitos humanos), Léo Heller (direitos humano à água potável e saneamento) e Koumbou Boly Barry (direito à educação) – disseram que “à luz da pandemia de coronavírus, os Estados Unidos devem suspender imediatamente sanções gerais, que estão afetando severamente os direitos humanos do povo venezuelano”. No entanto, o governo Trump deixou de lado toda preocupação e continuou com sua agenda de guerra híbrida em direção à mudança de regime.
Hábitos de mudança de regime
Quando a Covid-19 chegou à América do Sul, o governo dos EUA aumentou a pressão sobre o governo venezuelano. Em fevereiro de 2020, na Conferência de Segurança de Munique, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, disse que os EUA buscam “derrubar Maduro”. No mês seguinte, em 12 de março, os EUA reforçaram as sanções contra a Venezuela e, em seguida, o Departamento do Tesouro pressionou o Fundo Monetário Internacional (FMI) de modo a não permitir que a Venezuela tenha acesso a fundos de emergência para enfrentar a pandemia global. Nada disso funcionou. Apesar da falta de apoio do FMI, o governo venezuelano mobilizou a população para frear a cadeia de infecção, com assistência internacional da China, Cuba e Rússia, bem como da Organização Mundial da Saúde.
Nesse ponto, o governo dos EUA mudou de foco. Sugeriu que o presidente Nicolás Maduro e seus principais líderes estão envolvidos no narcotráfico. Nenhuma evidência foi oferecida para essa alegação alucinatória, embora haja evidências substanciais da culpabilidade de políticos colombianos no comércio de drogas. O presidente dos EUA, Donald Trump, autorizou um destacamento naval atracar na costa venezuelana, ameaçar seu governo e intimidar sua população. Em 30 de abril, para aumentar a pressão, o governo Trump ativou partes da Reserva Selecionada das Forças Armadas para ajudar as FFAA dos EUA em uma missão chamada: “Operação Avançada de Combate ao Narcóticos do Departamento de Defesa no Hemisfério Ocidental”. Todos os sinais apontam para aventuras dos EUA e de seus aliados colombianos contra o povo venezuelano.
O governo dos Estados Unidos tem sido totalmente sincero quanto ao seu objetivo de derrubar o governo venezuelano e reverter a Revolução Bolivariana. Em agosto de 2017, Trump falou abertamente sobre a “opção militar” e formaram o Grupo de Lima, junto com Canadá, Colômbia e uma lista de outros países governados pela extrema direita e subordinada a Washington. Este tentou manter uma fachada liberal em torno de seu objetivo, afirmando em sua declaração que desejava “facilitar (…) a restauração do Estado de Direito e da ordem constitucional e democrática na Venezuela”. Trump se despiu de todo floreio desse tipo de linguagem liberal e interpretou a frase “restauração da ordem democrática” como um apelo a um golpe militar ou a uma intervenção armada para derrubar o governo.
Em janeiro de 2019, os Estados Unidos aprofundaram sua guerra híbrida com uma manobra diplomática inteligente. Declarou que Juan Guaidó, um político insignificante, era o presidente da Venezuela e lhe entregou substanciais bens venezuelanos que estavam fora do país. Porém, uma tentativa de levante liderada por Guaidó e pela extrema-direita na Venezuela para derrubar Maduro e reivindicar o poder não se concretizou, e Guaidó se viu com mais amigos em Washington e entre a oligarquia da Colômbia do que em casa, na Venezuela. No entanto, essa tentativa fracassada de derrubar o governo venezuelano não freou os Estados Unidos. De fato, o fracasso aprofundou a intervenção estadunidense na região.
Em maio de 2019, a senadora Lindsey Graham foi às páginas do Wall Street Journal para defender que os “EUA devem estar dispostos a intervir na Venezuela da mesma maneira que fizemos em Granada”. Em 1983, os fuzileiros navais dos EUA desembarcaram em Granada para derrubar o governo legítimo e arrancar o Movimento New Jewl. Caso certas medidas não sejam tomadas, a senadora Graham escreveu que os Estados Unidos “deveriam transferir ativos militares para a região”. Os Estados Unidos tentaram criar uma falange de aliados nas forças armadas brasileira e colombiana para se preparar para uma invasão da Venezuela. Felizmente, na reunião do Grupo de Lima em fevereiro de 2019, o vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, disse à imprensa que seu país não permitiria que os EUA usassem seu território para uma intervenção militar na Venezuela. Os planos de uma invasão em grande escala tiveram que ser adiados.
Punição coletiva
Em 10 de março, o ministro de Relações Exteriores venezuelano, Jorge Arreaza, nos disse que as “ações coercitivas unilaterais e ilegais que os Estados Unidos impôs sobre a Venezuela são uma forma de punição coletiva”. O uso da frase “punição coletiva” é significativo; sob a Convenção de Genebra de 1949, qualquer política que inflige danos em uma população inteira é um crime de guerra. A política estadunidense, segundo Arreaza, “resultou em dificuldades na aquisição necessária de medicamentos.”
Em teoria, as sanções unilaterais estadunidenses não se aplicariam a medicamentos, o que é uma ilusão. No dia 26 de março, onze senadores dos EUA enviaram uma carta ao secretário de Estado Mike Pompeo e o secretário do Tesouro Steve Mnuchin, que dizia: “Entendemos que a administração declarou que as necessidades humanitárias e médicas estão isentas das sanções dos EUA, mas nosso regime de sanções é tão amplo que os fornecedores de medicamentos e as organizações de socorro simplesmente evitam fazer negócios com Irã e Venezuela com medo de serem presos acidentalmente pela rede de sanções dos EUA”. Venezuela e Irã não conseguem comprar suprimentos médicos facilmente, tampouco transportá-los a seus países, ou utilizá-los em seus sistemas de saúde majoritariamente públicos. O embargo contra esses países – nessa era de Covid-19 – não é apenas um crime de guerra pelos parâmetros da Convenção de Genebra (1949), mas também um crime contra a humanidade, conforme define a Comissão de Leis Internacionais das Nações Unidas (1947).
