Nela Martínez Espinosa (1912 – 2004) Mulheres de luta, mulheres em luta

Nela Martínez Espinosa (1912 – 2004)

Mulheres de luta, mulheres em luta

Nela Martinez, em agosto de 1988, um mês após a morte de seu marido Raymond Meriguet. 
Créditos: Nela Meriguet Martínez, Arquivo Martínez-Meriguet

 

Introdução

A segunda metade do século XX foi marcada pelas lutas de independência nos países ainda colonizados da África e da Ásia. Na América Latina, as estruturas neocoloniais subordinaram as repúblicas constituídas como independentes no início do século XIX, consolidando a posição dominada dos novos Estados na divisão internacional do trabalho.

Durante as décadas de crise mundial (1914-1948), foram travados na América Latina combates entre uma corrente oligárquica, que tentava violentamente impor o peso da crise sobre os ombros das classes populares; e uma corrente de esquerda, alimentada por dois processos: a crescente organização popular camponesa e sindical, e uma classe média radicalizada. Ambos os setores da corrente de esquerda, olhando para as novas formas de desapropriação material que impossibilitavam as promessas da democracia republicana, levantaram um discurso sobre as contradições de classe, as dominações patriarcal e neocolonial, ao lado de novas visões do conceito de nacional e perspectivas de internacionalismo democrático e socialista contra o fascismo que surgia. Inspiraram-se nas mobilizações e transformações de poder popular alcançadas pela Revolução Mexicana e pela Revolução Russa. A luta pela igualdade e poder popular com a direção da classe trabalhadora continua nas disputas anti-imperialistas de nosso tempo. As mulheres, de inúmeras maneiras, moldaram e continuam a moldar essa luta contra o capitalismo oligopolista, patriarcal, racista e neocolonial.

Na série Mulheres de Luta, Mulheres em Luta do Instituto Tricontinental de Pesquisas Social, apresentamos as histórias de mulheres que contribuíram não apenas para o campo mais amplo da política, mas que também foram pioneiras na criação de organizações de mulheres, abrindo caminhos de resistência e de luta feminista ao longo do século XX.

A práxis é fundamental como conhecimento da teoria e dos métodos organizacionais de luta. Esses métodos, à medida que mudam e respondem à história, dão sustentação aos movimentos em marcha para enfrentar a opressão. Como militantes, estudamos os diversos métodos das mulheres e suas organizações não apenas para entender melhor suas contribuições políticas, mas também para nos inspirarmos enquanto construímos as organizações necessárias para nossa luta contra a opressão e a exploração.

Neste terceiro estudo analisamos a vida e o legado de Nela Martínez Espinosa, lutadora popular equatoriana. Escritora e militante comunista desde cedo, com ampla trajetória internacionalista, foi a primeira deputada eleita no Equador, criou uma das primeiras grandes organizações políticas de mulheres, em 1938. Como primeira mulher ministra de governo, na prática esteve no comando do país nos caóticos três dias que se seguiram à insurreição chamada La Gloriosa, em maio de 1944.

Sua rica história de militância nos ensina sobre a trajetória das mulheres nas lutas locais, nacionais e internacionais que vinculam os direitos das mulheres às lutas anticapitalistas, antifascistas, antirracistas, anticoloniais e anti-imperialistas ao longo do século XX. Nas palavras da própria Nela, no Congresso Nacional do Equador em 2003, um ano antes de sua morte, referindo-se à primeira vez que esteve lá como deputada em 1945:

Vim, pela primeira vez, no transe do meu amor por esta Pátria que ainda continua em luta consigo mesma, mas já então resgatada de uma ditadura que aumentou a opressão. Aqueles que viram na revolução que nós reivindicamos o maior perigo, e nos negaram o direito de fazê-la e vivê-la, ficaram simplesmente comovidos. Uma mulher no Congresso entre os que falavam e não apenas entre os que ouviam? A norma colonial herdada na prática de pensar e fazer regeu — palavra que vem de reinar, de Rei: o supremo, aquele que comanda — durante a Colônia destruidora da outra cultura, a do índio, a ponto de constituir-se em caráter, em forma de vida daqueles que mais tarde se tornaram republicanos. A prática da que falamos permaneceu deitada nas normas e, mais ainda, na ação social. Por isso minha presença era estranha no Congresso Nacional e, ao cumprimentá-la, os dirigentes políticos reconheceram, pela primeira vez, a cidadania das mulheres também na instância do poder.

 

Primeiros anos

Nela Martínez nasceu em 1912 em Cañar, uma pequena cidade abrigada pela Cordilheira dos Andes, no sul do Equador, em uma família proprietária de terras e muito religiosa. O pai, César Martínez, era membro do Partido Conservador. A mãe, Enriqueta Espinosa, era uma mulher culta e de tendências liberais, que inculcou em seus quinze filhos o gosto pela leitura, conhecimento e cultura.

Desde a infância, Nela conviveu com os filhos e filhas dos trabalhadores indígenas da fazenda de seu pai, submetidos à exploração econômica e racial herdada da Colônia e que continuou na época republicana. “Daí meu apego às questões indígenas. Quando eu era muito jovem, eu via o mundo dos índios muito longe do mundo dos patrões, o índio estava lá, em tudo, mas ao mesmo tempo ausente”. Aos 10 ou 11 anos, participou de um protesto dos indígenas da fazenda contra seu pai (Laurini, 1992).

Aos 12 anos, Nela ingressou no internato do Colégio Católico de los Sagrados Corazones, na cidade de Cuenca. Foi nessa fase da adolescência que teve seu primeiro contato com textos revolucionários: a revista Amauta, editada e publicada por José Carlos Mariátegui, em Lima (Peru), foi uma de suas primeiras leituras. Ela gastou o pouco dinheiro que sua família lhe deu em livros e estudou o socialismo andino. Ela voltou para sua cidade em 1927 sem diploma, porque naquela época as mulheres não podiam se graduar.

