Prefácio
Por Eli Gómez Alcorta
Ministra das Mulheres, Gêneros e Diversidade da
Argentina
Quando em nosso país, Argentina, foi anunciado o isolamento social preventivo e obrigatório no mês de março, havia passado apenas algumas semanas do 8 de março, data na qual novamente o movimento de mulheres e pela diversidade colocou em jogo uma agenda política e uma série de reivindicações vinculadas à eliminação das violências por motivos de gênero e as desigualdades que nos atravessam em todos os níveis da vida.
A pandemia de Covid-19 visibilizou ou cristalizou várias questões que o feminismo e os movimentos sociais vêm dizendo há tempos: em primeiro lugar, que habitamos como “normal” ou “natural” um sistema que alcançou níveis atrozes de desigualdade, exclusão, ódio e discriminação sem precedentes. Não é exagerado dizer que se não colocarmos um freio na normalidade iremos nos dirigir diretamente em direção à destruição do planeta e da humanidade. Em segundo lugar, o fato da Covid-19 ter atravessado o mundo inteiro, também ficou clara a importância do Estado, revalorizando a intervenção estatal, mas não qualquer tipo de intervenção, senão a de um Estado que cuide das pessoas, da saúde e preserve a vida.
Paralelo a isso, a pandemia colocou em primeiro plano a questão do cuidado e dos trabalhos a ele vinculado como nunca antes. Tarefas historicamente feminilizadas, desvalorizadas social e economicamente, e consequentemente degradadas dentro deste sistema, como trabalhos de segunda ou terceira categoria.
As desigualdades existentes ficaram evidentes. Não é o mesmo viver o isolamento morando em uma casa ou em um barraco; com trabalho ou desempregado; com internet ou desconectado; com água corrente ou sem saneamento; sendo homem ou mulher, sendo uma mulher cis ou uma mulher trans…
A desigualdade que se normaliza, como se fosse um fenômeno natural e não político, é diretamente proporcional ao impacto que tem a crise sanitária que estamos vivendo.
Para as mulheres e as diversidades, desde a agudização das situações de violência por motivos de gênero, o aumento da pobreza, paralelo ao aumento e sobrecarga das tarefas de cuidado, são o reflexo das desigualdades e das opressões que se vivem na “normalidade”.
Nesse sentido, temos o enorme desafio de traçar uma estratégia que não apenas contemple o emergencial, mas que o transcenda. Como fazer com que esse impacto não nos faça sair da pandemia mais pobres, mais violentadas e mais exploradas; trabalhando, ao mesmo tempo, pelas transformações estruturais que desarmem as relações de poder que reproduzem as violências e as desigualdades.
O papel que cumprimos como militantes do feminismo popular é central na tarefa que temos adiante. Há mais de 34 anos realizamos, na Argentina, o Encontro Nacional de Mulheres, em que milhares de mulheres se encontram para discutir uma agenda política do movimento de mulheres e feminista, intercambiando e nos organizando nos distintos territórios. Temos uma história de organização sindical combativa na luta pela ampliação de nossos direitos, para que se reconheçam nossos trabalhos. Nos reconhecemos na luta pelos direitos humanos em nosso país, em nossas Madres e Abuelas que são parte também da história de nosso movimento.
No último período, este movimento ganhou uma potência avassaladora. Há 5 anos irrompia nas ruas argentinas o primeiro Ni Una Menos [Nenhuma a menos], colocando na agenda a necessidade urgente de políticas públicas de prevenção e assistência das violências por motivos de gênero, exigindo que não nos matem mais. Com o governo do partido Cambiemos e o avanço neoliberal, esses debates se recolocaram sob uma nova agenda. Quando há crise econômica há feminização da pobreza, e as políticas neoliberais atingem com mais força as mulheres e as diversidades, aprofundando as desigualdades. Porém, a reação se deu com organização e resistência. O movimento de mulheres levou adiante a primeira greve nacional em 2016, e a massividade que ganhou a maré verde na esteira do debate sobre o aborto, em 2018, colocou em evidência que o movimento de mulheres e da diversidade é um dos atores mais dinâmicos de nossa época.
Com a força das lutas que nos antecederam e unidas a todas nossas irmãs da Pátria Grande e do mundo, temos a obrigação de trabalhar para sair melhores desta crise, de pôr tudo em discussão e nos assegurar que deste debate surja um consenso popular, progressista e feminista.
Introdução
Na série sobre o CoronaChoque, temos debatido como um vírus que atingiu o mundo com tanta força tem sido capaz de revelar rapidamente as ineficiências sociais, políticas e econômicas atuais e, com isso, colaborado para desmoronar a ordem social burguesa, tornando evidente as resistências humanizadoras das partes socialistas do mundo.
Em meio a esta crise global sanitária, política, econômica e social, são as mulheres em geral que carregam o fardo das mudanças catastróficas na vida cotidiana, seja com o aumento dos trabalhos de cuidado com as crianças, idosos e enfermos, seja com os crescentes casos de violência de gênero contra mulheres e pessoas LGBTQIA+, já que a quarentena exigiu que se isolem junto a seus abusadores.
Conforme países em todo o mundo experimentam diferentes estágios da pandemia, parece que 2020 será marcado pela tentativa de se adaptar e de sobreviver a essa nova realidade. Há meses, países do mundo inteiro estão experimentando distintas formas de distanciamento social e quarentena. Alguns começaram a flexibilizar o isolamento e a reabrir comércios, enquanto outros buscam conter o pico de transmissão que se agrava em seus territórios. Paira a incerteza acerca de quanto tempo será necessário para recuperar as ainda incalculáveis perdas econômicas e sociais, conforme novos desafios emergem para o conjunto da sociedade.
Neste estudo, buscamos entender a atual crise sanitária, o que significa também entendê-la como uma crise social e econômica. Primeiro, abordaremos seus impactos sociais e trabalhistas, analisando as consequências sobre as trabalhadoras da linha de frente: profissionais da saúde, dos serviços essenciais, trabalhadoras informais e setores mais socialmente vulneráveis. Em seguida, abordamos o trabalho do cuidado e o impacto do isolamento social sobre essas trabalhadoras. Por último, trazemos à tona o aumento da violência patriarcal[1] em tempos de quarentena, numa análise histórica atrelada aos acontecimentos políticos mais recentes, sobretudo no Sul Global. No final deste estudo, apresentamos uma lista de reivindicações populares que vem sendo pautada por organizações de mulheres e feministas em todo o mundo, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa, humana e igualitária.
O impacto social e trabalhista do CoronaChoque
Estamos vivendo a maior crise da história do capitalismo desencadeada por um vírus tão pequeno quanto invisível, mas que instituiu por meio do isolamento social a “maior greve” inesperada do mundo moderno, conforme as palavras do diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Vijay Prashad. Pelo menos metade da força de trabalho global está desempregada e/ou em casa, o que afetou enormemente a taxa de crescimento econômico mundial. Se é o trabalho que produz valor – e os trabalhadores entram em isolamento -, não há economia que se salve. Em um mundo globalizado, as cadeias de abastecimento e fábricas deixam de operar parcial ou completamente, e o impacto econômico em todos os países revela-se catastrófico.
O modelo neoliberal impôs uma realidade ainda mais complexa para lidar com os atuais desafios. Por se tratar de um modelo que promove redução de impostos estatais, privatizações e precarização das relações trabalhistas, resta aos Estados mais frágeis promover constantemente cortes orçamentários e diminuir investimentos sociais. Austeridade e Estado mínimo, enfraquecimento de sindicatos e organizações sociais, resultam em um aparato público e social sem recursos adequados para intervir num contexto de pandemia, seja na saúde ou na assistência social junto à população mais vulnerável. Dessa forma, os sistemas de saúde e assistência social, ou programas destinados a setores mais vulneráveis, entraram em colapso, desidratando a ajuda humanitária necessária à maior parte da população.
Consequências da expropriação neoliberal
A saúde não diz respeito exclusivamente ao indivíduo, mas a um processo complexo e socialmente determinado, um aspecto que muitas vezes desaparece do pensamento em saúde pública, devido à predominância de uma visão biomédica que reduz os problemas de saúde a uma questão individual, negligenciando fatores psicológicos e sociais nos processos de prevenção e cura. A aspiração do direito fundamental à saúde, como direito universal e social, é ameaçada profunda e seriamente pelo projeto neoliberal. Direito, universalidade, equidade, cobertura, atenção primária à saúde, entre outros, foram cooptados e transformados pela ideologia neoliberal.
A ideologia neoliberal, que intensificou sua hegemonia na América Latina nos anos 1990 seguindo o Consenso de Washington, conseguiu instalar a ideia de que os problemas na região se davam supostamente pelo tamanho excessivo da máquina pública. Era necessário, portanto, avançar em um ajuste fiscal e estrutural e estimular a privatização de serviços públicos. Após décadas de políticas de ajuste e transformações neoliberais, caracterizadas pela implantação de novas tecnologias e desapropriação de recursos e bens comuns, o fundamentalismo de mercado acabou prevalecendo, dando lugar a intervenções parciais e de curto prazo, em detrimento de políticas públicas sustentáveis a longo prazo e eficientes no tempo.
É nesse clima, e a partir da publicação do documento “Investing in Health” (1993), que o Banco Mundial intervém no campo da saúde pública, especialmente por meio da construção de uma agenda e um modelo de reformas tendentes à privatização e mercantilização da saúde.
A realidade da destruição, desmantelamento e desapropriação dos sistemas públicos de saúde e sua mercantilização se fazem evidentes atualmente diante das limitações para enfrentar a crise de saúde que vivenciamos. As imagens desesperadoras que correram o mundo de ruas repletas de cadáveres devido ao colapso dos sistemas de saúde, como no caso de Guayaquil (Equador), ou as valas comuns sendo abertas em diferentes países da região, mostram a profundidade da espoliação neoliberal. A América é o continente com o maior número de infecções do mundo pela Covid-19, acompanhada dos aumentos de casos na África e em demais países do Sul Global, como a Índia.