Em 2017, o presidente Donald Trump restringiu ainda mais o acesso da Venezuela aos mercados financeiros. Dois anos depois, o governo estadunidense colocou o Banco Central Venezuelano numa lista suja e declarou embargo geral a suas entidades estatais. Se qualquer empresa fizer negócios com o setor público venezuelano, pode sofrer sanções secundárias. O Congresso americano passou a Lei de Combate a Adversários Americanos por Sanções (CAATSA, sigla em inglês) em 2017, que aumentou as sanções contra o Irã, Rússia e Coréia do Norte. No ano seguinte, Washington lançou novas limitações que sufocaram a economia iraniana. Mais uma vez, o corte do acesso ao sistema bancário global e ameaças às empresas que comercializavam com o Irã impossibilitou o país de fazer negócios. Em particular, os EUA deixaram muito claro que qualquer transação com os setores públicos e estatais da Venezuela e do Irã estava proibida. A infraestrutura de saúde que atende a grande parte da população do Irã e da Venezuela é administrada pelo Estado, o que significa que enfrenta dificuldades desproporcionais no acesso a equipamentos e suprimentos, incluindo kits de teste e medicamentos.
A Venezuela e o Irã confiaram na OMS para obter medicamentos e exames. No entanto, a organização enfrenta seus próprios desafios com sanções, principalmente quando se trata de transporte. Essas duras sanções forçaram as empresas de transporte a reconsiderar o atendimento ao Irã e à Venezuela. Algumas companhias aéreas pararam de voar para estes países e muitas companhias de navegação decidiram não irritar Washington. Quando a OMS tentou levar kits de teste para a Covid-19 dos Emirados Árabes Unidos (EAU)para o Irã, enfrentou dificuldades – como afirmou Christoph Hamelmann, da OMS – “devido a restrições de voo”. Os Emirados Árabes Unidos enviaram o equipamento por meio de um avião de transporte militar.
Da mesma forma, disse Arreaza, a Venezuela “recebeu solidariedade de países como China e Cuba”. No final de fevereiro, uma equipe da Sociedade da Cruz Vermelha chinesa chegou a Teerã para trocar informações com o Crescente Vermelho Iraniano e com funcionários da OMS. A China também doou kits e suprimentos para testes. As sanções, disseram as autoridades chinesas, não devem ter importância durante uma crise humanitária como essa; eles não irão obedecê-las.
Enquanto isso, os iranianos desenvolveram um aplicativo para ajudar sua população durante o surto de Covid-19 e o Google decidiu removê-lo de sua loja de aplicativos, uma consequência das sanções dos EUA.
Que tipo de fibra moral mantém unido um sistema internacional em que um punhado de países pode agir de maneira contrária a todas as aspirações mais elevadas da humanidade? Quando os Estados Unidos dão continuidade a seus embargos contra 39 países – com maior intensidade contra Cuba, Irã e Venezuela – em meio a uma pandemia global, o que isso diz sobre a natureza do poder e da autoridade em nosso mundo? As pessoas sensíveis devem se ofender com esse comportamento e seu espírito nefasto evidente nas mortes não naturais que provoca.
Quando a secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, foi questionada em 1996 sobre o meio milhão de crianças iraquianas que morreram por causa das sanções americanas, ela disse que essas mortes eram “um preço que valia a pena pagar”. Certamente não eram um preço que os iraquianos queriam pagar, nem os venezuelanos ou mesmo a maioria da humanidade.
FMI recebe ordens do Tesouro Nacional
No dia 16 de março de 2020, a chefe internacional do FMI, Kristalina Georgieva, escreveu um post na página do FMI; representa o tipo de generosidade necessária em meio a uma pandemia global. “O FMI segue pronto para mobilizar sua capacidade de empréstimo de 1 trilhão de dólares para ajudar seus membros”. Países com “necessidades urgentes de balança de pagamentos” poderiam ser ajudados pelo “flexível e rápido pacote de ferramentas de resposta a emergências” da instituição. Por meio desses mecanismos, e contra o seu próprio histórico de condições de ajuste estrutural, o FMI disse que poderia fornecer 50 bilhões para países em desenvolvimento e 10 bilhões de dólares para países de baixa renda a uma taxa de juros zero – sem as restrições usuais.
Um dia antes de Georgieva fazer essa declaração pública, o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela enviou uma carta ao FMI solicitando fundos para financiar os “sistemas de detecção e resposta” do governo em seus esforços contra o coronavírus. Na carta, o presidente Nicolás Maduro escreveu que seu governo está “executando diferentes medidas de controle altamente abrangentes, rigorosas e exaustivas (…) para proteger o povo venezuelano”. Essas medidas requerem financiamento e é por isso que o governo está “recorrendo à sua [organização] honorável para solicitar sua avaliação sobre a possibilidade de conceder à Venezuela um mecanismo de financiamento de 5 bilhões do fundo de emergência do Instrumento de Financiamento Rápido (RFI, sigla em inglês), recursos que contribuirão significativamente para fortalecer nossos sistemas de detecção e resposta”.
A política de Georgieva de fornecer assistência especial aos países deveria ter sido suficiente para o FMI prestar a assistência que o governo venezuelano havia solicitado. Mas, muito rapidamente, o Fundo recusou o pedido.
É importante ressaltar que essa negativa foi feita no momento em que o coronavírus começou a se espalhar na Venezuela. Em 15 de março, dia em que o governo de Nicolás Maduro enviou a carta ao FMI, o presidente também se encontrou com altos funcionários do governo em Caracas. O órgão farmacêutico venezuelano estatal (Cifar) e as empresas venezuelanas de equipamentos médicos disseram que seriam capazes de aumentar a produção de máquinas e medicamentos para conter a crise; no entanto, afirmaram que necessitariam de matérias-primas essenciais que precisam ser importadas. O governo foi ao FMI para poder pagar por essas importações. A negativa impactou diretamente o aparato sanitário venezuelano e impediu o combate adequado da pandemia.
“Esta é a situação mais terrível que já enfrentamos”, disse o presidente Maduro ao implantar novas medidas. O país entrou em quarentena indefinida e implementou processos para distribuir alimentos e suprimentos essenciais, com base nas comunas locais que foram desenvolvidas durante a Revolução Bolivariana. Todas as instituições do Estado estão agora envolvidas em ajudar a “achatar a curva” e “quebrar a cadeia” de contágio. Mas, devido à negativa do FMI, o país teve mais dificuldade em produzir kits de teste, respiradores e medicamentos essenciais para os infectados pelo vírus.