 

 

 

 

Plenária do Comitê Central do Partido Comunista do Equador, reunido em Quito em 1947. Sentadas, as três mulheres que faziam parte dele: à esquerda Luisa Gómez de la Torre, à direita, Dolores Cacuango, líder da Federação Equatoriana de Índios e Nela Martínez Espinosa
Créditos: Arquivo Martínez-Meriguet

 

A Revolução Liberal e a crise do projeto liberal radical

A Revolução Liberal de 1895, liderada pelo general Eloy Alfaro, havia iniciado o árduo processo de remoção das bases do Estado latifundiário-conservador no Equador: o predomínio da Igreja (transnacional) sobre a República; a censura da imprensa e de representação política imposta ao Partido Liberal e ao Radicalismo[1] e o domínio servil das comunidades indígenas da Serra, sustentado na desapropriação de suas terras ancestrais.

Esses novos horizontes políticos mobilizaram amplas camadas rurais, plebeias urbanas e até setores periféricos da burguesia. A bem-sucedida articulação desses grupos sustentou a vitória militar que marcou uma nova via de formação estatal, antagônica à do tradicional partido latifundiário ultraconservador e clerical. O impacto do auge liberal permeou o Estado e marcou as identidades sociais de setores progressistas nas décadas seguintes. No entanto, a expansão da economia em torno do cultivo e exportação de cacau, bem como a dependência financeira e comercial das elites equatorianas de países estrangeiros, marcaram uma trajetória oligárquica ainda mais acentuada durante a crise global pós-Primeira Guerra Mundial.

O ódio político dos conservadores e as disputas internas do Partido Liberal motivaram o cruel assassinato de Eloy Alfaro pelas mãos de uma multidão enfurecida, em 1912. Esse fato não acabou com o regime liberal, mas deu início a um período de recomposição de suas forças. Uma nova aliança entre as oligarquias da costa litorânea, associadas ao comércio e aos bancos, e a incipiente burguesia incrustada nas estruturas do Partido Liberal, fez com que os setores mais progressistas e revolucionários dos trabalhadores, do campesinato e das comunidades indígenas, melhor representados pela corrente de Alfaro, reagissem e questionassem a hegemonia liberal.

As cruzes sobre a água: pujança das organizações classistas

Diante da crescente desigualdade e do consequente descontentamento popular, o governo liberal recorreu à repressão com maior assiduidade e violência. Na cidade com a maior concentração proletária do país, o porto de Guayaquil, estourou uma greve geral vitoriosa, na qual convergiram as demandas de numerosos setores profissionais e do proletariado industrial. Após a paralisação total da cidade por dias, o governo liberal fez uso do Exército para esmagar a mobilização, resultando em um massacre com centenas de vítimas em 15 de novembro de 1922. Joaquín Gallegos Lara imortalizou o massacre de trabalhadores em sua obra Las cruces sobre el agua [As cruzes sobre a água], em alusão aos cadáveres flutuando no rio Guayas.

Longe de extinguir o conflito, esse episódio brutal radicalizou a ação dos setores mais organizados e revolucionários da classe trabalhadora. Em um contexto de crescente antagonismo de classes, consolidou a incorporação de novos atores políticos – o movimento indígena, o movimento camponês, o incipiente proletariado industrial, as mulheres –, antes desprovidos de poder político e de representação efetiva perante o Estado e a oligarquia.

Alguns desses novos atores articularam uma crítica radical ao projeto liberal. Por um lado, dentro da própria estrutura do Partido Liberal, grupos radicais questionaram as novas alianças com a oligarquia comercial e financeira e, finalmente, optaram pelo Partido Socialista Equatoriano. Em segundo lugar, as comunidades indígenas e camponesas despojadas de suas terras, cada vez mais pressionadas pela pujança dos latifundiários (sejam conservadores, sejam novos proprietários aliados às elites liberais), fortaleceram suas demandas por reconhecimento político por parte do Estado liberal. Em terceiro lugar, as massas trabalhadoras urbanas – o novo proletariado industrial – desenvolveram novas ferramentas de organização e luta por meio dos sindicatos setoriais e locais recém-criados, sendo o Partido Comunista do Equador muito importante nesse processo. Outros segmentos insatisfeitos com o regime liberal alimentaram a oposição progressista: grandes contingentes de professores e educadoras, jovens intelectuais, setores progressistas do exército, entre outros.

O Partido Comunista do Equador (PCE) foi formado em 1931, a partir de uma cisão do Partido Socialista Equatoriano (PSE), fundado em 1926. A discussão sobre a adesão ou não ao Comintern – o PCE foi o partido que aderiu à III Internacional – foi o último capítulo na crescente divergência entre as lideranças do PSE, não apenas nas esferas doutrinárias e ideológicas, mas também nas organizativas e táticas.

O Partido Socialista Equatoriano foi um ator fundamental nas reformas do Estado implementadas pelo recém-criado Ministério da Assistência Social e Trabalho: redistribuição de terras para comunidades indígenas, proibição do trabalho servil nas fazendas, consagração de direitos trabalhistas e até mesmo a configuração do Senado, incluindo a representação das classes trabalhadoras, indígenas, professores e funcionários públicos. Apesar de sua aposta por uma intervenção a partir das estruturas do Estado para efetivar uma reforma democrática radical, os militantes socialistas não conseguiram conter a pressão das elites para reprimir as organizações autônomas das classes populares. Aspirações reformistas de justiça social, representatividade, direitos sociais e políticos, bem como o reconhecimento de direitos ancestrais (no caso dos setores indígenas) foram incluídos na Constituição de 1928, tendo sido chave o papel dos quadros e advogados socialistas na formulação dessas reformas na lei.

Por sua vez, o PCE participou ativamente da organização da classe trabalhadora, tanto urbana quanto rural. Consciente da importância de fortalecer a ação coletiva organizada para efetivar os direitos consagrados na nova Constituição, a liderança comunista propôs um intenso trabalho com as comunidades indígenas da Serra Central e os setores camponeses despossuídos; promoveu articulações entre setores da classe trabalhadora para fortalecer a solidariedade entre grupos e a organização de greves, em âmbitolocal como nos setores sindicais e profissionais; e foi fundamental na batalha de ideias, desenvolvendo uma imprensa crítica vigorosa.