A OMS estima que 10% dos infectados em todo o mundo correspondem a trabalhadoras/es da saúde. Claro que aquelas e aqueles que estão na linha de frente de combate à pandemia possuem maior risco de contaminação e estão mais expostos a estresse excessivo e outros problemas de saúde mental. Trata-se de uma situação preexistente à pandemia, mas que se agrava com a falta de equipamentos de proteção individual, longas jornadas, risco iminente de perder o emprego ou se verem forçados a ir para a informalidade. Para as mulheres, soma-se ainda as tarefas de cuidado em suas casas, como o trabalho doméstico e o cuidado dos dependentes, filhos e idosos.
A invisibilidade social com que as outras profissões – que não a dos médicos – é tratada na saúde e na sociedade como um todo tornam essas pessoas ainda mais vulneráveis. Isso tem sua origem em fatores históricos e sociais que interseccionam classe, gênero e raça. Na prática, essas trabalhadoras/es possuem menor controle sobre suas condições de trabalho e estão mais expostas a riscos de saúde e de segurança. À medida que a precariedade e o medo de perder a renda aumentam, as/os trabalhadoras/es têm menos probabilidade de se organizar e se sindicalizar, ficando mais sujeitas à superexploração e às más condições de trabalho.
A pandemia tornou mais evidente um antigo ataque à área da saúde coletiva, cuja manutenção de um serviço público, gratuito e de qualidade se torna ainda mais desafiador. Também descortinou a questão de gênero entre as/os trabalhadoras/es mais vulneráveis do setor. Não há escolha senão lutar por um mundo em que as/os trabalhadoras/es sejam reconhecidos e a discriminação de gênero seja abolida, não apenas os “aplaudindo da janela”, mas conquistando vitórias para o povo trabalhador.
Trabalhadoras na linha de frente na saúde
As mulheres representam a maior parte da força de trabalho na área da saúde, especialmente na enfermagem. De acordo com as Nações Unidas (ONU), estima-se que elas compõem 67% da mão de obra do setor. As mulheres também são maioria dos/as trabalhadores/as nos serviços de limpeza e no serviço social (90%). No caso do Brasil, por exemplo, das 2,7 milhões de pessoas empregadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), 2 milhões são mulheres, isto é, 75,4% do total. Em termos de raça, 34% da força de trabalho do SUS é composta por pessoas negras, sendo 8% homens negros e 26% mulheres negras.
Apesar das mulheres serem a maioria na área, os postos de liderança são majoritariamente ocupados por homens. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 69% das organizações do setor são lideradas por homens; apenas 20% delas atingiram paridade em seus conselhos e 25% alcançaram paridade de gênero em postos de gerência sênior. A OMS também mostrou que, embora as mulheres enfrentem jornadas maiores, recebem em média 11% a menos que os homens.
Na Argentina, o setor de saúde tem sido historicamente caracterizado por uma forte feminização das funções técnicas, operacionais e de limpeza, e uma grande masculinização das funções profissionais e hierárquicas. Os dados disponíveis indicam que 82% do total de auxiliares, técnicos e graduados em enfermagem são mulheres. A novidade das últimas décadas é o processo de “feminização da profissão médica“, o que implica uma modificação da predominância histórica do sexo masculino entre médicos. Atualmente, 70% dos/as profissionais de saúde são mulheres, assim como a maioria dos ingressantes e graduados das universidades de Medicina. No entanto, elas ocupam apenas 40% das posições hierárquicas. No setor privado, essa diferença é ainda maior: apenas 13% dos cargos gerenciais permanecem em mãos femininas. O processo de feminização profissional não foi acompanhado por um aumento da presença em cargos de chefia e posições hierárquicas, seja em hospitais, órgãos públicos, ministérios, secretarias de Saúde, associações profissionais, científicas ou sindicais. Isso também se traduz nas diferenças salariais que variam entre 10 e 20% em relação aos homens, segundo dados das Nações Unidas.
Salário, raça, gênero e o lado invisível do trabalho na saúde
Assim como em outros espaços, há um forte componente de discriminação na gestão do trabalho no sistema de saúde – uma realidade oriunda das raízes patriarcais e neocoloniais que moldam o setor. O impacto se faz evidente nas diferenças de remuneração, de escolaridade e posições de comando entre homens e mulheres, negros e não-negros, o que revela a necessidade de políticas afirmativas de raça e gênero que corrijam essas distorções.
Ao redor do mundo, em todos os setores, as mulheres recebem cerca de 20% a menos que os homens para exercer as mesmas tarefas, além de estarem desproporcionalmente empregadas em setores com baixa remuneração. Elas ainda são consideradas menos competentes, são mais desprestigiadas e possuem menor probabilidade de serem promovidas, além de terem menos acesso a proteções trabalhistas básicas, como sindicalização, estabilidade e salários dignos. No Brasil, por exemplo, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a distância entre a maior e a menor remuneração no sistema de saúde pública é de sete vezes. Em geral, as mulheres recebem 75% da remuneração dos homens; se compararmos a remuneração das mulheres negras em relação aos homens brancos, esse percentual é ainda menor, indo para 60%.
Além da disparidade de gênero e de raça em relação aos salários, existe uma assimetria na formalização dos trabalhadores da saúde. De acordo com a Women in Global Health, as profissionais de saúde mulheres contribuem com cerca de 3 trilhões de dólares para o Produto Bruto Global, sendo quase metade desse trabalho não reconhecido ou não remunerado. Na Argentina, enquanto 77,1% das trabalhadoras possuem trabalhos formais com direito à previdência assegurado, essa taxa é de 81,3% entre os homens. Há uma brecha de 5,5 pontos percentuais entre o número de homens e mulheres registrados como profissionais de saúde, o que influencia nas discrepâncias salariais entre os gêneros no setor.
O papel das mulheres trabalhadoras ganhou ainda mais destaque no contexto da pandemia, principalmente em bairros populares. A crise sanitária adquire contornos próprios nas periferias e favelas, onde se vive sem acesso a serviços públicos e à infraestrutura básica, como água, luz e esgoto. A população desses bairros são as que mais necessitam de cuidados básicos de saúde, orientação e atenção durante o período da pandemia. O vírus encontrou na precariedade da vida um terreno fértil.
Na Argentina, as mulheres também estão na ponta da estratégia sanitária nas periferias, pois são as que se encarregam de assistir os idosos e a população em risco que mora sozinha. São elas, em coordenação com os centros de saúde, hospitais e programas de saúde, que testam casa por casa, acompanham as famílias que precisam ser isoladas e resolvem a gestão da crise de saúde, alimentação e cuidados gerais na comunidade. Apesar desse trabalho ser fundamental nas estratégias voltadas para bairros populares, nem sempre ele é reconhecido ou mesmo remunerado.
Na África do Sul, Trabalhadoras/es Comunitários de Saúde (em inglês, Community Health Workers – CHW), que têm tido um papel fundamental na linha de frente, mas frequentemente possuem contratos temporários, realizaram um protesto em julho deste ano, exigindo trabalho em tempo integral e maior reconhecimento em relação às suas contribuições às instituições de saúde pública. “Como é possível que nos seja confiada a tarefa de triagem e testagem das comunidades, mas que não nos seja permitido compartilhar nossas perspectivas, a partir da linha de frente, nos fóruns de saúde?”, questionou Noluthando Mhlongo, uma trabalhadora comunitária de KwaZulu-Natal.
Uma maior visibilidade dessas realidades e desses empregos essenciais começa a ser objeto de debate sobre políticas públicas para o setor, em especial no que se refere à profissionalização e remuneração.
Trabalhadoras informais e desemprego
Para a maior parte da população, o desafio mais evidente é como se manter economicamente enquanto perdurar este período de retração econômica aprofundada pela crise da Covid-19, em especial as/os trabalhadoras/es informais e as/os desempregadas/os. As mulheres estão mais expostas a essa dura realidade. Se antes já representavam a maior porcentagem da força de trabalho na economia informal, hoje estão mais sujeitas a perder seus empregos e rendimentos.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as mulheres compõem a maior parte da força de trabalho das áreas mais afetadas pela crise. Quase 510 milhões (40%) de todas as mulheres empregadas em todo o mundo atuam nos quatro setores mais atingidos: hotelaria, restaurantes, varejo e manufaturas. As mulheres também são maioria no trabalho doméstico, assistência sanitária e serviço social, correndo mais risco de se infectar e/ou transmitir o vírus.
A OIT indica que a crise pode gerar um aumento dos índices de pobreza relativa na América Latina e Caribe, sobretudo entre trabalhadoras/es informais. O emprego informal é caracterizado pela ausência de direitos trabalhistas, ou seja, instabilidade, baixa renda, inexistência de proteção social frente a emergências de saúde ou desemprego.
Quando o setor formal fecha as portas para as mulheres, elas buscam refúgio na informalidade – setor que historicamente se viram forçadas a ocupar -, exercendo as funções mais precárias e recebendo salários mais baixos. A repressão das autoridades municipais a ambulantes e demais trabalhos informais em feiras e ruas, também acabam colocando as mulheres em situação de maior insegurança.
Dentro da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, sigla em inglês), estima-se que cerca de 30-40% do comércio esteja associado a comerciantes transfronteiriços informais. Na África do Sul, o comércio informal e transfronteiriço foi paralisado em todo o país; foram encerrados 35 postos fronteiriços terrestres, bem como outros postos com países vizinhos, como Moçambique e Zimbábue. Cenas de mulheres desmontando suas barracas de frutas se tornaram comuns em lugares como a cidade fronteiriça de Komatipoort, na África do Sul. Essas trabalhadoras se veem sem possibilidade de obter renda, restando-lhes a incerteza de quando poderão voltar a trabalhar.