A Venezuela é um membro fundador do FMI. Apesar de ser um Estado rico em petróleo, recorreu ao FMI para várias formas de assistência. O ciclo de intervenções do Fundo na Venezuela, na década de 1980 e no início da década de 1990, levou a um levante em 1989 – o Caracazo – que colocou em xeque a elite venezuelana; foi por trás dos protestos populares contra o FMI que Hugo Chávez construiu a coalizão que o levou ao cargo em 1998 e iniciou a Revolução Bolivariana em 1999. Em 2007, a Venezuela pagou suas dívidas pendentes ao FMI e ao Banco Mundial; o país cortou seus laços com essas instituições, na esperança de construir um Banco do Sul – enraizado na América Latina – como alternativa. Porém, antes da criação deste Banco, uma série de crises atingiu a América Latina, forçada pela queda nos preços das commodities de 2014 a 2015.
A economia venezuelana dependia das exportações de petróleo para gerar a renda necessária para importar produtos. Junto à queda do preço do barril entre 2014 e 2018, veio um ataque direto dos EUA, que impôs novas sanções unilaterais. Essas sanções impedem empresas de petróleo e transporte de fazer negócios com a Venezuela; bancos internacionais apreenderam bens venezuelanos em seus cofres (inclusive 1,2 bilhão de dólares em ouro no Banco da Inglaterra) e pararam de fazer negócios com o país. Essas sanções, que pioraram depois de Donald Trump virar presidente dos Estados Unidos, diminuíram muito a capacidade da Venezuela de vender seu combustível e comprar produtos, inclusive mantimentos para o setor de saúde.
Em janeiro de 2019, após o governo estadunidense tentar usurpar o poder, bancos nos Estados Unidos começaram a tomar posse de bens venezuelanos e entregá-los ao autoproclamado presidente. Depois, em uma decisão inesperada, o FMI anunciou que Caracas não poderia utilizar seus 400 milhões de dólares em direitos de saque especiais, a moeda do FMI. Justificaram a ação alegando a incerteza política na Venezuela. Em outras palavras, por causa da tentativa de golpe, que falhou, o FMI disse que não iria “escolher lados” na Venezuela; ao não tomar partido, o Fundo impediu que o governo venezuelano acessasse seu próprio dinheiro. Surpreendentemente, Ricardo Hausmann, ex-secretário de Guaidó, disse na época que sua expectativa era de que, quando houvesse a troca de regimes, o dinheiro estaria disponível ao novo governo. Isso é um exemplo do FMI intervindo diretamente na política venezuelana.
Naquela época, tanto como agora, o FMI não nega que o governo de Nicolás Maduro seja o legítimo governo venezuelano. O órgão continua a reconhecer oficialmente que o representante do país é Simon Alejandro Zerpa Delgado, o ministro de finanças de Maduro. Uma das razões disso é o fato que Guaidó não conseguiu o apoio de uma maioria de Estados membros do Fundo. Porque Guaidó não conseguiu estabelecer sua legitimidade, o FMI – mais uma vez de maneira inesperada – negou ao governo de Maduro seu direito de acesso a seus próprios fundos e de fazer empréstimos com a mesma facilidade que outros membros.
Normalmente, o FMI demora em dar um retorno quando recebe um pedido de dinheiro, que é estudado por analistas que fazem um levantamento da situação e determinam se o pedido é legítimo. Dessa vez, deram uma resposta de imediato: não.
Um porta-voz do fundo – Raphael Aspach – não respondeu perguntas específicas sobre essa decisão; em 2019, foi igualmente cauteloso ao explicar a não liberação de 400 milhões de dólares em SDR. Dessa vez, Anspach enviou uma nota oficial que o FMI já havia divulgado na imprensa. O comunicado dizia que embora entendesse a situação do povo venezuelano, não estava “numa posição para considerar esse pedido”. O motivo, disse o FMI, era que “relações com países membros são predicadas no reconhecimento oficial de seus governos pela comunidade internacional”. Atualmente, não há “esclarecimento sobre esse reconhecimento neste momento”, dizia a nota.
Mas existe clareza. O FMI listava o ministro de relações exteriores de Nicolás Maduro em sua página, ao menos até meados de março. Esse deveria ser o parâmetro oficial para fazer essa determinação. Porém, não é. O fundo está recebendo ordens dos Estados Unidos. Em abril de 2019, o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, foi ao Conselho de Segurança da ONU, onde declarou que o órgão deveria aceitar Juan Guaidó como o legítimo presidente da Venezuela. Depois, virou-se ao embaixador venezuelano nas Nações Unidas, Samuel Moncada Acosta, e disse: “Você não devia estar aqui”. Um momento de enorme simbolismo, com os EUA se comportando como se a ONU fosse sua casa e pudessem convidar e desconvidar quem quiserem. A rejeição do pedido venezuelano de 5 bilhões de dólares vai ao encontro das declarações de Mike Pence. É uma violação do espírito de cooperação internacional que está no coração da Carta das Nações Unidas.
Há sinais de fraqueza na posição dos EUA. Em 18 de dezembro de 2019, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou – sem voto – uma resolução que aceitou as credenciais dos diplomatas nomeados pelo governo de Maduro. O fato de não ter havido votação revela que os Estados Unidos não querem explicitar claramente o apoio minoritário do mundo em relação a sua posição de isolar o governo da Venezuela. Os EUA preferem renunciar a uma votação em nome do interesse de fabricar e manter uma narrativa obscura, do que permitir que a comunidade internacional de fato vote abertamente e mostre que aceita o governo Maduro como o governo legítimo da Venezuela.
As acusações alucinatórias do narcotráfico
Em uma coletiva de imprensa em 26 de março, foi embaraçosa a pouca evidência que o Departamento de Justiça dos EUA forneceu quando acusou o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e vários dos líderes de seu governo de narcotráfico. Os EUA ofereceram 15 milhões de dólares pela prisão de Maduro e 10 milhões pelos demais. Maduro, disse o procurador dos EUA Geoffrey Berman de forma dramática, “implantou deliberadamente a cocaína como arma”. Provas? Não apresentadas. Uma acusação não é um veredicto de culpa, mas apenas uma afirmação – neste caso – preparada pelo governo dos EUA contra um adversário; não há nada na acusação que comprove que qualquer um dos indivíduos mencionados tenha algo a ver com o contrabando de entorpecentes. Ficou evidente na conferência de imprensa do Departamento de Justiça dos EUA que se tratava de teatro político, uma tentativa de deslegitimar ainda mais o governo de Maduro.