Como organização política incipiente, o PCE se organizou em células locais compostas por poucos militantes, mas muito atuantes e bem conectadas entre as regiões. Essa estrutura permitiu a articulação da militância comunista com um grande número de organizações de vários tipos, desde comunidades indígenas do centro e norte da Serra e do Litoral até sindicatos, associações etc. Alguns cálculos sugerem que o Partido conseguiu organizar até 600 mil camponeses em 1943 (Coronel, 2022). Foi esse trabalho militante de base, lado a lado com as organizações sindicais e camponesas nos centros de trabalho, nas localidades, e progressivamente nas instituições – muitas vezes, em coordenação com o Partido Socialista Equatoriano, estrutura com maior número de quadros e inserção institucional –, aquela que colocou o Partido Comunista na vanguarda do processo de acumulação de forças no período 1941-1944, que levaria à insurreição denominada La Gloriosa.

Militância primeira: sindicatos, Partido Comunista do Equador e a Federação Equatoriana de Índios

O encontro de Nela Martínez com Joaquín Gallegos Lara, em 1930, durante uma visita de Nela, acompanhada de sua mãe, a Guayaquil, mudaria a vida de ambos para sempre. Gallegos Lara, com apenas 21 anos, já era um escritor consagrado, ligado ao mundo sindical e militante do Partido Comunista. Nela descobriu em Gallegos um vínculo de vida e militância, um “amor pelo futuro coletivo”, em suas próprias palavras.

Nela se mudou para Ambato, cidade da Sierra Central, e conseguiu um emprego humilde como professora. Em 1933, ingressou no Partido Comunista, sendo a única mulher do núcleo local, e iniciou sua atividade política por meio de intenso trabalho de organização de base com trabalhadores e camponeses. Durante esse período, estabeleceu relações com sindicatos de diferentes ofícios, publicou textos revolucionários radicais e organizou protestos e manifestações.

A distância física entre Nela Martínez e Joaquín Gallegos Lara não impediu que o relacionamento deles se tornasse cada vez mais íntimo e mais comprometido politicamente. Durante anos, a correspondência entre os dois sustentou a relação amorosa e foi o veículo para a troca frutífera de ideias políticas que enriqueceram o diálogo entre Sierra e Costa. Em uma das cartas que Nela escreve aos 19 anos, ela expressa a Joaquín sua posição sobre a situação da mulher, referindo-se à tentativa de seu pai de casá-la com o filho de um latifundiário:

Ele quer me deter na inconsciência da rotina do viver, fazer dos meus pensamentos ironia, os poucos que ele sabe de mim, na realidade resignada que deveria ser. Dar-me um marido católico para que nem meus filhos nem as gerações futuras mudem, para que eu mesma seja o que minha mãe é, o que são as mulheres infelizes desta terra: a mulher-vítima, a mulher-coisa, a mulher-escrava. Minha recusa direta o exasperou.

(Doc. N-19320102, Arquivo Martínez-Meriguet)

O pai de Nela Martínez nunca viu com bons olhos a relação dela com Gallegos Lara. Apesar da rejeição, eles se casaram em Ambato, em 1934. Pouco tempo depois, fugindo da perseguição política das autoridades locais, Nela e Joaquín se mudaram para Guayaquil. Sua reputação de comunista militante, sindicalista e agitadora impediu Nela de estabilizar sua situação econômica. Apesar das dificuldades, os dois desenvolveram uma intensa atividade política tanto na Serra quanto no Litoral. O papel de ambos como líderes orgânicos e intelectuais do Partido Comunista, forjando vínculos e alianças com diferentes setores da classe trabalhadora e da intelectualidade, foi fundamental para superar as divisões setoriais e regionais que permitiriam a unidade de ação das classes populares.

Em 1935, o PCE envia Nela Martínez a Quito para um encontro com diferentes setores políticos do país. Ela decide se estabelecer na capital, onde Joaquín a encontra logo depois. A convivência se deteriora e eles vivem separados, embora continuem seu casamento e seu trabalho político.

Nesse ano, Joaquín escreve os primeiros capítulos de uma obra fundamental da literatura equatoriana, Los Guandos[2], uma história comovente sobre a desapropriação e subjugação dos povos indígenas da Serra, a brutalidade do sistema de dominação imposto pelas classes latifundiárias e as contradições da modernização. O romance foi concebido conjuntamente por Nela e Joaquín e sua história principal emerge da narrativa da violência da exploração dos indígenas que Nela presenciou em sua infância e juventude. “Um livro índio. O primeiro livro índio que será feito em nosso Equador. Um livro novo. Mas não será só com o meu nome que aparecerá. Vamos escrever e publicar juntos”, diz Gallegos Lara em carta a Nela em 1930 (Doc J-19301123, Arquivo Martínez-Meriguet). Décadas depois, nos anos 1980, seria Nela quem terminaria de escrever e publicaria o texto, que ficou inacabado após a morte de Gallegos Lara. A obra faz parte da literatura indigenista equatoriana, em que autores não indígenas escrevem sobre os indígenas, buscando reivindicá-los no contexto das lutas pela recuperação de seu legado à nação.

Em 1936, após tentar tirar a própria vida, Gallegos Lara decide retornar a Guayaquil acompanhado de sua mãe, que dedicou especial atenão à saúde do filho desde que este nascera com problemas para caminhar. Essa nova separação acabou sendo definitiva: Nela escreveu a Joaquín, expressando seu desejo de se divorciar. O fim de sua história de amor não os impediu de continuar sendo companheiros, de militância e de vida, até a morte de Joaquín, em 1947.

Nela continuou suas tarefas políticas no Partido Comunista e estabeleceu relações com Ricardo Paredes, o primeiro secretário-geral do Partido e arquiteto da cisão com o PSE. Os dois tiveram um filho, que foi criado por Nela, já que Ricardo Paredes, casado, não queria se divorciar. Como mãe solteira, Nela teve que enfrentar a rejeição de uma sociedade profundamente conservadora, o que se deu desde o primeiro dia, andando abertamente na rua com seu filho (Martínez e Costales, 2018). Nela foi morar com a amiga Luisa Gómez de la Torre, também professora e integrante do PCE, que durante uma década a ajudou a cuidar do filho.