Mesmo antes da pandemia, mais de 1,6 bilhão de pessoas – metade da força de trabalho global – estava no setor informal, sob a ameaça constante de perder seu sustento. Conforme estimativas das Nações Unidas, as/os trabalhadoras/es informais em todo o mundo perderam 60% de sua renda no primeiro mês da pandemia. A OIT estima que esses números sejam ainda piores na América Latina e no Caribe, onde a renda dos trabalhadores informais foi reduzida em 80% – 59% dos trabalhadores informais são autônomos, enquanto 31% trabalham em micro e pequenas empresas. Só no Brasil, mais de 600 mil micro e pequenas empresas foram forçadas a fechar desde o início da pandemia, e o desemprego deverá aumentar em duas ou até quatro vezes até o final do ano.
Na Índia, de acordo com o Monitor da Organização Internacional do Trabalho, a maior parte da força de trabalho é informal, chegando a quase 90% do total – cerca de 400 milhões de trabalhadores – e que enfrentarão pobreza extrema à medida que a crise se intensificar. Entre as mulheres, o índice de informalidade é de 94%. Apesar dessa grande massa de trabalhadores/as informais contribuir significativamente para o PIB do país, seu bem-estar tem sido tremendamente negligenciado. Os desafios para as/os trabalhadoras/es se acumulam à medida que o governo do Partido Bharatiya Janata (BJP) enfraquece as leis trabalhistas – incluindo um ataque à jornada de trabalho de oito horas.
O Monitor da OIT também destaca que “94% dos trabalhadores do mundo vivem em países com algum tipo de fechamento de locais de trabalho”. Em meio a essa instabilidade e precariedade laboral, aumentam os problemas de saúde mental entre as/os trabalhadoras/es. Em todo o mundo, mais da metade dos jovens que participaram de uma pesquisa realizada pela OIT e parceiros tiveram sintomas de ansiedade ou depressão desde o início da pandemia. Um em cada seis jovens havia parado de trabalhar e 60% das garotas e 53% dos rapazes viam suas perspectivas de carreira com incerteza e medo.
As/os jovens também são os mais afetados pela nova modalidade de trabalho “por conta própria” – fenômeno que vem sendo apelidado de uberização, no qual a superexploração e a precarização ganham novos contornos. O também chamado trabalhador “just in time” – ou “trabalhador para já”, em português -, fica inteiramente disponível para realizar um serviço, mas só é utilizado na exata medida em que a demanda aparece, isto é, é pago por hora/minuto enquanto realiza uma entrega ou um serviço imediato. Essa realidade atinge principalmente os jovens, mas também as mulheres pobres (em sua maioria negra e/ou imigrante), diante da falta de alternativas de emprego e renda.
À medida que essas taxas de informalidade continuarem a aumentar, mais e mais pessoas serão jogadas na pobreza em todo o mundo, sobretudo as mulheres. Essas pessoas lutam por sua sobrevivência como diaristas, ambulantes, catadores/as de lixo, recicladores/as e outras ocupações informais. O distanciamento social e medidas de bloqueio minam o sustento diário dessas mulheres – que muitas vezes são arrimo de família -, já que não podem trabalhar de casa, remotamente ou online, e porque muitas dependem de ruas movimentadas, mercados públicos e pequenos negócios.
Trabalho doméstico remunerado no Sul Global
As/os 67 milhões de trabalhadoras/es domésticas/os em todo o mundo representam um setor chave da força de trabalho informal, sendo 80% desse total mulheres. Além de sofrerem com muitas das mesmas más condições de outros trabalhadores informais, elas muitas vezes são privadas das escassas proteções oferecidas a outros trabalhadores precarizados.
Na Índia, as empregadas domésticas são mulheres e meninas sem poder de barganha nem garantia de emprego. Elas não contam com nenhum benefício previdenciário ou proteções legais garantidas aos demais trabalhadores – mesmo aos do setor informal – como salário mínimo ou bonificações. Altas taxas de analfabetismo e um baixo nível de educação formal as deixaram ainda mais vulneráveis a péssimas condições de trabalho, insegurança e baixas remunerações. A pandemia exacerbou essa vulnerabilidade, pois muitas perderam o trabalho ou não foram pagas por seus serviços. De acordo com o National Sample Survey Office (NSSO), a contagem oficial de trabalhadoras domésticas na Índia é de 4,2 milhões. No entanto, outros estudos apontam que o número real pode ser entre 50 e 90 milhões – dez vezes mais que a contagem oficial.
Na América Latina, um terço das/os trabalhadoras/es informais são trabalhadoras/es domésticas/os. No Brasil, as mulheres representam 97% do total de empregadas/os domésticas/os, e recebem 78,44% do valor que os homens ganham para exercer as mesmas funções. Das cerca de 7 milhões de mulheres nessa tarefa, quase 5 milhões trabalham sem carteira assinada, na modalidade de diaristas. Estas, em geral, ganham 60% do valor pago às trabalhadoras formalizadas.
Na África do Sul, há mais de um milhão de trabalhadoras/es domésticas/os (de novo, com uma maioria esmagadora de mulheres) que representam 8% da força de trabalho do país. Algumas dessas domésticas moram na casa de seus empregadores, enquanto outras enfrentam longos deslocamentos todos os dias, vindas das periferias ou de cidades vizinhas. Embora algumas tenham recebido licença remunerada e possam ficar em casa com suas famílias durante a pandemia, a maioria das diaristas que realizam trabalho doméstico informal precisam escolher entre o distanciamento social e a sobrevivência: se seguem as orientações sanitárias e ficam em casa, podem vir a enfrentar a fome e/ou despejo; se flexibilizam as restrições para tentar manter uma fonte de renda, aumentam o risco de se contagiar.
Conforme a crise econômica aumenta, cresce a incerteza dessas trabalhadoras domésticas sobre se ainda terão emprego quando terminar a quarentena. De acordo com os sindicatos de trabalhadores domésticos da África do Sul, esse setor é um dos mais suscetíveis a cortes, à medida que as famílias da classe média ajustam seus orçamentos. As mulheres migrantes sem documentação são especialmente atingidas.
Embora governos de diversos países tenham anunciado pacotes de resgate econômico para as/os trabalhadoras/es informais, a ajuda chegou tarde, foram adiadas ou reduzidas em seus valores. Enquanto isso, os ricos acumularam mais riqueza durante a pandemia. Na América Latina e Caribe, por exemplo, o total acumulado pelos mais ricos entre março e junho deste ano corresponde a um terço do total de recursos dos pacotes de estímulos econômicos adotados na região, conforme recente relatório da Oxfam. A fortuna de 73 bilionários foi aumentada em 48,2 bilhões de dólares, enquanto uma parcela significativa da população perdeu emprego e renda.
Nesse mesmo período, de março a junho, ainda segundo a Oxfam, oito novos bilionários surgiram na região – um a cada duas semanas. Enquanto isso, estima-se que 40 milhões de pessoas podem perder seus empregos e 52 milhões podem ficar abaixo da linha da pobreza na América Latina e Caribe em 2020.
O Estado neoliberal não está a serviço da humanidade. A lógica capitalista não fará a inclusão das milhões de empregadas domésticas, trabalhadoras/es informais e desempregadas/os, amparando-as/os diante da fome e da miséria. Um mundo onde morrem todos “os ninguéns”, como bem disse Eduardo Galeano:
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. (…)
Que não aparecem na história universal,
aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
Vulnerabilidade social crescente: pobreza, despejos e migração forçada
A crueldade com a qual o sistema capitalista e seus governantes têm conduzido a humanidade em tempos de pandemia parece não ter limites. Esperava-se que a taxa de pobreza das mulheres diminuísse 2,7% entre 2019 e 2021, porém, com a pandemia, as projeções passaram a apontar um aumento de 9,1%. Isso significa que, até 2021, cerca de 96 milhões de pessoas serão levadas à pobreza extrema, 47 milhões das quais são mulheres e meninas. Isso aumentará o número total desse grupo para 435 milhões de pessoas.
Isso é resultado das políticas orientadas pelo lucro adotadas pelos Estados capitalistas na condução desse processo, em contraste com as políticas implementadas em regiões com governos socialistas, como Kerala (Índia) e Vietnã, como mostra nosso estudo CoronaChoque e o Socialismo.
Entre as ações mais cruéis presenciadas neste período estão as ordens de despejo de famílias e comunidades inteiras. Foi o caso de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em agosto deste ano, no Brasil. Os despejos que estão em curso na África do Sul e as migrações forçadas das/dos trabalhadoras/es na Índia ocorrida logo após a declaração do lockdown no país – sem aviso prévio ou apoio estatal – também são exemplos da forma como Estados capitalistas têm tratado sua população.
A primeira fase do isolamento na Índia, iniciada no dia 23 de março de 2020, foi anunciada apenas quatro horas antes de ser instaurada, e durou 21 dias. O isolamento, que foi sendo continuamente estendido, careceu por completo de um roteiro de implementação. Questões sobre como as pessoas iriam cumpri-lo, para onde iriam se ficassem presas no caminho, como se alimentariam e atenderiam às suas necessidades básicas de sobrevivência, com uma perda repentina de renda, ficaram sem respostas. O resultado é que a Índia testemunhou a maior migração a pé desde a Grande Partição, quando houve a divisão do subcontinente em Índia e Paquistão, em 1947. O problema da migração causada pela falta de oportunidades na Índia não é novo, entretanto, a pandemia e o isolamento deram a ele maior visibilidade. De acordo com a Pesquisa Econômica (2017), cerca de 139 milhões de migrantes sazonais realizam trabalhos essenciais que fazem a economia girar – de fábricas a escritórios.
Apesar disso, os migrantes são frequentemente excluídos dos programas governamentais; muitos são de áreas rurais, mas moram nas cidades em busca de trabalho, vivem em quartos alugados e não possuem salários regulares ou poupanças. Após o isolamento, surgiram diversos relatórios que retratam o sofrimento de trabalhadores migrantes que ficaram “presos” em grandes cidades sem ter onde dormir, como se alimentar e sem recursos para voltar para casa. Dezenas de milhares tiveram que caminhar centenas de quilômetros para voltarem às suas casas, já que o governo não disponibilizou nenhum transporte que garantisse o retorno dessa população.