É surreal que os Estados Unidos – durante a pandemia global de Covid-19 – optem por dedicar esforços nessa acusação ridícula e sem evidências contra Maduro e outros membros do governo. Já há pressão para suspender as sanções não apenas contra a Venezuela, mas também contra o Irã (até o The New York Times de 25 de março pediu o fim das sanções contra o país persa). A Organização Mundial da Saúde deixou claro que esse não é o momento de dificultar a capacidade dos países de obter suprimentos preciosos para enfrentar a pandemia. Desesperados, os EUA tentaram mudar a conversa – não mais sobre a Covid-19 e as sanções, mas sobre o narcoterrorismo.
Quando perguntado sobre essas acusações, o procurador-geral dos EUA, William Barr, tentou dizer que a falha não estava em Washington, mas em Caracas. Ele disse, na ausência de qualquer evidência, que a Venezuela impede a entrada de ajuda no país. Nada poderia estar mais longe da verdade, já que a Venezuela recebeu equipamentos e pessoal médico da China, Cuba e Rússia, bem como da OMS; esta última, de fato, pressionou os EUA a flexibilizar as rédeas para permitir a entrada de mercadorias no país – um pedido que os EUA acataram. Barr pode dizer tão facilmente o oposto da verdade porque nenhum dos meios de comunicação na conferência de imprensa o desafiaria em relação a esses assuntos publicamente.
Em 1989, os EUA usaram a acusação de narcotráfico – especificamente de cocaína – para manchar a reputação de seu antigo patrimônio, o então presidente do Panamá Manuel Noriega. Com base nessa acusação na Flórida, os EUA finalmente invadiram o país, prenderam Noriega, colocaram as marionetes de Washington na Cidade do Panamá e jogaram o ex-presidente panamenho em uma prisão na Flórida. A sombra de como os EUA lidaram com Noriega paira sobre Caracas.
A recompensa pela cabeça de Maduro e sua liderança sugere que o governo dos Estados Unidos deu um golpe de máfia. Uma jogada muito perigosa. Essencialmente, dá a bandidos uma luz verde para tentar assassinar Maduro dentro da Venezuela. A recusa em permitir que Maduro viaje para o exterior viola uma série de convenções internacionais que promovem a diplomacia sobre a beligerância. Mas, dada a maneira sem lei que os EUA formularam sua estratégia de mudança de regime na Venezuela – e ao longo da História – é improvável que alguém vá criticar esse movimento.
Poucas horas antes do anúncio, em Washington, começou a se espalhar a notícia de que os Estados Unidos colocariam o governo da Venezuela na lista de “Estados patrocinadores do terrorismo” – a mais alta condenação de um governo. Mas tiveram que fazer uma pausa, ainda que por razões absurdas. Se o governo dos EUA acusasse o governo de Maduro de ser um “Estado patrocinador do terrorismo”, estaria tacitamente reconhecendo Maduro como presidente da Venezuela. Desde janeiro de 2019, uma das tentativas de desestabilização foi negar a legitimidade do governo Maduro, na verdade, negar o governo. Seria impossível dizer que a Venezuela é um “Estado patrocinador do terrorismo” sem reconhecer o atual governo venezuelano. Assim, os Estados Unidos tiveram que recuar, pegos pela própria lógica.
A declaração divulgada pelo Departamento de Justiça dos EUA parece uma obra de suspense, e a falta de evidências a compara à ficção. Lista nomes e acusações, faz constantes referências ao “narcoterrorismo” e afirma que o governo venezuelano deseja “inundar” os Estados Unidos com cocaína. Seria necessário um esforço sobre-humano de cegueira para acreditar nesse delírio sem fundamento. A questão é que tal atitude deve ser levada a sério pelo povo venezuelano, pois representa um aprofundamento da beligerância estadunidense. Os venezuelanos estão cientes dos perigos de uma situação do tipo Panamá. É difícil resposabilizá-los. Esse é o histórico do governo dos Estados Unidos.
A comparação com uma situação do tipo Panamá não pode ser considerada paranoia. No dia da mentira, 1º de abril, Trump deu uma conferência de imprensa na qual anunciou um novo “esforço antinarcótico” por parte do Comando Sul dos EUA. “Estamos implantando destróieres na Marinha, navios de combate, aeronaves e helicópteros, embarcações da Guarda Costeira, e aeronaves de vigilância da Força Aérea, dobrando nossas capacidades na região”, disse. O objetivo desta missão – que será acompanhada por outros países – é “aumentar a vigilância, interrupções e apreensões de remessas de drogas”. “Não devemos deixar que os cartéis de drogas explorem a pandemia para ameaçar vidas americanas”, acrescentou.
Em menos de uma semana após a acusação estadunidense, ficou claro que o objetivo não é realmente atrapalhar o comércio de cocaína, mas pressionar a Venezuela. Nenhuma evidência foi fornecida durante a conferência de imprensa do Departamento de Justiça, quando os Estados Unidos acusaram Maduro de narcotráfico, e nenhuma evidência foi apresentada na conferência de imprensa de Trump quando ele anunciou que um grupo de transportadores navais entraria no Caribe. Não houve evidência apresentada em nenhum evento de alto nível, porque não existe nenhuma evidência; até as próprias agências governamentais estadunidenses dizem que na Venezuela não se produz nem se trafica narcóticos. Além do mais, os Estados Unidos têm consistentemente deslegitimado a Venezuela para derrubar o governo com base em crescentes histórias alucinatórias sobre seu governo.
Em dezembro de 2019, a Agência Antidrogas dos EUA (DEA) lançou sua Avaliação Nacional de Ameaças às Drogas. Esse estudo oferece uma visão mais detalhada da movimentação das drogas nos Estados Unidos. Em vários pontos do documento, o DEA diz que a Colômbia é a “principal fonte de cocaína apreendida nos Estados Unidos”. De acordo com o DEA, em 2018, “aproximadamente 90% das amostras de cocaína testadas eram de origem colombiana, 6% eram de origem peruana e 4% eram de origem desconhecida”. De acordo com a própria agência antidrogas estadunidense, não há cocaína ou qualquer outro narcótico proveniente da Venezuela.