Durante esses anos, Nela esteve intimamente envolvida com o processo de formação da Federação Equatoriana de Índios (FEI), a primeira organização nacional de povos indígenas do Equador. A FEI se formou a partir de vários sindicatos e organizações existentes desde a década de 1920, que lutaram contra a brutalidade com os camponeses indígenas que trabalhavam na propriedade branca, exigindo igualdade efetiva, o direito à terra e à sua identidade. Em 1930, foi organizada uma greve na fazenda Pesillo (Cayambe), que acabou por significar o evento de fundação da federação. O Partido Comunista esteve envolvido nessa e nas mobilizações subsequentes e é nesse processo que Nela Martínez conhece a líder indígena Dolores Cacuango, conhecida como “Mamá Dolores de los índios”, figura chave do movimento indígena e do PCE.

Como Dolores Cacuango era analfabeta, Nela atuou como sua secretária. Nesse período, Nela aprofundou sua consciência sobre a importância da educação como ferramenta e processo emancipatório. Já em 1940, Dolores, Nela e sua amiga e companheira de partido, Luisa Gómez de la Torre, começaram a estabelecer centros de educação bilíngue para que as crianças indígenas tivessem uma educação adequada. Esses núcleos de ensino foram pensados ​​para educá-los na perspectiva de que pudessem ser professores, mas também líderes e militantes, e assim favorecer a construção de instrumentos de mobilização popular.

A FEI foi finalmente fundada em 1944 por esses grupos indígenas mobilizados e também por alguns mestiços brancos. Em ambos os grupos havia muitos militantes comunistas, motivo pelo qual desde o início se estabelece uma relação estreita entre a FEI e o PCE.

 

Meeting of the Ecuadorian Women's Alliance (AFE) at the Workers' House, Quito. Seated at the centre is Nela Martínez and standing, first on the right, is Luisa Gómez de la Torre. Source: Pacheco / Martínez-Meriguet Archive

Reunião da Aliança Feminina Equatoriana (AFE) na Casa del Obrero, Quito. Sentada, ao centro, Nela Martínez e de pé, primeira à direita, Luisa Gómez de la Torre. 
Créditos: Pacheco/Arquivo Martínez-Meriguet

 

 

A luta antifascista e a Aliança Feminina Equatoriana

Desde a década de 1930, Nela Martínez participou do movimento antifascista e antitotalitário que resistiu à influência no Equador dos fascistas italianos e espanhóis, bem como dos nazistas alemães. O programa nazista foi amplamente transmitido no rádio e nas universidades equatorianas, e os simpatizantes alemães do nazismo tiveram forte presença nos negócios do país, principalmente na indústria do petróleo. Oficiais da SS dirigiam as operações de espiões alemães independentes e estrategistas militares próximos ao gabinete do presidente, que os consultava sobre como estruturar o governo. Da mesma forma, o governo fascista do general Franco também teve influência no Equador por meio do Partido Conservador.

Em contrapartida, havia um movimento por uma Espanha livre, formado por espanhóis e equatorianos que se opunham à Espanha fascista e vários grupos antifascistas que colaboravam e conversavam, sobretudo, com os governos britânico e soviético.

Em 1941, foi criado em Quito o Movimento Popular Antitotalitário do Equador (MPAE), uma organização de esquerda antifascista, promovida principalmente pelo militante francês Raymond Mériguet. Nela, que se torna secretária de Organização e Propaganda, escreve sobre o antifascismo em diversos meios de comunicação, convocando a mobilização nas assembleias populares que organizam. Nessas assembleias, os militantes antifascistas de várias tendências, equatorianas e estrangeiras, construíram a unidade de ação contra a colaboração com as potências do eixo. Em 1942, Nela se tornou secretária da Organização Feminina do MPAE.

Ao mesmo tempo membro do Comitê Central e do Comitê Executivo do Partido Comunista, Nela Martínez acreditava firmemente na necessidade de um trabalho de organização de base, e seu envolvimento nessa tarefa desafiou as estruturas partidárias em mais de uma ocasião, especialmente no que diz respeito à participação ativa das mulheres. Já em 1931, em carta a Gallegos, ela dizia que:

A ideologia socialista só pode triunfar completamente em sua idiossincrasia ao canalizar as mulheres para seu movimento… Quem são os primeiros a lançar seu anátema contra a nova mulher? Criticá-la, caluniá-la e colocar barreiras impossíveis ao seu gesto redentor? Os homens. (Doc. N19310101, Arquivo Martínez-Meriguet).

A partir da legitimidade construída em anos de militância de base e incidência no debate público por meio de seus escritos na imprensa, Nela Martínez contribuiu para ampliar os espaços de união e articulação, particularmente com os setores indígenas e as mulheres, por meio da formação de organizações autônomas que permitissem a esses setores excluídos se expressarem com sua própria voz. Nela estava ciente da importância de envolver outros líderes e militantes comunistas regionais proeminentes nesses espaços de unidade.

Apesar de as mulheres terem uma importante participação e até liderança nas lutas da classe trabalhadora no Equador, isso não se refletiu na liderança dos partidos políticos. Durante sua viagem a Quito em 1935, Nela soube da existência de organizações de mulheres de direita e religiosas, mas nenhuma que reunisse mulheres de esquerda. Nesse momento, colocou em prática sua visão de unir todas as mulheres de partidos de esquerda e de diferentes origens para lutar por causas comuns e participou da fundação da Alianza Femenina de Ecuador (AFE), em 1938. Tratava-se de uma plataforma ampla e heterogênea de mulheres de diferentes setores sociais e políticos, entre as quais estavam liberais progressistas que lutaram pelo direito ao sufrágio feminino, lideranças indígenas como Dolores Cacuango, militantes comunistas como a própria Nela, outras socialistas, também operárias e mulheres de comitês de bairros. Nela logo se tornou secretária-geral e presidente da entidade, construída a partir de uma proposta de autonomia política das mulheres, para ter expressão própria na esfera política nacional (Salazar, 2018).