Diante desse cenário, a Suprema Corte interveio e emitiu uma primeira ordem em 26 de maio, seguida por uma ordem provisória em 28 de maio e uma ordem integral no dia 5 de junho. As medidas enfatizaram os fracassos do governo em fornecer meios adequados para os trabalhadores migrantes e sua incapacidade de garantir meios de transporte durante o isolamento.
Conforme o PRS Legislative Research, a Suprema Corte ordenou que os governos central e estaduais assumissem a responsabilidade pela crise migratória por meio de uma série de medidas. Entre elas o fornecimento de alimentação gratuita para os migrantes retidos, a obrigação do estado que recebe o migrante de pagar por seu transporte o mais rápido possível dentro de um prazo de quinze dias, isenção do pagamento de tarifas de trem e ônibus para essa população, entre outras medidas.
Apesar disso, a situação da Índia continua sombria, com milhões de pessoas da classe trabalhadora sofrendo todos os dias na luta por sobrevivência. O relatório da pesquisa “Laboring Lives: Hunger Precarity and Despair amid Lockdown”[Vidas trabalhadoras: fome, precariedade e desespero em meio ao isolamento], trouxe à luz as condições dos trabalhadores migrantes na Índia. O estudo apresenta algumas respostas dos trabalhadores migrantes para compreender os problemas; um dos que ficaram “presos” durante a pandemia falou sobre sua condição da seguinte forma:
“Bhagwam bharose chal rha hai kyunki sarkar se koi umeed hai nahi; woh bas ghosana kr deti hai, mara jata hai gareeb” (Somos deixados à própria sorte porque não temos expectativas do governo; eles apenas fazem anúncios repentinos, [mas] são os pobres que pagam o preço.)”
Situação semelhante se deu na África do Sul durante o período de pandemia, com despejos ocorrendo em diferentes partes do país. Em todas as principais cidades, os governos municipais expulsaram pessoas que viviam em favelas, violando as leis sul-africanas que proíbem despejos sem ordem judicial, e também as normas que regem o isolamento que inclui a suspensão dessas expulsões. Em Durban, o Abahlali baseMjondolo, um movimento de moradores de favelas – a maior organização popular surgida desde o fim do apartheid -, está sujeito a despejos diários à mão armada, com munição real sendo frequentemente disparada contra os moradores. O movimento conta com mais de 75 mil membros em Durban, a maioria dos quais são mulheres e, em muitos casos, mães que lutam para proteger suas casas.
A organização de mulheres do movimento emitiu duas declarações, elaborando o impacto de gênero dos despejos: Por que esse sofrimento? e Sekwanele! Basta! Na primeira declaração, elas disseram:
“Nós temos medo do coronavírus, mas não há vírus pior que não ter onde ficar. Não existe vírus pior que homens armados atacando e destruindo sua casa. Não existe vírus pior que homens armados atirando em sua família, incluindo crianças e idosos. Não existe vírus pior que dormir ao ar livre, onde sempre existe o medo de estupro. Não existe vírus pior que nossos filhos acordando à noite chorando e gritando de medo”.
Essas declarações observam que os despejos colocam as mulheres em um risco muito alto de violência sexual quando se veem obrigadas a dormir ao ar livre após essas ações, e causam um tremendo estresse e ansiedade para as crianças, que são cuidadas majoritariamente por mulheres, algumas das quais perderam seus companheiros devido à violência do Estado.
Formas comuns de organização, como reuniões e protestos de rua, são impossíveis durante o isolamento. Também é muito difícil ter apoio jurídico ou se preparar para ações judiciais, já que há dificuldade de se transportar pela cidade, e as delegacias de polícia se recusam a certificar documentos e assinar declarações, entre outras questões. Para as mulheres que já não têm qualquer rendimento durante esse momento, a organização online também é impossível. É de vital importância que as organizações de classe média dedicadas às questões de gênero permaneçam cientes de como é difícil para as mulheres que perderam sua renda durante esta crise se organizarem sob o isolamento.
Manter a linha dos frágeis ganhos obtidos pelas lutas das mulheres em momentos anteriores exigirá foco e força. Também exigirá que o governo tenha um enfoque de gênero incisivo em todas as suas decisões nos próximos meses.
O Impacto do CoronaChoque na população LGBTQIA+
Como já discutimos, o impacto da Covid-19 está longe de ser igual em todo o mundo. Os piores efeitos do vírus foram sentidos pelas comunidades marginalizadas em termos de classe, raça, orientação sexual, gênero e – notavelmente – identidade de gênero. As condições preexistentes causadas pela transfobia, fortemente combinadas com características de classe e raça, colocam as pessoas transgêneros na mira da Covid-19. Nesta seção, descreveremos brevemente alguns dos principais desafios enfrentados pelas pessoas LGBTQIA+, em especial a comunidade transgênero em todo o mundo em meio à pandemia.
O primeiro desafio em medir o impacto da pandemia na comunidade trans é que os dados estão praticamente indisponíveis. Não é por acaso: apesar das questões objetivas da discriminação, violência patriarcal e marginalização na vida material das pessoas trans, esses elementos permanecem em grande parte invisíveis. Nos EUA, a Califórnia tornou-se um dos poucos estados a coletar dados sobre o impacto da pandemia na comunidade transgênero em julho. No Brasil, os dados federais sobre os 12,9 milhões de desempregados omitem qualquer menção a pessoas trans, assim como relatórios sobre o aumento de 53% na falta de moradia na cidade de São Paulo nos últimos quatro anos (de 15,9 mil pessoas em 2015 em comparação com 42,3 mil pessoas em 2019). Embora seja impossível quantificar totalmente as consequências da pandemia sobre as pessoas trans, as redes de apoio na comunidade veem essa realidade em suas vidas e nas ruas, apontando para um número desproporcionalmente alto de pessoas trans entre os desempregados e sem teto.
Essa disparidade começa cedo na vida, já que muitas crianças e jovens LGBTQIA+, em especial crianças trans, são expulsos/as de suas casas por suas famílias, resultando em um nível mais baixo de educação e habilidades profissionais exigidas por grande parte do setor formal – um fator ainda agravado pela discriminação. Os transgêneros são frequentemente forçados a permanecerem “no armário” ou correm mais riscos de perder seus empregos, o que leva a níveis muito mais altos de depressão, ansiedade e suicídio. Uma pesquisa com 498 pessoas trans (452 mulheres trans e 46 homens trans) apontou que, na Argentina, 40% dos homens e um terço das mulheres trans tentaram o suicídio em algum momento da vida, o que se dá em média aos 13 anos para homens trans e 16 para mulheres trans. Outra pesquisa nos EUA com 27.715 pessoas trans descobriu que 40% dos entrevistados/as haviam tentado suicídio – oito vezes mais do que a taxa da população como um todo. Como muitas escolas estão fechadas, as crianças transgênero que não possuem apoio em casa se veem presas com seus familiares abusivos.
Alguns relatos apontam que, ao contrário de muitos migrantes que buscaram formas de retornar para casa com recursos escassos em meio a uma tremenda adversidade, crianças e adultos trans geralmente não têm casa ou família para onde voltar. Muitos transgêneros são eles próprios migrantes, como vimos com a crise na fronteira dos EUA com o México, que após sobreviverem à jornada perigosa são mantidos em centros de detenção miseráveis e superlotados.
Na África do Sul, a Covid-19 trouxe à luz essas lutas contínuas e complexas de refugiados pertencentes a minorias sexuais e de gênero. Victor Chikalogwe, coordenador do projeto People Against Suffering, Oppression and Poverty (PASSOP), observa que o trauma severo e prolongado que os refugiados queer experimentaram em seus países de origem se agravam quando os indivíduos tentam se estabelecer na África do Sul. Em um artigo na New Frame, Chikalogwe observou que “ao contrário de muitos refugiados que podem contar com o apoio de suas comunidades ou compatriotas, geralmente isso não ocorre para refugiados de minorias sexuais e de gênero. Portanto, sem esse apoio, pode ser muito mais difícil para eles”.
Não é surpresa que, dada essa realidade, boa parte das pessoas trans estejam sem teto. De acordo com uma pesquisa em Buenos Aires (Argentina), 65% das pessoas trans vivem em quartos precários, em moradias subsidiadas pelo Estado, habitadas por pessoas que não podem pagar aluguel; 22,5% alugam suas casas; e 6,6% vivem em abrigos ou na rua – apenas 5,9% possuem casa própria. A discriminação desempenha um papel importante, já que as pessoas transgênero muitas vezes não têm oportunidades de moradia estável ou lhes são exigidos aluguéis e taxas exorbitantes. Florencia, uma mulher transgênero, conta que essa população não tem “comprovação de renda e nos deparamos com o estigma de que as mulheres transexuais convertem o lugar alugado em bordel, então nos cobram o dobro ou o triplo do que cobram de outros”.
Em Hyderabad (Índia), cartazes alertavam que conversar com pessoas trans poderia expô-las a contrair o coronavírus. Baseado puramente em transfobia e medo, tais rumores, no entanto, tiveram consequências concretas: como resultado, relata o The Hindu, “complexos habitacionais pedem aos transgêneros que desocupem suas moradias alugadas”.
As pessoas trans também são sistematicamente excluídas do mercado de trabalho formal e, na maioria das vezes, são jogadas no trabalho sexual ou na mendicância. Logo após a África do Sul ser colocada sob isolamento, em março de 2020, a Sex Workers Education and Advocacy Taskforce [Força-Tarefa em Educação e Advocacia para Trabalhadoras do Sexo] (Sweat) anunciou em 6 de maio que as trabalhadoras do sexo, muitas das quais são trans, eram “as mais marginalizadas de todos/as os/as trabalhadores/as porque sua profissão não é reconhecida como trabalho na África do Sul”. De acordo com Larissa Heüer, pesquisadora associada ao Centro de Direitos Humanos da Universidade de Pretória, a situação ilegal das profissionais do sexo as torna especialmente vulneráveis a abusos por parte da polícia, profissionais de saúde e clientes. Heüer destacou como a falta de acesso dessas mulheres à justiça cria condições de trabalho precárias e perigosas e aumenta sua estigmatização contínua na sociedade sul-africana. A perda de renda precipitada pela pandemia apenas agravou as condições e crises já graves, como a perda de moradia e a impossibilidade de acesso à alimentação, medicamentos e outras necessidades básicas.