Tanto na coletiva de imprensa do Departamento de Justiça quanto na de Trump, foram mostrados mapas que indicavam o tráfico de cocaína da Venezuela para os Estados Unidos. Uma mentira, segundo as próprias informações do DEA: “A maior parte da cocaína e heroína produzida e exportada pelas Organizações Criminosas Transnacionais (OCT) da Colômbia para os Estados Unidos é transportada pela América Central e México”, escrevem funcionários do DEA em seu relatório de 2019. No entanto, há sugestões de que os narcotraficantes colombianos às vezes “armazenam grandes quantidades de cocaína em áreas remotas da Venezuela e do Equador até que o transporte marítimo ou aéreo possa ser garantido”. É importante reconhecer que a cocaína e a heroína estão escondidas em “áreas remotas” dos vizinhos da Colômbia, sendo esta o foco de todo o comércio. Em nenhum momento em todo o documento do DEA de 146 páginas, e de documentos de anos anteriores, as autoridades antidrogas fazem qualquer declaração que implique ao governo venezuelano na produção, armazenamento ou transporte de cocaína e heroína. A única vez que a Venezuela entra em cena é quando os narcotraficantes colombianos escondem entorpecentes em suas “áreas remotas” antes de transportá-los para a América Central e México e depois para os Estados Unidos.
Contudo, existem evidências significativas – conforme apresentado pelo jornalista colombiano Gonzalo Guillén em La Nueva Prensa, em 3 de março de 2020 – de que o presidente da Colômbia, Iván Duque, e seu patrono, o ex-presidente Álvaro Uribe, mantiveram laços estreitos com o narcotraficante José Guillermo Hernández Aponte, também conhecido por Ñeñé. No dia anterior, Duque estava no Salão Oval quando Trump o repreendeu por não fazer o suficiente para erradicar a produção de cocaína na Colômbia. “Bem, você terá que fumigar”, disse Trump a Duque. “Se você não fumigar, não se livrará deles. Então, em relação às drogas na Colômbia, você tem que fumigar”.
Trump estava falando sobre a fumigação de glifosato que o governo da Colômbia interrompeu em 2015 porque a OMS disse que essas fumigações causavam câncer. Apesar disso, Duque disse que as retomará. Não houve menção às acusações de que Duque está ligado a narcotraficantes; como ele está alinhado a Washington, seus próprios supostos crimes não são trazidos à tona. O patrono de Duque – Uribe, ex-presidente colombiano e atual membro do Senado – está atualmente envolvido em mais de 270 processos na Colômbia, com acusações que incluem escutas telefônicas ilegais, crime organizado, assassinatos seletivos e desaparecimentos forçados. Uribe e membros de sua família têm vínculos comprovados com o grupo paramilitar Bloque Metro, de Antioquia, responsável por milhares de assassinatos de civis colombianos e profundamente envolvido no narcotráfico.
Estranhamente, naquela conferência de imprensa, Trump e Duque conversaram sobre a Venezuela, mas não mencionaram drogas ou narcotráfico. Era tudo sobre mudança de regime.
Em 31 de março, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, anunciou que a Venezuela deve ter um governo de transição; isso, por si só, é bizarro porque Pompeo não é nem venezuelano nem funcionário das Nações Unidas e, no entanto, sentiu-se encorajado a falar pelo povo venezuelano. Seu plano, “Quadro de Transição Democrática para a Venezuela”, pedia que Maduro renunciasse e que Juan Guaidó, substituto favorito de Washington, renunciasse à sua reivindicação imaginária de poder. Membros dos quatro principais partidos, incluindo o Partido Socialista, de Maduro, formariam um conselho e seriam liderados por um “presidente interino”. Se esse plano for aceito, Washington levantará suas sanções coercitivas unilaterais que impôs a partir de 2014.
No fim de semana anterior, Guaidó anunciou no Twitter que a Venezuela precisava de um “governo de emergência” que tivesse a participação de todos os partidos e governaria até que novas eleições pudessem ser realizadas. Após o anúncio de Pompeo, Guaidó assumiu o crédito e agradeceu publicamente a ele. Outros políticos de extrema direita, como Leopoldo López, Carlos Vecchio e Julio Borges, saudaram o plano e agradeceram aos EUA por apoiarem o “governo de emergência” de Guaidó. Quando soube que as canhoneiras estão chegando em direção à costa venezuelana, María Corina Machado, do Partido Vente Venezuela, twittou: “Assim se constrói uma ameaça crível”. É crível porque as canhoneiras já fizeram isso antes.
A Organização dos Estados Americanos (OEA), que se comportou como uma extensão do Departamento de Estado dos EUA durante o golpe contra o governo de Evo Morales na Bolívia, em novembro passado, juntou-se ao coro iniciado por Pompeo e Guaidó. Em comunicado, a OEA declarou que “considera que o plano apresentado constitui uma proposta válida para um caminho para acabar com a ditadura usurpadora e restaurar a democracia no país”.
O governo venezuelano liderado pelo presidente Maduro rejeitou o plano. Mas não ficou sozinho. O principal oponente de Maduro nas eleições presidenciais de 2018, Henri Falcón, do partido Avanzada Progresista, também rejeitou o plano Pompeo-Guaidó e o envio de navios de guerra dos EUA à costa venezuelana. A remoção de Maduro, disse Falcón, é um processo e não uma imposição; exige acordos entre adversários para que seja bem-sucedida. A solução na Venezuela é entre os venezuelanos. “A pandemia”, escreveu, “está causando estragos no mundo. A Venezuela é uma das mais vulneráveis. Seria humanitário e muito bom se os navios viessem com ajuda e remédios e seria muito desumano se viessem carregados de armas e ameaças”.
A maioria da oposição na Venezuela, como Falcón, não aprovou a submissão de Guaidó a Trump e Pompeo. Claudio Fermín, do Partido Soluciones para Venezuela, atacou a “tese irresponsável e fantasiosa” de Guaidó e seus apoiadores, que depende da “nuvem fantasiosa de instruções enviadas a ele por seus chefes Elliot Abrams, Pompeo e Trump”. Henrique Capriles Radonski, que duas vezes concorreu sem sucesso para ser presidente, disse que Maduro tem “controle interno”, enquanto o pessoal de Guaidó tem “alianças internacionais”.