Dentro da ideologia da AFE estava a defesa da “igualdade de direitos econômicos, sociais e políticos para todos os equatorianos”. As mulheres equatorianas foram as primeiras da região a consagrar o direito ao voto, em 1929, de modo que essa demanda não estava no centro de sua agenda política, como no restante da região nas décadas de 1930 e 1940. As mulheres da AFE buscavam a unificação de todas as “forças femininas” em torno da defesa das mulheres e da transformação de todo o país. Inicialmente combinaram a luta política com campanhas de auxílio social, mas essas logo se tornaram instâncias políticas de apoio mútuo e socialização da reprodução da vida, como aconteceu com a criação de refeitórios sociais, oficinas diversas e alfabetização de mulheres privadas de liberdade na Prisão García Moreno, em Quito. A organização foi fortalecida pela luta pelos direitos trabalhistas das mulheres em meio ao debate nacional sobre o novo Código do Trabalho (1938), quando lutaram por salário igual para trabalho igual, reserva de emprego na gravidez, descanso pós-parto, criação de creches. Embora não a apresentassem nesses termos, naquela época já pensavam na política levando em conta as diferenças de gênero (Salazar, 2017a).

Como uma organização aliada, mas não sujeita à estrutura do Partido Comunista, a AFE desenvolveu suas atividades até 1950, principalmente em Quito, mas também tentou realizar atividades em outras localidades do Equador e até no exterior, chegando a ter delegadas nos Estados Unidos.

 

Revolução A Gloriosa (1944)

O presidente da época, Carlos Alberto Arroyo del Río, que assumiu em 1940, era uma figura da nova elite financeira internacional, que tentava reposicionar o poder do capital sobre os Estados reformistas da América Latina e frear as políticas redistributivas por meio de impostos, nacionalização de setores estratégicos e extensão dos direitos trabalhistas, assumidos por vários governos da região (Equador e México, entre outros) na década de 1930.

A linha reacionária de Arroyo del Río, contrária às Constituições de 1928 e 1938, bem como sua inimizade com os funcionários públicos da educação nacional e das universidades e sua intervenção contra os direitos à terra e ao trabalho conquistados, somados ao uso da força repressiva, condensaram uma oposição de esquerda na luta contra o retorno da oligarquia (Coronel, 2022).

Em julho de 1941, o Peru invadiu o Equador pelo sul e conquistou uma extensão de território na Amazônia equivalente a quase metade do país. Como gatilho para o conflito estavam os interesses de empresas europeias e estadunidenses pelos ricos campos petrolíferos da região. O conflito terminou — e a desapropriação foi sancionada — com a assinatura do Protocolo do Rio de Janeiro em 1942, que estabeleceu as novas fronteiras. A gestão do conflito pelo governo de Arroyo del Río foi vista como uma traição nacional em um momento crítico para a mobilização nacional contra o governo oligárquico.

No curto período entre 1943 e 1946, acelerou-se o processo de construção do poder autônomo das organizações populares no Equador. Embora nos anos anteriores houvessem sido feitos esforços para mobilizar e organizar a classe trabalhadora em nível local e setorial, a prioridade agora era formar alianças em nível nacional, buscando um acúmulo de forças que permitisse um confronto efetivo com os blocos dominantes no âmbito político e econômico. De um lado estava a Confederação dos Trabalhadores do Equador (CTE), uma ampla aliança de sindicatos e organizações camponesas de todo o país, fruto de um longo processo de alianças e criação de espaços de ação conjunta. Por outro lado, a já mencionada Federação Equatoriana de Índios.

Em seu compromisso por um projeto de “reconstrução nacional” que superasse as estruturas feudais e impulsionasse as forças produtivas no caminho em direção ao socialismo, as forças revolucionárias de esquerda, com o PCE na vanguarda, promovem a criação de uma frente. Convocam a unir-se não só a esquerda socialista e comunista, mas também os seguidores liberais do ex-presidente José María Velasco Ibarra e os “democratas conservadores”, para enfrentar com unidade o autoritarismo de Arroyo del Río, a crise oligárquica, a ameaça de fascismo e avançar no programa de desenvolvimento industrial nacional e na defesa da democracia.

O resultado, a Aliança Democrática Equatoriana (ADE), foi uma coalizão que incluiu os partidos Conservador, Liberal Radical Independente, Socialista e Comunista, e as plataformas da Frente Democrática Nacional e da Vanguarda Socialista Revolucionária Equatoriana. A ADE elaborou um documento programático que recolheu as demandas históricas dos setores excluídos e consolidou a unidade de ação para a construção nacional. O programa posicionou a demanda por democracia popular, garantindo liberdade de organização e de imprensa; a organização da economia para o aumento da capacidade produtiva tanto na indústria como na agricultura; a melhoria do nível de vida da classe trabalhadora e do campesinato e o estabelecimento de um salário digno; a plena “integração do índio e do montubio” e a promoção da educação; democratização das Forças Armadas e colaboração continental contra as forças fascistas.

Nessa conjuntura, em 28 de maio de 1944, ocorreu uma grande insurreição popular contra o governo de Arroyo del Río, liderada por forças populares: trabalhadores, estudantes, indígenas e mulheres articuladas através da ADE. Em 29 de maio, quando o presidente Arroyo se refugia pela primeira vez na Embaixada da Colômbia, os carabineiros vão à sede da ADE para indicar que não atacarão, só se defenderão se forem atacados e, finalmente, os militares reconhecem o direito à insurreição e a direção da ADE. Nela Martínez vê o vácuo de poder e decide ocupar o Palácio do Governo acompanhada de estudantes. Nela foi ministra do Governo e esteve à frente do país durante três dias épicos.

Do Ministério eu ordenei a libertação dos prisioneiros, principalmente os do Movimento Antifascista, que se encontravam em diferentes províncias ou confinados no Leste, por lutarem contra o regime de Arroyo del Río. Todo o país foi informado de que o ADE assumiu a Presidência da República; pedimos que fossem organizados governos setoriais para impedir a ação da contrarrevolução – embora o termo não seja exato. Ordenei o que tinha que ser ordenado: a coordenação de toda a atividade em escala nacional (Martínez; Costales, 2018).

Quando Velasco Ibarra finalmente chegou — ele estava no norte do país na época do levante — em vez de convocar eleições, se instalou diretamente no poder. Nela percebeu que a revolta popular havia sido traída e deixou o Palácio sem aceitar nenhum cargo. Velasco fecha imediatamente a repartição pública onde ela trabalhava, deixando-a desempregada.