Na Argentina, 90% das mulheres trans trabalham ou já trabalharam como trabalhadoras sexuais, e apenas um/a de cada dez mulheres ou homens trans possuem alguma forma de benefício previdenciário. Nas palavras da trabalhadora sexual panamenha Monica, que sustenta sua família e duas irmãs com sua renda, “muitas pessoas transgênero são trabalhadoras sexuais aqui na cidade. É nossa primeira opção? Não. Mas é trabalho regular e isso significa poder tomar conta da família”. Como os ambulantes, o impacto do distanciamento social e da quarentena fez evaporar a renda das trabalhadoras sexuais.
Além disso, há o fato de que muitas pessoas trans não têm documentos básicos e, como Divya Trivedi da Frontline escreve sobre a situação da comunidade transgênero na Índia, elas “portanto, permanecem fora da cobertura dos sistemas de assistência social do governo, como alimentação e pensões, tornando impossível sobreviver nestes tempos difíceis de isolamento”. Essa falta de documentação também os exclui de programas de auxílio, como a já escassa assistência financeira e alimentar fornecida pelo governo, bem como planos de seguridade social do Estado.
No Brasil, grande parte da comunidade LGBTQIA+ e em particular a comunidade transgênero não possui a documentação de identificação necessária para acessar a pouca ajuda fornecida pelo governo. Pessoas trans estão entre os 40% da população negra no Brasil que não têm acesso à internet, o que constitui uma grande barreira para se inscrever para receber ajuda.
Excluídas da força de trabalho formal, expulsas das redes de apoio familiar e sem ajuda do governo, as pessoas trans têm muito mais probabilidade de sofrer de problemas de saúde preexistentes e menos probabilidade de receber cuidados médicos caso adoeçam. No Brasil, a expectativa de vida média das pessoas trans é de 35 anos, em comparação com a média de 76,3 anos da população em geral, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em todo o mundo, as mulheres trans têm “cerca de 49 vezes mais probabilidade de viver com HIV que outros adultos em idade reprodutiva, com uma prevalência mundial de HIV estimada de 19%”. Essa disparidade é ainda maior em alguns países onde a taxa de prevalência de HIV entre mulheres trans é 80 vezes maior que a taxa entre a população adulta em geral. Aqueles que são soropositivos podem ter um sistema imunológico comprometido, colocando-os em um risco maior de morrer de Covid-19.
No Brasil, 60% das vítimas fatais de AIDS são homens homossexuais negros. Como costuma ocorrer, há poucos dados disponíveis sobre as taxas de HIV entre homens transexuais, segundo a OMS. Além disso, muitas pessoas soropositivas não revelam o seu estado por medo de discriminação, o que faz com que as estimativas formais possam apresentar subnotificação. A falta de acesso a empregos estáveis e serviços de saúde contribui para que tais doenças não sejam tratadas de forma satisfatória e são mais propensas a serem descontinuadas, sobretudo agora quando o tratamento de casos de Covid-19 têm prioridade.
Além disso, barreiras históricas, como a discriminação, impedem que muitas pessoas trans procurem atendimento. Um estudo na Argentina mostra que, até a recente aprovação da Lei de Identidade de Gênero (2012), sete em cada dez pessoas trans dependiam do sistema público de saúde e oito em cada dez pessoas trans sofriam discriminação com base em sua identidade de gênero (embora esse número tenha diminuído para três em cada dez após a implementação dessa lei). Entrar em um hospital para buscar atendimento geralmente significa ser submetido a assédio, escárnio, negligência e até abuso físico e sexual.
A exclusão do sistema de saúde é ainda agravada pelo que alguns chamam de “transgenocídio“, sancionado pelo Estado e suas políticas públicas. Um exemplo recente ocorreu em junho nos EUA, onde a administração Trump tentou reverter as medidas protetivas contra a discriminação de pessoas trans na saúde, o que resultou em um recorde do número de ligações para linhas de ajuda voltadas a transgêneros, que já haviam disparado 40% desde o início da pandemia. Embora um juiz tenha interrompido os esforços de Trump em agosto, seu governo conseguiu reverter outras proteções, e a ameaça constante de maior precariedade paira sobre a comunidade transgênero.
Alguns países, por outro lado, implementaram políticas públicas para proteger a comunidade LGBTQIA+ durante a pandemia, em particular para lidar com a situação precária enfrentada por muitas pessoas trans. Na Argentina, o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade, em coordenação com organizações da sociedade civil, reforçou a assistência alimentar às pessoas LGBTQIA+, entregando alimentos durante a quarentena. Na mesma linha, a comunidade transgênero foi incorporada aos programas de assistência social implementados pelo governo federal durante a pandemia. Em 4 de setembro, o governo federal aprovou a Lei de Cota de Trabalho para Transgêneros (Cupo Laboral Travesti Trans), que determina que pelo menos 1% da força de trabalho da administração pública federal deve ser composta por pessoas trans.
Já no Brasil, uma lei recente mostra a absoluta insensibilidade do governo para com os pobres, a classe trabalhadora, não-brancos, a comunidade LGBTQIA+ e outros grupos marginalizados, ao permitir a cremação sem certidão de óbito, dando carta branca para o Estado queimar e desaparecer corpos não reclamados. Mesmo com a falta de dados, podemos imaginar que as travestis que foram expulsas de suas casas, repudiadas por suas famílias, excluídas do mercado de trabalho, obrigadas a trabalhar em setores precários – como o trabalho sexual – em meio à pandemia ou a morrer de fome, estão entre esses corpos. Enquanto o Brasil se torna um epicentro global de infecções e mortes por Covid-19, alguns acusam o Estado, sob a liderança de Jair Bolsonaro, de genocídio.
Esta seção é apenas uma mostra dos impactos da Covid-19 na comunidade LGBTQIA+, muitos dos quais permanecem invisíveis e ignorados. Diante dessas questões, ativistas, grupos comunitários de base e organizações não governamentais estão pedindo aos governos que descriminalizem o trabalho sexual, forneçam auxílio alimentar, moradia emergencial para transgêneros e queer sem teto e apoie comunidades de migrantes sem documentos, para que possam acessar serviços essenciais a sua sobrevivência. Resta ver se suas reivindicações serão atendidas.
O trabalho de cuidado e o CoronaChoque
O cuidado é um trabalho. Um trabalho que garante que nossas necessidades materiais e psicológicas básicas sejam atendidas, assegurando nosso desenvolvimento humano. O trabalho do cuidado inclui atividades diárias diversas como cuidar de crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiências físicas e mentais; mas também atividades da casa, como cozinhar, lavar, limpar, entre tantas outras. Embora essa atividade seja essencial para a reprodução da força de trabalho, ela praticamente não é reconhecida e, quando há remuneração, os salários costumam ser baixos.
Um relatório recente da Oxfam (2020) apontou que as mulheres são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo. Seriam mais de 12,5 bilhões de horas diárias despendidas por mulheres e meninas em todo o mundo a essa tarefa. De acordo com o relatório, essas horas todas correspondem a uma quantia de cerca de 10,8 trilhões de dólares por ano que subsidia a economia global – três vezes mais do que o valor gerado pela indústria tecnológica, por exemplo.
Em comunidades rurais de países de baixa renda, as mulheres dedicam até 14 horas diárias ao trabalho de cuidado não remunerado, cinco vezes mais que os homens. Na África do Sul, as mulheres realizam em média mais de três vezes o trabalho diário de cuidados em casa que os homens. No Brasil, por exemplo, 90% do trabalho de cuidado é realizado no interior das famílias, sendo que 85% é feito pelas mulheres. Em 2019, as mulheres dedicavam em média 21,4 horas semanais, enquanto os homens apenas 11 horas. Analisando apenas os casos em que as mulheres trabalham fora de casa, elas cumprem em média 8,2 horas a mais em obrigações domésticas que os homens que também trabalham fora.
Esse trabalho doméstico só aumentou durante a pandemia. A obrigatoriedade da quarentena ou de algum grau de isolamento social tem tornado menos invisível a necessidade do cuidado, já que as pessoas passam mais tempo em casa, cuidando não apenas do ambiente do lar, mas também de si, da família, de vizinhos e até da comunidade.
As medidas de higienização recomendadas durante o combate ao coronavírus demandam maiores esforços: constante limpeza de produtos e roupas ao entrar em casa, as crianças deixaram de ir à escola, a maioria das refeições estão sendo feitas em casa, o espaço do lar se suja com mais frequência, os espaços de lazer e convívio social, como Igrejas, parques, bares, praças e comércio estão restritos. Isso significa que todos aqueles cuidados supracitados cresceram exponencialmente, e continuam recaindo sobre as mulheres.
Uma recente pesquisa da Sempreviva Organização Feminista e da revista digital Gênero e Número, sobre O trabalho e a vida das mulheres na pandemia, estima que 50% das brasileiras passaram a cuidar de alguém nesse período e 72% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia, especialmente pelo cuidado com crianças, idosos ou pessoas com deficiência. Além disso, 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a manutenção financeira da casa em risco, número ainda maior entre mulheres negras (55%). Ainda, 41% das mulheres que seguiram com suas atividades laborais durante a pandemia com manutenção de salários afirmaram que estão trabalhando mais na quarentena.