Muito disso nos dá a sensação de déjà vu. Em 7 de outubro de 1963, o presidente dos EUA, John F. Kennedy, reuniu seus assessores na Casa Branca para discutir como derrubar o governo democraticamente eleito de João Goulart, no Brasil. Kennedy perguntou com franqueza: “Você acredita que estamos chegando a um ponto em que teremos – que acharemos desejável intervir militarmente?”. Seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, disse que havia trabalhado em um plano com o Comando Sul dos EUA – com sede no Panamá – e com seus contatos nas Forças Armadas brasileiras. Uma invasão dos EUA, disse Gordon a Kennedy, exigiria uma “operação militar massiva”, que “dependeria do que os militares brasileiros fariam”. Qualquer golpe sem grande apoio militar levaria ao “início do que seria uma guerra civil”.
Assim, em vez de arriscar uma guerra civil, Gordon acreditava que os militares tinham que agir e os Estados Unidos deveriam fornecer a eles apoio diplomático e militar. Em março de 1964, Gordon disse que o “desenvolvimento mais significativo é a cristalização de um grupo de resistência militar sob a liderança do general Humberto Castelo Branco”. Washington deu a luz verde. A operação Irmão Sam foi acionada, que incluía incitar os generais e enviar uma enorme força-tarefa naval para a costa do sul do Brasil. Um porta-aviões, dois destróieres de mísseis guiados e outras embarcações de apoio deixaram Aruba e fizeram sua jornada ao Brasil. O general Castelo Branco moveu-se contra Goulart; esse golpe criou uma ditadura militar – apoiada por Washington – que durou 21 anos e matou, deteve e torturou milhares de pessoas.
O grupo de transportadores dos EUA que fica na costa da Venezuela parece imitar a Operação Irmão Sam de 1964. Em vez de focar a atenção no problema premente de controlar o coronavírus nos Estados Unidos – ou mesmo entre suas forças militares – Trump começou manobras que poderiam muito bem levar a um perigoso e sério choque no mar do Caribe.
O povo colombiano rejeita a guerra híbrida contra a Venezuela
Em 21 de novembro de 2019, o povo colombiano foi às ruas em grande número para rejeitar as políticas do governo lideradas pelo presidente Iván Duque. Em particular, o povo pediu a retirada de duas políticas. Primeiro, queriam que o governo de direita de Duque avançasse os Acordos de Paz de 2016 entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Esses acordos, negociados de boa fé, teriam encerrado uma guerra que durou seis décadas (70% da sociedade colombiana nasceu durante essa guerra). Segundo, o povo queria acabar com as duras políticas de austeridade impulsionadas pelo governo de Duque, que incluem cortes nas universidades públicas, no sistema de aposentadorias e diversos gastos sociais. A principal federação sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) da Colômbia, convocou esse protesto, que depois se expandiu para uma revolta em massa contra Duque e o sistema político colombiano.
O secretário-geral da CUT e porta-voz do Congresso do Povo, Edgar Mojica, estava nas barricadas diariamente, ajudando a mobilizar as massas, o que sugeria que a sociedade colombiana não queria mais ser refém dos caprichos de sua oligarquia esclerótica e do governo dos Estados Unidos. Esse era o clima. Isso ficou claro nos slogans e grafites que surgiram em Bogotá, capital da Colômbia, e depois em cidades menores. As duas demandas – implementar os Acordos de Paz e acabar com a austeridade – estão relacionadas. A oligarquia colombiana teme que contribuir para a construção de uma paz abrangente e genuína fará as FARC chegar ao cenário político e fortalecerá a esquerda; uma esquerda mais forte terá o poder de anular não apenas a agenda de austeridade, mas também a orientação pró estadunidense das classes dominantes colombianas (para mais informações, consulte o dossiê n. 23 Paz, Neoliberalismo e mudanças políticas na Colômbia).
A outra organização de esquerda – o Exército de Libertação Nacional (ELN) – tentou de boa fé negociar com o governo de Duque, mas viu a porta bater em seu rosto repetidamente, como Pablo Beltrán, líder do ELN, disse à jornalista e educadora argentina Claudia Korol ano passado. Duque intensificou a campanha militar contra o ELN. Se os Acordos de Paz com as Farc e as conversas com o ELN se aprofundarem, isso minará o poder da oligarquia e de Washington. Como Olimpo Cárdenas, do Congresso do Povo, disse há dois anos, “existe um setor da oligarquia colombiana que se beneficia da guerra”.
Há dias em que parece que o presidente Duque não pode tomar decisões sem consultar o governo dos EUA e seu mentor, Álvaro Uribe. O conselho que recebe é se aprofundar em uma aliança com os Estados Unidos, mesmo à custa da opinião pública na Colômbia. Seria adequado chamar a política de Duque em relação aos Estados Unidos de “política de capacho”: oferece a Colômbia para que os Estados Unidos limpe seus pés antes de marchar para a vizinha Venezuela. Quando falamos recentemente com Mojica, ele disse que “o governo colombiano é um governo submisso. É inclinado para as decisões do governo norte-americano”.
Este não é um novo desenvolvimento. No início do século 20, a política externa da Colômbia foi definida pelo princípio do Respicium Polum (“Olhe em direção ao norte”). Mais recentemente, nos anos 1990, a política externa dos EUA mudou seu olhar da América Central para a Colômbia; O Plano Colômbia, desenvolvido em 1999, conduziu uma agenda militarizada dos EUA e da oligarquia colombiana na “Guerra às Drogas”, que era essencialmente uma tentativa de derrotar qualquer insurgência revolucionária e consolidar o controle sobre o território andino-amazônico. O que é realmente novo, diz Mojica, é que Duque fez tudo para facilitar o bloqueio contra a Venezuela e a potencial intervenção militar.
Quando os governos do Canadá e dos Estados Unidos instaram seus parceiros na América Latina a criarem uma plataforma contra a Venezuela, que se tornou o Grupo de Lima, em 2017, a Colômbia era um ávido participante. Em fevereiro de 2019, Duque deu as boas-vindas ao Grupo de Lima em Bogotá durante uma aposta de alto risco pelos Estados Unidos para derrubar o governo venezuelano do presidente Maduro. Naquela época, Mojica e outros líderes do movimento social criticaram a maneira como seu país estava sendo usado pela oligarquia colombiana e pelos Estados Unidos para fins restritos, contra o interesse do povo colombiano. Mojica nos disse: “Temos denunciado isso desde o ano passado, começando quando o presidente Duque se prestou a legitimar Guaidó e a legitimar as posições que o Grupo de Lima teve em relação à Venezuela”. A crescente tensão militar com a Venezuela se adequa à agenda do governo de Duque. Isso significa que ele pode adiar qualquer discussão sobre a plena implementação dos Acordos de Paz e deixar de lado qualquer crítica a suas políticas de austeridade. Desde 2016, centenas de líderes de movimentos sociais foram assassinados em toda a Colômbia; essa violência é obscurecida pelo foco que a mídia dá à fronteira colombiano-venezuelana.