Uma Assembleia Constituinte, composta por representantes dos trabalhadores e de diversos setores sociais anteriormente excluídos, promulgou uma nova Constituição em 1945, que consagrou os direitos sociais a favor da classe trabalhadora e dos indígenas, subordinando a propriedade privada ao interesse geral e reconhecendo os direitos ancestrais em terras comunitárias. Da mesma forma, garantiu a representação parlamentar de trabalhadores, indígenas, educadores e outros setores anteriormente excluídos por meio do sistema funcional[3] de eleição.

Lideradas por Nela, as mulheres da AFE buscaram representação política formal na Assembleia, pela qual tiveram que lutar apesar de já terem direito ao voto e terem participado ativamente de La Gloriosa. Na assembleia realizada na Central de Trabalhadores do Equador (CTE) para designar os candidatos à Assembleia Nacional Constituinte, os líderes comunistas manobraram para que a candidatura a principal parlamentar não recaísse sobre Nela Martínez, apesar do apoio a seu favor. Apesar disso, Nela concorreu como deputada substituta, conquistou a cadeira e quando finalmente foi eleita, em 1945, tornou-se a primeira mulher deputada no Equador. Essa foi talvez a primeira grande batalha interna que Nela teve que travar contra a discriminação de gênero muito clara de seus próprios companheiros do PCE.

Velasco Ibarra aproveitou as lutas internas da ADE, multipartidarista e interclassista, e manobrou para revogar a Constituição de 1945 e se proclamar ditador em 1946. A contrarrevolução que liderou ajudou a consolidar o poder de setores conservadores no Estado, mas não conseguiu enfraquecer de imediato o ímpeto da organização popular construída nas duas décadas anteriores.

 

Intervenção de Nela Martínez no Primeiro Congresso da Mulher Trabalhadora. Quito, 1956. Créditos: Pacheco/Arquivo Martínez-Meriguet

 

 

Militante comunista internacionalista

Após a derrota das forças populares em maio de 1944, Nela Martínez se distanciou completamente do governo e dedicou anos importantes à luta internacionalista.

Em uma longa viagem que começou com um convite para o Congresso Interamericano de Mulheres na Guatemala, em 1946, ela ajudou clandestinamente na reorganização do Partido Comunista daquele país, banido pela ditadura, e na formação de uma organização nacional de mulheres, a Aliança Feminina. Em Honduras e na Nicarágua, ela conheceu em primeira mão a repressão da militância comunista. Na Costa Rica e no Panamá, encontrou partidos comunistas mais organizados que podiam participar da política local. Finalmente, na Colômbia, desempenhou um papel importante na formação da Alianza de Mujeres.

Em 1949, ela inicia uma estadia de um ano na Europa. Viaja a Paris como representante das mulheres comunistas do Equador, convidada pela Federação Democrática Internacional de Mulheres, onde contribui para a organização do Primeiro Congresso Mundial pela Paz. Em seguida foi convidada a participar de um encontro internacional de mulheres comunistas em Moscou. Essa viagem lhe permitiu conhecer dirigentes e militantes comunistas, não só de vários países europeus, mas também de Cuba, escala da sua viagem transatlântica, país onde criou laços que se fortaleceriam ainda mais após o triunfo da Revolução Cubana em 1959.

Após sua viagem, Nela retorna à sua militância no Partido Comunista do Equador e na AFE. Junto com Dolores Cacuango, Luisa Gómez de la Torre e outros militantes comunistas, trabalhou nos anos seguintes na consolidação de escolas indígenas em Cayambe.

Em 1950, Nela se casou com Raymond Mériguet, militante comunista e antifascista francês, como mencionado, um dos fundadores e secretário-geral do Movimento Popular Antitotalitário do Equador (MPAE). Mériguet se estabeleceu no Equador na década de 1930 e os dois se conheciam desde a época do MPAE. Tiveram três filhos e compartilharam vida e militância até a morte dele, em 1988.

 

A União Revolucionária de Mulheres do Equador

Nas décadas de 1950 e 1960, o PCE enfrentou fortes tensões em torno da luta armada e da participação de mulheres e jovens. A morte de Stalin em 1953 coloca em questão o chamado “culto ao líder” e o triunfo da Revolução Cubana em 1959 abre fortes debates sobre a luta armada. O PCE, que em seu congresso de 1962 havia definido que a luta armada era o caminho para a revolução, sancionou e expulsou, em 1964, militantes que organizaram uma tentativa de guerrilha em 1962 com a frente de massas da juventude do partido, a União Revolucionária da Juventude Equatoriana ( URJE).

Entre 1954 e 1955, três projetos foram apresentados ao Comitê Central do PCE para criar uma organização de mulheres. A Comissão Nacional da Mulher do PCE apresentou dois (provavelmente elaborados por Nela Martínez e Luisa Gómez de la Torre): uma Organização de Mulheres Democráticas e depois uma Federação Democrática de Mulheres Equatorianas. Por sua vez, Pedro Saad e Rafael Echeverría, do Comitê Central, apresentaram um “Plano de Organização do Trabalho entre Mulheres”. Finalmente, foi criada a União Democrática de Mulheres Equatorianas (Salazar, 2017b) sobre a qual há muito pouca informação.

Em um incidente pouco claro, mas expresso como “confrontos internos com membros do Comitê Central”, Nela Martínez foi suspensa do PCE em 1957 (ibid). Nos anos seguintes, além de cuidar de seus três filhos pequenos, dedicou-se à ação feminista e à solidariedade com os refugiados que chegaram ao país fugindo das múltiplas ditaduras do continente.

O PCE manteve seu alinhamento com a URSS e a linha de criar alianças com a burguesia e a pequena burguesia para participar das eleições. Além de vários episódios de expulsão de militantes chamados de ultra-esquerdistas, a partir de então o PCE passou a criticar duramente o Partido Comunista Chinês, em repetidas ocasiões. Um grupo de quadros e militantes se separou do PCE em 1964 para criar o Partido Comunista Marxista-Leninista do Equador, de tendência maoísta.