Dentre as que podem exercer atividades profissionais de casa e realizar o chamado teletrabalho ou home office, o desafio é imenso, já que trabalho externo e doméstico se misturam e parecem não ter fim, um se sobrepondo ao outro. O tempo da faxina, da higienização, de cozinhar e lavar se somam às tantas outras demandas externas. Mães se tornam educadoras de seus filhos, filhas de idosos e enfermos se tornam cuidadoras; os trabalhos outrora compartilhados com creches/escolas e outras profissionais e ajudantes se acumulam e se justapõem, apagando a divisão entre tempo trabalho e tempo casa. A realização de trabalhos que exigem alta concentração, por exemplo, não combina com uma rotina de interrupções. Após a implementação de medidas de isolamento em diversas partes do mundo, equipes editoriais de publicações científicas têm noticiado uma queda acentuada na quantidade de submissões de artigos assinados por mulheres em todo o mundo, enquanto as publicações dos homens aumentaram em quase 50%.
Além de constante, o trabalho do cuidado doméstico requer outras considerações. É preciso levar em conta as atividades das outras pessoas ao redor, não apenas dos dependentes, mas os barulhos, as distrações, demandas de atenção. Esse cuidado psicológico, de amor e zelo, também são tarefas atribuídas às mulheres no espaço privado e geram enorme carga mental e emocional. Assim, atividades que já recaiam sobre as mulheres antes da pandemia seguem seu mesmo destino agora, mas de forma extenuante.
A casa não é espaço apenas de relações privadas, mas também de produção e reprodução de comportamentos, regras e valores sociais, bem como de hierarquias e da divisão sexual do trabalho. E se a regra é que o trabalho doméstico do cuidado recaia sobre as mulheres, é o trabalho remunerado delas que está em jogo, sua autonomia de renda e também suas possibilidades de profissionalização e qualificação.
Não é à toa que mulheres ocupam a maior porcentagem do trabalho informal no mundo, consequência da flexibilidade necessária para ter tempo de cuidar e manter os serviços domésticos (não remunerados) para a família. Um relatório da Oxfam afirma que, em todo o mundo, cerca de 42% das mulheres não conseguem encontrar emprego por conta do trabalho que dedicam à casa e à família, enquanto apenas 6% dos homens enfrentam esse entrave.
Além disso, a ideia de que o papel social da mulher historicamente está ligado às tarefas do cuidado conduziu a uma especialização que destina às mulheres das camadas médias e proletárias da sociedade as “ocupações subalternas, mal remuneradas e sem perspectiva de promoção”, com baixo prestígio e pouco reconhecimento social, como afirma a socióloga brasileira Heleieth Saffioti, no livro A Mulher na Sociedade de Classes (2013), publicado pela primeira vez em 1967. “Como a atividade ocupacional feminina é posta em segundo lugar, não há, para ela, nem motivos e nem tempo para que se dedique eficazmente, através das organizações sindicais, a melhorar sua posição de barganha no mercado de trabalho”, complementa (2013, p. 98).
No Brasil, o IBGE estima que em 2050 haverá cerca de 77 milhões de pessoas dependentes de cuidado (pouco mais de um terço da população do país) entre idosos e crianças. Isso teria que preocupar a sociedade como um todo sobre quem deveria se responsabilizar por esse trabalho, já que o curso da história continuaria a conduzi-lo às mulheres. Esse mesmo cenário se alastra por todo o mundo.
Soluções imediatas à crise não são difíceis de encontrar. Como a Oxfam aponta, se o 1% mais rico do mundo pagasse uma taxa extra de 0,5% sobre sua riqueza nos próximos 10 anos, seria possível criar 117 milhões de empregos em educação, saúde e de cuidado para idosos. Mas, dadas as atuais condições, não há nenhuma perspectiva concreta de que isso possa se realizar. Pelo contrário, o que vimos ao longo da pandemia foram ajudas econômicas estrondosas dos Estados para grandes bancos e empresas. Nos países onde surgiu o debate sobre a possibilidade de um imposto extraordinário às grandes riquezas, como no caso da Argentina e do Chile, houve enorme resistência por parte da elite mais poderosa que até o momento impediu qualquer avanço nesse sentido.
A partir disso, entendemos o que feministas como Alexandra Kollontai explicaram há quase um século: “O capitalismo colocou um fardo esmagador sobre os ombros da mulher: fez dela uma trabalhadora assalariada sem ter reduzido seus cuidados como governanta ou mãe”.
O “trabalho da mulher” como construção social
Apesar dos esforços para nos convencer do contrário, o fato de as mulheres assumirem esses trabalhos não é natural. A condição da mulher na sociedade de classes é resultado da injunção de valores de duas ordens diversas, a natural e a social. A primeira baseia-se nos fatores biológicos, segundo os quais a sociedade atribui o trabalho de cuidado exclusivamente à mulher a partir de sua proximidade com a maternidade, que decorre de sua capacidade de gestar e amamentar. Mas, como afirmou Saffioti em A mulher na sociedade de classes, “estando a sociedade interessada no nascimento e socialização de novas gerações como uma condição de sua própria sobrevivência, é ela que deve pagar pelo menos parte do preço da maternidade” (Saffioti, 2013, p.86).
Nos anos 1970, um movimento social global feminista emergiu promovendo uma Campanha de Salário para o Trabalho Doméstico, o que também incluía o direito à igualdade de remuneração e à licença parental. Criada na Europa, se espalhou para os Estados Unidos, Itália, Inglaterra e demais países do Sul Global pelas ações de Selma James, Silvia Federici, Leopoldina Fortunati, dentre outras. A campanha também condenava a divisão sexual do trabalho e o processo de hierarquização de algumas tarefas sobre outras, ocasionando a desvalorização dos trabalhos reprodutivos que, ainda que essenciais na produção e reprodução da vida das pessoas, foram desde então identificados como improdutivos, desvalorizados, não reconhecidos e, portanto, excluídos de toda relação salarial. Em uma sociedade na qual o dinheiro é o equivalente universal de todas as trocas, o acesso das mulheres a certos bens se viu brutalmente reduzido. Conforme seu lugar foi estruturado ao redor do trabalho doméstico, e este ficou fora de qualquer relação salarial, as mulheres ficaram subordinadas economicamente aos homens.
Ecoando a análise de Frederich Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Angela Davis, em Mulheres, raça e classe, agrega que essa hierarquização do trabalho veio junto com o desenvolvimento do capitalismo e da propriedade privada. Ela escreve:
Nas sociedades capitalistas avançadas, por outro lado, o trabalho doméstico, orientado pela ideia de servir e realizado pelas donas de casa, que raramente produzem algo tangível com seu trabalho, diminui o prestígio social das mulheres em geral. No fim das contas, a dona de casa, de acordo com a ideologia burguesa, é simplesmente a serva de seu marido para a vida toda.
A subordinação arraigada e estrutural das mulheres, portanto, é fruto do capitalismo e da ganância sem limites deste sistema, que busca subsidiar seus lucros e o custo de produção com trabalho reprodutivo não remunerado feito sobretudo por mulheres, trabalho este que, como vimos, aumentou exponencialmente durante a pandemia de Covid-19.
A divisão sexual do trabalho é uma construção social que historicamente diferencia as ocupações entre homens e mulheres. No capitalismo, essa diferença apresenta-se indiscutivelmente desigual, destinando determinadas funções prioritariamente aos homens (políticas, religiosas, militares, por exemplo) e reservando outras às mulheres (tarefas de reprodução, assistência, cuidado doméstico e familiar). À tarefa dos homens é atribuído maior valor agregado em termos de prestígio e remuneração. Portanto, são dois os princípios organizadores da divisão sexual do trabalho. Primeiro, a própria separação entre o que é trabalho da mulher e do homem; segundo, a hierarquia que confere maior valor ao trabalho masculino. Essa estrutura mantém a desigualdade entre os sexos, caracterizando maior exploração e opressão sobre o trabalho e papel das mulheres na sociedade.
Como resultado dessa divisão sexual incrustada na lógica social do trabalho, o trabalho doméstico e de cuidado é continuamente desvalorizado e invisibilizado. Fatores que se mostraram não apenas úteis ao capitalismo – ao possibilitar a gratuidade quase incontestável desse trabalho – mas que retroalimentam os efeitos psicológicos sobre as mulheres, que têm de si próprias uma imagem cujo componente básico é um destino social profundamente determinado por seu sexo – e pelo o que a sociedade a ela permite ou demanda.
O CoronaChoque abre uma oportunidade de pautar um debate global sobre a natureza essencial do trabalho de cuidado. Um trabalho que há muito permanece invisível aos olhos daqueles que se beneficiem de sua gratuidade e que são responsáveis por perpetuar essa estrutura de exploração: a burguesia. Esta sempre foi incapaz de questionar a divisão sexual do trabalho e pautar a responsabilização coletiva e social pelo trabalho reprodutivo. Ela lucra bilhões de dólares com o trabalho reprodutivo não remunerado e absolve o Estado de assumir a responsabilidade por esse cuidado, já que, como classe, a burguesia move uma agenda política de privatização de serviços e corte de investimentos sociais.
As mulheres que sentem mais agudamente o impacto desse fardo são as negras, as pobres e as imigrantes. Subestimar esse tipo de trabalho serve a um propósito para o capital. A guerra travada pelo 1% contra os 99% parece não ter limites – mas sua invisibilidade tem.
Os 99% versus o 1%
De acordo com a OIT, a maioria dos trabalhadores do mundo – cerca de 93% – segue vivendo em países com algum tipo de fechamento de locais de trabalho e perda de postos de trabalho; os países do Sul Global experimentam as maiores restrições. Essa mesma maioria é aquela que precisa sair para trabalhar, buscar ou manter alguma fonte de renda, pois não tem reservas para esperar passar a pandemia em quarentena. A ausência do Estado na garantia de uma renda básica/mínima emergencial na maior parte do mundo – com importantes exceções como Cuba, Venezuela, Kerala (Índia), e Vietnã – evidenciou um sistema neoliberal voltado ao lucro e não à vida.
A parcela rica da sociedade não dispensou empregadas durante a pandemia, mesmo quando a OMS recomendava distanciamento social e quarentena. Muitas domésticas e prestadoras de serviços foram mantidas para cuidar das casas, dos corpos, da saúde e do bem-estar dos ricos, estes sim, em casa, seguindo as recomendações das autoridades sanitárias.