Com o governo dos EUA afirmando absurdamente que a Venezuela é a fonte de narcotráfico – embora todas as evidências apontem para seu enraizamento na Colômbia – a pressão sobre este país para lidar com seu problema agora foi suspensa. De fato, os laços íntimos entre a oligarquia e os narcotraficantes estão agora ocultos pela alegação alucinatória de que Maduro está envolvido nesse comércio ilegal.
Mojica nos disse que toda a política antidrogas é uma “distração” porque falha em entender o problema real. “Rejeitamos as políticas de fumigação de culturas e a chantagem do governo colombiano” pelos EUA, que usam seu poder internacional para forçar mudanças de política no país. Mojica explicou que o fato da produção de folhas de coca por pequenos agricultores ser o “primeiro passo da produção”, e como eles não têm outra fonte de receita para sustentar suas famílias, os agricultores servem como “o elo mais fraco da cadeia” e um alvo fácil para programas de erradicação da cocaína.
Esses pequenos agricultores, cujas fazendas e corpos serão saturados por produtos químicos tóxicos, não são os principais culpados por trás do comércio de drogas, nem o bem-estar deles é a principal preocupação do governo de Duque. No entanto, se configuram como um bode expiatório conveniente para mascarar as ações daqueles que realmente puxam as cordas. A responsabilidade pelo comércio colossal de drogas, sobre a qual o governo Trump e seus comparsas estão supostamente tão preocupados, recai principalmente sobre os grandes cartéis colombianos, que traficam as drogas pelo México e América Central para a América do Norte; a máfia das drogas na própria América do Norte; e a imensa demanda – principalmente nos EUA e na Europa – por consumo de cocaína da América do Sul.
Mas nenhum dos principais culpados enfrenta o peso da política de erradicação de drogas, reservada ao “elo mais fraco”. “Os plantadores de coca e suas famílias não têm alternativa em termos de apoio financeiro para a erradicação de suas plantações”, disse Mojica. Apesar disso, tornaram-se injustamente a linha de frente da guerra. Os Acordos de Paz de Havana de 2016 fornecem um mecanismo para auxiliar os agricultores na transição do cultivo de culturas ilícitas. No entanto, como em muitas outros pontos do processo de paz, o protocolo não foi respeitado; comunidades camponesas denunciaram repetidamente incidentes de erradicação forçada pelo Exército. O assassinato dos líderes dessas comunidades geralmente é realizado por grupos paramilitares, cartéis e uma seção das forças armadas conhecida como Fuerza Pública.
Os governos dos EUA e Duque, diz Mojica, usam a questão das drogas para colocar em marcha uma agenda de mudança de regime na Venezuela. As questões são tão graves que o governo colombiano permitiu que as tropas estadunidenses entrassem em seu território – tanto na costa do Caribe quanto na fronteira venezuelano-colombiana, como na região de Catatumbo. “Pensamos que de lá eles estão preparando uma invasão de terra”, diz Mojica. Estes são tempos tensos, com a possibilidade iminente de manobras militares se transformarem em guerra.
O Senado colombiano tem manifestado sua oposição ao uso do território do país para desestabilizar a Venezuela. Em abril de 2020, um grupo de congressistas escreveu uma carta pública a Duque dizendo que seu país não deve interferir na mudança de regime na Venezuela. Se Duque quiser seguir tal agenda, deve pedir permissão ao Congresso. Mojica nos disse que os movimentos sociais colombianos “rejeitam completamente” a agenda de Trump. “Nós não somos o seu quintal”, disse o líder sindical sobre os Estados Unidos e, portanto, também não é o seu capacho. “Não toleramos suas políticas antidrogas; não toleramos suas políticas de saquear nossos recursos naturais e nosso meio ambiente”.
A Baía dos Leitões
Nas primeiras horas da manhã de domingo, 3 de maio, lanchas deixaram as costas colombianas e se dirigiram à Venezuela – embora não tivessem autorização para atravessar a fronteira marítima – e desembarcaram na costa venezuelana de La Guaira. Era claramente uma ação hostil, já que os barcos carregavam armas pesadas, incluindo rifles de assalto e munição. Os tripulantes possuíam telefones via satélite, além de uniformes e capacetes com a bandeira dos Estados Unidos da América. A incursão foi interceptada pelos militares venezuelanos (FANB), que os combateram; oito dos beligerantes foram mortos, enquanto dois foram detidos e vários escaparam temporariamente. Um dos presos disse ser um agente da Agência Antidrogas dos EUA (DEA). No dia 4 de maio, as forças de segurança venezuelanas, auxiliadas pelos pescadores e milícias bolivarianas da cidade costeira de Chuao, prenderam mais oito mercenários em uma lancha que tentavam entrar no país. Outros dois foram capturados pelas forças de segurança venezuelanas no mesmo dia na cidade de Puerto Maya. Durante as prisões, mais armas e equipamentos de inteligência militar foram apreendidos pelas forças de segurança venezuelanas.
Néstor Reverol, ministro de assuntos internos da Venezuela, disse às emissoras de televisão venezuelanas horas após a frustrada incursão que o governo recebeu informações sobre o ataque de fontes na Colômbia e de suas próprias patrulhas regulares no litoral. “Não podemos aceitar nenhuma de suas ameaças”, disse o político venezuelano Diosdado Cabello. “O que aconteceu hoje é um exemplo do desespero” dos Estados Unidos e de seus aliados, afirmou
Tais tramas cercam a Venezuela, os conspiradores são um elenco de personagens dos bairros mais pobres, do mundo militar e das drogas, bem como da inteligência americana e paramilitares colombianos. A trama para uma pequena invasão que ocorreu em 2019 está documentada por Joshua Goodman, da Associated Press. Essa conspiração foi liderada por Jordan Goudreau, que serviu no Exército dos EUA como médico no Iraque e no Afeganistão e depois se tornou um segurança privado; ele trabalhou com Cliver Alcalá, um ex-oficial militar venezuelano que reuniu algumas centenas de militares desertores para conduzir o ataque. Alcalá agora está preso nos Estados Unidos por seu envolvimento no tráfico de drogas. Goudreau e Alcalá foram apoiados pelo guarda-costas de Trump, Keith Schiller, e Roen Kraft, da Kraft Foods. Toda a operação cheira a uma aventura maluca da CIA, semelhante à malfadada invasão em 1961 de Playa Girón, Cuba.