A Revolução Cubana, com seu importante papel feminino e a criação da Federação de Mulheres Cubanas, assim como as guerrilhas vietnamitas, influenciou uma certa abertura do PCE a um maior protagonismo femenino. O PCE entendeu que o papel das mulheres, como o de todos os militantes, era participar da luta de classes para acabar com o capitalismo; porém, suas problemáticas específicas se reduziam à luta pela paz, ao papel materno e à defesa da infância. O PCE sempre considerou que, se houvesse alguma organização de mulheres, ela deveria ser tutelada pelo Comitê Central, tanto pelo perigo do chamado “fracionalismo” quanto por temer a influência reformista do feminismo burguês (Salazar, 2017b, 2018). O compromisso do partido era construir frentes de massas femininas, enquanto a necessidade de melhorar a representação política das mulheres, as condições para sua participação ou o questionamento da divisão sexual do trabalho não faziam parte das propostas da época.

A AFE funcionou apenas até o início da década de 1950, mas boa parte do grupo de mulheres que a formou permaneceu ativo. Estabelecendo vínculos com estudantes universitárias e sindicalistas, essas mulheres criaram em 1962 a União Revolucionária de Mulheres do Equador (URME). Seu objetivo era “a libertação efetiva das mulheres equatorianas que permita a elas exercer seus direitos como cidadãs, sem restrições ou limitações; a real independência do Equador, em pleno exercício de sua soberania; soberania popular como expressão política, social e económica de um povo cujos direitos foram sistematicamente roubados ou traídos” (Estatuto, citado em Salazar, 2017a).

A URME foi criada como uma organização sem uma estrutura hierárquica clássica, que dividiu seu trabalho em torno de comissões. A organização não se identificava como feminista; na verdade, as participantes rejeitaram categoricamente o conceito por considerá-lo burguês e reformista, uma concepção geralmente compartilhada pela esquerda equatoriana da época.

Em 1963, a URME, o Comitê de Unidade pela Paz e Soberania e a União Democrática das Mulheres do Equador convocaram uma reunião para o dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, na qual, além das organizações convocantes, participaram militantes dos partidos socialista, socialista revolucionário e comunista. A reunião foi interrompida por uma briga com membros da Alianza Femenina Universitaria (AFU), organização criada pelo PCE em 1952, que, segundo a URME, compareceu com intenções de “sabotagem”. Após esse incidente, o PCE declarou, em março de 1963, que Nela Martínez já não integrava o partido. Acusaram-na de não ter pedido seu reingresso após se separar em 1957, em uma “atitude contrária à linha do partido” e de atacar os dirigentes. Na mesma situação ficaram os outros dois integrantes de sua célula, Primitivo Barreto e Modesto Rivera. Também foram expulsos do partido Jaime Galarza e José María Roura que foram acusados de sectários: ultraesquerdista o primeiro e maoísta o segundo.

Na realidade, para as dirigentes da URME e especialmente para Nela, a origem do conflito foi que elas se recusaram a permitir que a organização das mulheres fosse totalmente tutelada pelo Comitê Central do PCE. Além disso, Nela (e também sua célula) mantinham diferenças de longa data com o Comitê Central no que diz respeito à relação do PCE com outras forças políticas por considerar que estava influenciado pelo browderismo[4].

Internacionalmente, a URME estabeleceu relações formais com a Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), criada em 1945 e que foi a maior influência do PCE até a década de 1970, especialmente em relação às reivindicações das mulheres comunistas e às formas de organização. Essa filiação foi uma nova fonte de conflito com o PCE, considerado o único interlocutor legítimo da FDIM no Equador.

Nela escreveu sistematicamente para Nuestra Palabra, publicação oficial da URME, fundada em 1963, um marco na imprensa do movimento de mulheres equatorianas. A revista não só publicou sobre a situação da mulher, mas também falava de temas como a dupla discriminação de afro-equatorianas e indígenas, e de questões mais relevantes da situação nacional. O editorial de seu primeiro número expressa a ideologia da organização:

NUESTRA PALABRA vem de um silêncio de séculos, de uma servidão secular, de uma dor que nos pesa como parte de um povo sofredor, cujo fardo aumenta quando se é mulher. Temos que dizer Nuestra Palavra para expressar um pensamento: a libertação das mulheres tem que ser obra delas mesmas. Nossa voz foi silenciada, ignorada, difamada. O selo de uma sociedade injusta pesou como uma lápide no destino das mulheres equatorianas. As sobrevivências patriarcais e feudais, os preconceitos burgueses, o egoísmo das classes dominantes, estendem-se a todos os setores, mesmo àqueles que, por sua natureza revolucionária, deveriam ser os primeiros a limpar as teias de aranha de suas mentes (citado en Martínez y Costales, 2018).

Nuestra Palabra deixou de ser publicada após quatro números, quando o quinto foi interrompido após um golpe de Estado. A Junta Militar que tomou posse começou a reprimir todas as organizações de esquerda, mas principalmente as comunistas, declarando oficialmente o comunismo e o PCE ilegais. A URME teve que ir para a clandestinidade. Vários militantes tiveram que se esconder ou se exilar. Nela se refugiou com seus três filhos menores na casa de sua mãe em Cañar, sua cidade natal.

A URME permaneceu ativa até 1966 — o mesmo ano do fim da ditadura —, fora da tutela que o PCE pretendia exercer por meio de algumas de suas integrantes. Continuaram a reunir e distribuir panfletos de resistência em defesa das pessoas privadas de liberdade e perseguidas, contra o imperialismo estadunidense, claramente refletido nas ações da Junta Militar, rejeitando o bloqueio contra Cuba e a favor da soberania mundial, da paz e do desarmamento. Colaboraram constantemente com outras organizações de mulheres, como o Comitê Feminino de Defesa dos Direitos Humanos, a Frente Nacional das Mulheres contra a Ditadura e a Comissão de Direitos Humanos. As razões para a dissolução da organização não são claras.

 

Aula em uma das escolas bilíngues para indígenas, criadas pela Federação Equatoriana de Índios em Cayambe que Luisa Gómez de la Torre e Nela Martínez contribuíram para formar.
Créditos: Blomberg/Arquivo Martínez-Meriguet

 

Luta contra as ditaduras e solidariedade com a Revolução sandinista

Sempre, mas com maior ênfase na década de 1970, a casa Martínez Meriguet acolheu muitos refugiados políticos das ditaduras que assolaram a América Latina. Em 1983, Nela Martínez participou ativamente da formação da Frente Continental de Mulheres pela Paz e contra a Intervenção. Fez parte da Coordenação, como plataforma para denunciar, tanto no Equador como internacionalmente, o plano intervencionista dos Estados Unidos. A Frente Continental Feminina nasceu sob o signo da solidariedade internacional latino-americana: Cuba, bloqueada e vitoriosa; Nicarágua, sob a guerra imposta por Reagan; Guatemala e El Salvador, em heróica luta pelos direitos de seus povos; o Chile, sob a cruel ditadura civil-militar de Pinochet; Argentina, com sua guerra e seus 30 mil mortos e desaparecidos.