Uma série de outros fatores colocam os pobres e a classe trabalhadora em maior risco de adoecer e morrer: entre eles, a falta de acesso a serviços de saúde de qualidade e uma maior probabilidade de possuir fatores de risco preexistentes devido às condições de vida a que são submetidos – de asma induzida por usinas de carvão e poluição a problemas crônicos causados por condições de trabalho precárias. Não é por acaso que a primeira pessoa a morrer de Covid-19 no estado do Rio de Janeiro tenha sido uma empregada doméstica de 63 anos. Sua empregadora havia retornado recentemente de uma viagem à Itália e omitido a possibilidade de estar infectada. Enquanto sua patroa estava em quarentena, recusava-se a permitir que a empregada doméstica ficasse em casa; a trabalhadora continuou a ir ao seu local de trabalho em um dos bairros mais caros do país. A patroa havia contraído o coronavírus e infectou a doméstica, que acabou morrendo.
Outros tantos são os casos relatados de domésticas que não foram dispensadas pelas patroas, mesmo tendo que enfrentar longas viagens de transporte público e aglomeração entre suas casas e o trabalho. Há, inclusive, casos de pessoas que, mesmo sabendo que estavam infectadas, seguiam exigindo a presença das empregadas. Enquanto ganhou visibilidade diante dos empregadores a necessidade e importância da limpeza, do trabalho doméstico, do cuidado, o valor da vida dessas trabalhadoras, não.
Para fazer frente a essa situação, devemos reconhecer as raízes do que contribui para o adoecimento na sociedade capitalista: as desigualdades baseadas na divisão social, sexual, racial e econômica do trabalho. Mas reconhecer essa realidade não é suficiente. A crise da Covid-19 abre a possibilidade de dar um novo sentido tanto ao valor do trabalho quanto ao valor da vida das mulheres que cuidam da reprodução e manutenção de nossa sociedade. Devemos avançar na discussão do reconhecimento social dos trabalhos invisíveis e sua remuneração ou coletivização, assim como o reconhecimento sobre a vulnerabilidade da vida e do direito de todas as pessoas a serem cuidadas. O que implica avançar em um processo de desmercantilização e desfamiliarização do cuidado, para que o acesso a ele deixe de ser um privilégio para se inscrever em uma perspectiva de direitos humanos.
Em alguns países e regiões ganham força propostas de criação de sistemas federais de cuidados que tentam dar resposta a essas preocupações, como é o caso do Uruguai. Na Argentina, a criação do Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidades implicou um avanço na discussão sobre a organização do cuidado; desde o princípio do ano o governo está trabalhando em um Mapa Federal de Cuidados para poder planejar políticas públicas que se proponham a reverter as desigualdades de gênero invisibilizadas na atual organização social do cuidado.
O aumento da violência patriarcal sob o CoronaChoque
Antes da pandemia já convivíamos com uma média global de 137 mulheres mortas por dia por alguma pessoa da família. Uma em cada cinco mulheres no mundo, entre 15 e 49 anos, já sofreu violência física ou sexual de seu companheiro, segundo a ONU. Países da África, Sul da Ásia e América Latina puxam essa média global para cima. São números estarrecedores. Não por acaso o combate à violência contra as mulheres se tornou a pauta mais forte de grande parte dos movimentos de mulheres a partir do final do século XX em todo o mundo. As restrições à circulação e políticas de isolamento pioraram ainda mais esse cenário. Nos últimos anos, observou-se também um aumento de transfeminicídios em todo o mundo, no bojo da intensificação dos discursos de ódio contrários aos direitos humanos.
Embora se saiba que os níveis de violência patriarcal são muito altos, especialmente no Sul Global, é muito difícil obter estatísticas precisas. No entanto, sabemos que em períodos de emergências e isolamento esses índices se elevam, e não seria diferente agora. Desemprego, superlotação, trabalho remoto, sobrecarga de trabalho reprodutivo, empobrecimento crescente, dificuldade em manter o sustento econômico e abuso de drogas e álcool são alguns dos elementos que exacerbam a violência de gênero. Grupos de mulheres alertam que as condições do isolamento podem ser usadas por abusadores para controlar o comportamento de suas parceiras, impedindo seu acesso à segurança e apoio.
Ativistas feministas e autoridades políticas que estão cientes dessas questões anteciparam os impactos de gênero do distanciamento social e das medidas de quarentena aplicadas em todo o mundo, alertando desde o início que as exigências impostas pela pandemia poderiam atingir as mulheres de maneira específica, intensificando a violência de gênero. Um aspecto fundamental é que muitas dessas mulheres se viram privadas de todos os laços sociais e profissionais, distanciando-se da família, das amigas e colegas, o que por sua vez aumenta a dependência em relação a seus agressores. Por isso, apoiar as mulheres que vivenciam a violência de gênero deve incluir a importante tarefa de reconstruir uma rede de apoio para que possam recuperar sua autonomia econômica, emocional, cognitiva e habitacional.
No Brasil – país onde uma mulher era agredida a cada 15 segundos em média antes da pandemia – as taxas de feminicídio (assassinato de mulheres por causa de seu gênero) aumentaram em 2020 em comparação com os anos anteriores. O estado de São Paulo, por exemplo, registrou um aumento de 46,2% de março de 2020 comparado a março de 2019, enquanto essas mesmas taxas de feminicídio aumentaram 300% no Rio Grande do Norte e 400% no Mato Grosso. Os atendimentos da polícia a chamadas com denúncias de violência doméstica aumentaram 44% só no estado de São Paulo, e o número de agressores pegos em flagrante aumentou 51% nesse mesmo estado. Esses números refletem apenas os casos que são denunciados à polícia – muitos outros não são notificados e, portanto, não são incluídos nessas estatísticas. Na Argentina, o número de feminicídios no primeiro mês de isolamento social foi de cerca de um assassinato por dia; 66% desses casos ocorreram na casa da vítima.
Na África do Sul, antes da pandemia, a taxa de feminicídio era cinco vezes maior que a média global. No entanto, o país não produz estatísticas que reflitam de forma adequada as análises ou dados da violência de gênero, supostamente por ser difícil reunir dados confiáveis sobre o tema. De abril de 2018 a março de 2019, a polícia sul-africana registrou 179.683 crimes contra mulheres (em que as próprias vítimas são alvos de violência), como homicídio, tentativa de homicídio, ofensas sexuais, lesões corporais e “agressão comum”. Destes, 82.728 foram casos de “agressão comum” e 54.142 foram agressões com a intenção de causar lesões corporais graves. Naquele ano, 2.771 mulheres foram assassinadas, além de outras 3.445 tentativas de assassinato – embora a polícia não forneça dados sobre os motivos desses assassinatos. Houve 36.597 casos registrados de crimes sexuais contra mulheres. Esta é uma ampla categoria de crime que inclui estupro, tentativa de estupro, agressão sexual e outros crimes sexuais.
Durante a primeira semana em que a África do Sul esteve em quarentena, entre 27 e 31 de março de 2020, a polícia registrou 2.300 ligações sobre violência de gênero. Em um webinar (evento ao vivo que acontece em plataformas virtuais) em 20 de abril de 2020, Sonke Gender Justice, uma ONG sediada na África do Sul, relatou que esses números não revelam toda a extensão da violência contra mulheres e crianças, já que a maioria das mulheres abusadas não pode sair e apresentar queixas.
Outros países também registraram aumento das agressões dentro de casa desde o início da pandemia. A palavra de ordem adotada pelas argentinas, “el femicidio no se toma cuarentena” [o feminicídio não entra em quarentena] mostra como uma realidade já complicada pode piorar. Como uma solução para esse desafio, na França, que experimentou um aumento de 32% das denúncias após os primeiros dias de confinamento, o governo passou a pagar quartos de hotel para vítimas de violência doméstica e anunciou a abertura de centros de aconselhamento para vítimas desse tipo de abuso.
Os movimentos de mulheres têm criado novas maneiras de lutar contra essa realidade. Na Argentina, em 30 de março, na segunda semana de quarentena, o movimento feminista organizou um ruidazo federal [barulhaço federal] contra a violência patriarcal após ocorrer um duplo feminicídio. Atingidas pelas restrições à mobilidade, comunidades e associações de vizinhos ganharam um papel significativo na criação de redes de apoio. Como resultado, governos se viram forçados a reconhecer e dar continuidade a serviços e estruturas voltadas à proteção de mulheres. Durante a primeira fase da quarentena, países da América Latina, como Brasil e Argentina, promoveram políticas para enfrentar os efeitos do isolamento sobre as questões de gênero. As primeiras medidas foram desenvolver e melhorar as linhas telefônicas e aplicativos de celular que recebem denúncias contra violência de gênero. Na Argentina, a demanda por esse tipo de serviço no primeiro mês e meio de isolamento aumentou, em média, 40% em comparação com o mês anterior à declaração de quarentena. À medida que esta foi sendo ampliada, os recursos públicos foram fortalecidos com novas estratégias de acompanhamento, linhas diretas e coordenação entre estados, federação e a cidade de Buenos Aires. Durante a segunda fase da quarentena, o apoio feminista às mulheres em situação de violência foi declarado trabalho essencial na Argentina, permitindo que esses grupos continuassem auxiliando as vítimas.
No Brasil, iniciativas de movimentos e organizações sociais como o Mapa do Acolhimento (serviço que ajuda a conectar mulheres que precisam de ajuda psicológica ou jurídica com profissionais voluntários para atendimento presencial ou remoto) tomaram força. A Marcha Mundial de Mulheres (MMM) promoveu debates e ações de solidariedade em rede por todo o país, divulgando, inclusive, uma lista de reivindicações ao Estado e à sociedade para lidar com a pandemia e com a situação das mulheres (veja a lista no final deste estudo).