Um dos aspectos mais feios da incursão militar em 2020 foi que – em nome do combate ao narcotráfico – toda a operação parece ter sido financiada por traficantes. José Alberto Socorro Hernández (também conhecido como Pepero), que foi capturado durante a invasão, admitiu que o cartel de La Guajira, da Colômbia, ofereceu-lhes 2 milhões de dólares por suas ações. Pepero confessou que a operação foi financiada por Elkin Javier López Torres (também conhecido como La Silla [A Cadeira], ou Doble Rueda, [Roda Dupla]), um parente da esposa de Alcalá, Marta González.
É provável que essa invasão mais recente de maio de 2020 tenha emergido do campo de desertores militares criado por Alcalá na Colômbia. Um dos homens envolvidos no ataque foi o capitão Robert Levid Colina, também conhecido como Pantera. Colina esteve envolvido na tentativa de golpe em nome de Juan Guaidó, em 30 de abril de 2019, e é um colaborador íntimo de Alcalá. Antonio Sequea, ex-membro da Guarda Nacional Venezuelana, que foi visto pela última vez em 30 de abril de 2019 durante o fracassado golpe de Estado liderado por Leopoldo López e Juan Guaidó, estava entre os presos. Acredita-se que Sequea tenha liderado a operação. Também foi digna de nota a prisão de duas autoridades militares do Texas, Luke Denman e Airan Berry, membros da empresa mercenária estadunidense Silvercorp. O governo dos EUA negou toda a participação na operação e a ignorou amplamente, mas, de acordo com um dos mercenários detidos, a dupla tem relação com o chefe de segurança de Trump.
A Silvercorp é a empresa de Jordan Goudreau, a quem Guaidó prometeu pagar 212,9 milhões de dólares para “capturar, deter ou ‘remover’ o presidente Nicolás Maduro e colocá-lo em seu lugar”, conforme relatado pelo jornalista Alan MacLeod. Em fevereiro de 2019, Goudreau e sua empresa forneceram segurança à direita venezuelana durante o provocador show de Ajuda Humanitária. Vídeos e fotos também surgiram nas mídias sociais, mostrando um contrato assinado entre Goudreau e o líder da oposição de direita Guaidó. O ex-agente especial dos EUA expressou frustração porque Guaidó não sustentou sua parte da negociação, e a Silvercorp ainda não recebeu pagamento pelo trabalho.
Acredita-se que operação, sob investigação das autoridades venezuelanas nos últimos dois meses, tenha sido planejada e financiada pela oposição venezuelana e seus diversos aliados com o objetivo de assassinar o presidente eleito Nicolás Maduro e outros altos funcionários do governo venezuelano. É provável que a recompensa do governo dos EUA para Maduro e outros líderes tenha desempenhado um papel nessa tentativa de invasão.
No entanto, como explicou Hernán Vargas, membro do Movimiento de Pobladoras e Pobladores e o Secretário de Movimentos da ALBA, é provável que a missão desse grupo “não seja dominar o país, não era para assumir o governo. Era simplesmente realizar uma série de atividades que seriam coordenadas com outras forças, que dependiam de uma cadeia de eventos que não ocorreram… Eles realmente esperavam talvez uma resposta das Forças Armadas, de uma mobilização de rua ou de outro grupo armado que iria se juntar e isso não aconteceu”.
Os mercenários se fazendo de combatentes da liberdade, entretanto, “não esperavam a resposta do povo”, disse Vargas, e subestimaram amplamente a habilidade da inteligência venezuelana. Vargas acredita que os mercenários provavelmente achavam que seriam recebidos com aplausos e festejos. Pensaram que o povo ou uma força armada os apoiariam… mas não há pessoas na Venezuela dispostas a fazer isso. A maioria dos venezuelanos quer que seja resolvido por meio da paz. Não há setores que estejam dispostos a fazer essa aposta ou não estão satisfeitos com o que precisam neste momento”.
A ameaça, todavia, permanece. Vargas pede um estudo detalhado do contrato da Silvercorp com Juan Guaidó e Juan José Rendón – um consultor político da direita e ex-conselheiro de Guaidó – que afirma existir “toda uma série de cláusulas que permitem ou concordam com ações de violações de direitos humanos, execução de civis ou uso de armas pesadas, que introduzem outra dimensão. Em outras palavras, essa é uma situação igualmente perigosa porque esses grupos podem facilmente realizar ações terroristas e também definir objetivos civis e militares estratégicos na Venezuela”.
Vladimir Padrino López, ministro da Defesa da Venezuela, disse que o governo e o povo haviam derrotado esse ataque e permaneceriam vigilantes contra outros planos similares. Uma das características do processo bolivariano tem sido a mobilização da população para se defender – da tentativa de golpe contra Chávez em 2002 até hoje. “Nós nos declaramos em rebelião”, disse Padrino, acrescentando que a Venezuela está agora sob um estado de “vigilância permanente”. Apesar da pandemia global, o antigo manual da CIA e do governo dos EUA, com seus golpes sujos e guerras híbridas, permanece operacional. Assim como os cubanos frustraram a tentativa de invasão estadunidense em Playa Girón, ou na Baía dos Porcos (1961), o povo venezuelano derrotou esse ataque da Baía dos Leitões em La Guaira (2020).
A fraqueza do poder dos EUA
Cinco navios-tanque iranianos – carregados de gasolina – moveram-se rapidamente com suas bandeiras e radares abertos à detecção de Bandar Abbas (Irã) em direção ao mar do Caribe. Um deles, acidentalmente chamado de “Fortune”, rompeu o febril bloqueio naval dos EUA para entrar em El Palito, Venezuela, em 24 de maio. O fato de os EUA não terem conseguido forçar um confronto com os navios iranianos sinaliza a fraqueza da posição estadunidense. Uma nova ponte marítima se abre entre dois países sob imensa pressão americana; isso demonstra as limitações – mas não o fim – do poder dos EUA e da guerra híbrida.
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