Porém, feministas e organizações de mulheres têm denunciado neste último período não apenas o aumento da violência patriarcal, mas também o aumento da crueldade dessa violência, como bem apontou Rita Segato, à medida que ideias neofascistas de subordinação feminina eclipsam concepções mais esclarecidas sobre as mulheres. Ideias conservadoras que têm encontrado terreno fértil no Brasil do governo Bolsonaro, na Índia de Modi e tantos outros países com governos conservadores de direita. A retórica misógina da ideologia neofascista, reiterada por esses chefes de Estado, promovem abertamente o ódio contra as mulheres e terminam por legitimar os agressores. A violência é então naturalizada, despida de sua gravidade e, assim, o poder público não apresenta nenhuma ação contra ela. Pelo contrário, a encoraja. Isso facilita em muito o aumento da violência, já que brigar e eliminar pessoas é a regra na barbárie, apoiadas pelo discurso de ódio e pela falta de responsabilização ou criminalização dessas atitudes.
O aprofundamento dos discursos de ódio e da ideologia sexista está acompanhada por um aumento da retórica homofóbica e transfóbica, com importantes repercussões na violação dos direitos humanos da população LGBTQIA+. Durante a pandemia, a comunidade transgênero se viu exposta à discriminação, intimidação e perseguição por parte das forças de segurança.
Em muitos países as políticas impulsionadas pelas autoridades se caracterizaram pela ausência de uma mirada inclusiva em relação à comunidade transgênero, reforçando assim o binarismo sexista. As restrições de mobilidade em alguns países se estabeleceram segundo o sexo, o que excluiu pessoas não binárias e trans, que ficaram expostas a situações de violência e ao arbítrio das forças de segurança. A implementação dessas políticas frequentemente fica a critério das forças de segurança que então decidem se uma mulher transgênero pode ou não ser incluída nas normas previstas para as mulheres, ou se deve seguir as normas para homens, ou mesmo ficar no meio e se ver impedido/a de sair de casa. No meio dessa incerteza, frequentemente a polícia tem protagonizado atos de violência contra transgêneros e não-binários, enquanto vendedores de lojas se negam a atendê-las/los – seja por simples transfobia ou por medo de serem multados ou punidos pelas autoridades.
Há também casos em que o contexto da pandemia foi utilizado para incrementar o ataque às organizações e ativistas LGBTQIA+, e em alguns episódios as pessoas trans foram obrigadas a negar sua identidade de gênero autodeclarada. À raíz desses acontecimentos e de outras denúncias realizadas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez um chamado aos Estados americanos para que garantam os direitos à igualdade e não-discriminação das pessoas LGBTQIA+.
Nesse sentido, as consequências sociais das atitudes políticas não podem ser desconsideradas e apartadas da análise do aumento da violência doméstica no período de quarentena em diversos países do mundo. Esse cenário cria, seja no Brasil ou na Índia, um modelo de vida que se torna inviável. Não se trata apenas de uma pandemia que agrava problemas históricos sociais, mas de uma sociedade que se desgasta ao ponto de deflagrar seu declínio. É hora de se livrar das hierarquias e misérias herdadas do passado e construir as utopias possíveis – e necessárias – para o futuro.
Demandas feministas populares
O CoronaChoque está expondo a crise estrutural do capitalismo, demonstrando a urgência de superar antigos problemas que se agravaram no período recente, como a preexistente crise social, econômica, política e ideológica. Se a burguesia em nível global não tem solução para problemas básicos como desemprego, fome, violência de gênero, desvalorização, invisibilidade e precarização da reprodução social, a classe trabalhadora tem suas propostas. Por isso, as mulheres de organizações políticas e movimentos sociais de todo o mundo têm se organizado para apresentar suas pautas para a superação dessas crises em meio à crise epidemiológica global. Com mulheres da classe trabalhadora organizada e mulheres negras liderando essa mudança, sabemos não apenas que um outro mundo é possível, mas que esse mundo deverá ser socialista, feminista e antirracista; nele, o bem-estar da humanidade e de nosso planeta é colocado infinitamente adiante da acumulação de lucro. Esse mundo é possível – e necessário. A seguir, apresentaremos uma lista de reivindicações urgentes de organizações feministas em todo o globo, do Brasil à Índia, passando pela África do Sul. São as propostas de mulheres que lutam todos os dias para criar esse mundo.
- Garantir que as medidas exigidas pelos movimentos sejam disponibilizadas a todas as pessoas, com especial atenção àqueles e àquelas mais sistematicamente excluídos/as: mulheres, trabalhadores informais, migrantes, pessoas negras, castas inferiores e pessoas LGBTQIA+. Essas reivindicações gerais, que foram descritas em textos anteriores com mais detalhes, incluem:
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- anistia nas cobranças de contas de energia, água, aluguel, internet entre outros durante todo o período da pandemia;
- distribuição massiva de itens de higiene pessoal (incluindo máscaras e álcool em gel);
- congelamento do preço de alguns itens essenciais, como produtos sanitários e de alimentação saudável (grãos, legumes, carnes, conforme especificidades culturais de cada país e/ou região);
- que as trabalhadoras e os trabalhadores possam se afastar do trabalho, sem perda de remuneração e direitos;
- ajuda econômica (de pelo menos um salário mínimo) para quem está no trabalho informal ou trabalhando por conta própria.
- Deve haver total transparência de informações e de dados sobre a evolução da pandemia e sobre as medidas governamentais de cada país (desagregados por sexo, identidade de gênero, orientação sexual, idade, renda e região, sempre que possível)
- Mulheres da classe trabalhadora e/ou de movimentos sociais devem participar ativamente na tomada de decisões sobre iniciativas que busquem a recuperação das crises atuais.
- Devem ser lançadas campanhas governamentais que fomentem o compartilhamento equitativo da carga de cuidados entre homens e mulheres para garantir que todo o ônus do trabalho doméstico não recaia apenas sobre as mulheres.
- Deve haver aumento nos investimentos público/estatais de longo prazo em áreas sociais, tais como proteção social, aposentadoria, saúde pública universal, educação infantil pública, dentre outras ações que afetam diretamente as mulheres.
- Os pacotes de resgate e estímulo financeiro dos governos devem incluir medidas de proteção social que reflitam a compreensão das circunstâncias especiais das mulheres e o reconhecimento da economia do cuidado.
- Garantia de uma renda mínima para as mulheres e famílias que realizam várias formas de trabalho de cuidado essencial (incluindo o trabalho doméstico), especialmente as que tiverem dependentes em casa.
- Distribuição de cesta básica para as famílias com crianças cujas creches/escolas suspenderam as aulas.
- Exigir intervenções sanitárias essenciais para proteger a saúde de todas as pessoas, com atenção especial aos marginalizados, pobres, transgêneros, migrantes, pessoas negras, idosos e pessoas com deficiência. Esses serviços devem incluir serviços de saúde mental, medicamentos para HIV/AIDS, tratamento de câncer etc.
- Garantir que as comunidades marginalizadas – incluindo pessoas trans da classe trabalhadora e migrantes sem acesso à documentação oficial – recebam serviços de auxílio; garantir a entrega imediata de ajuda emergencial, como Renda Básica Universal, distribuição de alimentos e outros serviços exigidos nesta lista.
- Exigir que o governo proteja as pessoas LGBTQIA+ e todas as pessoas marginalizadas da discriminação em meio a políticas de combate à Covid-19, como medidas que permitam que homens ou mulheres saiam de casa apenas em determinados dias.
- Descriminalizar o trabalho sexual, fornecer auxílio e ajuda alimentar, fornecer moradia emergencial para pessoas transgênero e queer sem teto e apoiar comunidades de migrantes não-nacionais e sem documentos em seus esforços para acessar serviços essenciais para sua sobrevivência.
- Garantir linhas diretas prontamente disponíveis e outros canais de comunicação e serviços acessíveis ao público para todas as vítimas de violência patriarcal e considerá-los como serviços essenciais.
- Exigir que os governos se responsabilizem pela publicidade e difusão desses números de linha direta e canais de comunicação, de forma acessível ao público, por meio de diferentes mídias – serviços automatizados, mensagens de texto, banners em ônibus, outdoors, displays em espaços públicos, anúncios em jornais, etc. – para que o serviço chegue a quem precisa.
- Exigir que os governos ofereçam serviços de aconselhamento para mulheres, pessoas marginalizadas, pobres, pessoas LGBTQIA+, migrantes, pessoas negras, idosos e pessoas com deficiência em situações vulneráveis e/ou vítimas de violência.
- Exigir que os governos ofereçam abrigo alternativo seguro e confortável durante a pandemia, como quartos de hotel e imóveis ociosos, para mulheres que lutam contra a violência doméstica, e também forneçam a proteção e segurança necessárias nesses locais; garantir a continuação desses serviços a longo prazo para atender à necessidade preexistente de tais serviços.
- Construir redes de solidariedade e ajuda coletiva que lutem contra o individualismo, a violência e que respeitem o distanciamento social; criar grupos de direitos das mulheres e campanhas informativas de bairro sobre planos de emergência para mulheres e crianças em situação de violência doméstica; e criar equipes para cuidar das crianças em bairros de maior vulnerabilidade social.
- Mobilizar profissionais de saúde para ajudar a comunidade, fortalecendo as trabalhadoras da economia popular e garantindo remuneração e equipamentos adequados.
[1]É importante distinguir a violência patriarcal de outros termos, como violência doméstica, que muitas vezes, de forma inadvertida, ignora o poder e a dominação masculina inerente a tal violência, bem como o fato de que a violência contra as mulheres não é exercida apenas no lar. Em O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, Bell Hooks escreve: “Por muito tempo, o termo violência doméstica tem sido usado como um termo ‘suave’, que sugere emergir em um contexto íntimo que é privado e de alguma maneira menos ameaçador, menos brutal, do que a violência que acontece fora do lar”. Em vez disso, a violência patriarcal é uma definição mais ampla que está ligada à desigualdade inerente do sistema capitalista, e que se manifesta em muitas formas, incluindo violência doméstica e física baseada no gênero, mas também violência simbólica e cultural. A violência patriarcal “constantemente lembra o ouvinte que a violência no lar está ligada ao sexismo e ao pensamento sexista, à dominação masculina”, escreve Bell Hooks.