Durante as reuniões internacionais, foram ratificados quatro pontos essenciais:

  1. A solidariedade que as mulheres constroem diariamente.
  2. Anti-imperialismo forte e combativo.
  3. A necessidade de autodeterminação.
  4. A consciência da condição da mulher, o aprofundamento da sua autoestima e a vontade de lutar contra todas as formas de discriminação.

Durante os anos 1980, o Comitê também convocou as mulheres da América Latina a reconhecer e homenagear Manuela Sáenz, uma heroína de Quito da independência sul-americana, em sua qualidade de política e por sua participação direta nas batalhas pela independência.

 

Solidariedade a Cuba

Em 1977, Nela fundou, ao lado de outros intelectuais, o Instituto Cultural José Martí. Dois anos depois, em 1979, com o retorno à democracia, após o último período da ditadura (1971-1979), o Equador retomou as relações diplomáticas com a ilha. Nesse momento, Nela devolve ao novo embaixador a bandeira que lhe havia sido entregue para custódia quando, em 1962, o Equador, pressionado pelos Estados Unidos, rompeu relações diplomáticas com Cuba.

Nela apoiou a iniciativa liderada por Oswaldo Guayasamín, o mais importante pintor equatoriano do século passado, com laços estreitos com a Revolução Cubana e membro destacado do Instituto Cultural Equatoriano-Cuba José Martí, de criar a Coordenação Nacional Equatoriana de Amizade e Solidariedade a Cuba, em 1992, entidade que presidiu por vários anos.

Além disso, em solidariedade com a Nicarágua, Nela Martínez fundou a Casa da Amizade Equatoriano-Nicaraguense e deu continuidade ao trabalho do Tribunal Anti-imperialista de Nossa América.

Nela escreveu artigos e ensaios durante toda a vida, mas também poesia e alguns contos. Os seus textos foram por vezes publicados em jornais, mas sobretudo em publicações e revistas comunistas e nas diferentes organizações feministas e antifascistas nas quais militou. Muitas vezes – mais de 100, ela diz em uma entrevista – publicou sob pseudônimos. Cada vez que uma das frequentes ditaduras ou governos autoritários do Equador descobria que era ela, uma mulher comunista, que escrevia sob um certo pseudônimo, esse pseudônimo era proibido e ela tinha que inventar um novo.

 

Mulheres da União Revolucionária de Mulheres do Equador (URME). Quito, 1963. 
Créditos: Utreras/Arquivo Martínez-Meriguet

 

Oposição à Base militar em Manta e ao Plano Colômbia

 Nela permaneceu ativa até seus últimos dias. Na década de 1990, se opôs à participação do Equador no Plano Colômbia, uma iniciativa estadunidense que fazia parte do que chamam de “Guerra às Drogas”, mais um passo nas constantes tentativas de controle geopolítico da América Latina por parte dos EUA, nesse caso por meio da penetração na polícia e exércitos.

Em 2000, como presidenta da Frente Continental de Mulheres, Nela participou de um processo contra o estabelecimento de uma base militar estadunidense no porto de Manta. A base foi estabelecida, mas teve que ser desmantelada após a aprovação em 2008 de uma nova Constituição que proíbe bases militares estrangeiras em território equatoriano. Em maio de 2003, Nela, ao receber o prêmio Dra. Matilde Hidalgo de Prócel,[5] disse:

A colonização retorna. Especificamente, a terra do lutador e presidente Eloy Alfaro é hoje estadunidense. Manta; base de barcos e implementos de guerra e empréstimo para o novo ataque ianque. Também Esmeraldas e toda a sua baía e possivelmente Galápagos. Nós, os sobreviventes, aprendemos – eu em uma escola de freiras – a amar os feitos de Bolívar e seus exércitos de patriotas. Como sairemos dessa colonização? Como podemos nos justificar diante de nossa covardia?

Nos anos 1980 uma doença a deixou quase paralisada, mas conseguiu se recuperar graças a seus enormes esforços e depois de dois anos de intensa reabilitação. Apesar de sua doença, seguiu trabalhando duro nas décadas seguintes.

Em 2004, Nela, já bastante doente, foi a Havana para receber tratamento médico e lá morreu, em julho do mesmo ano. Suas cinzas repousam tanto em Havana quanto em Quito. Recebeu duas homenagens nos dois países.

Este estudo foi realizado por uma equipe composta por Pilar Troya, do Instituto Tricontinental de Pesquisas Sociais, a historiadora Valeria Coronel, e Daniela Schroder e Iván Orosa, que fizeram parte do grupo de pesquisa sobre Nela Martínez formado no curso “Marxismo e libertação”, realizado em 2020 pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e pela Assembleia Internacional dos Povos.

Esta é uma publicação conjunta com o Arquivo Martínez-Meriguet, instituição a quem agradecemos a enorme abertura e a dedicada colaboração na pessoa de Nela Meriguet Martínez.

 

Mulheres de vários movimentos políticos na Plaza de la Independencia, Quito, manifestam-se em defesa da soberania nacional; no centro Nela Martínez, em 10 de agosto de 1993.
Fonte: Arquivo Martínez-Meriguet

 

Referências bibliográficas

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Archivo Martínez Mériguet (Quito, Ecuador)

Fondo Epistolario entre Nela Martínez Espinosa y Joaquín Gallegos Lara

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Notas

[1] Ala esquerda do Partido Liberal que ao lado de  algumas organizações sociais de base argumentava a favor da luta armada e por sempre antepor a vontade popular.

[2] Na língua quéchua, significa carregadores, em referência aos indígenas que transportavam todo tipo de mercadoria nos ombros.

[3] Eleição de uma parte dos deputados do Congresso de modo que representassem especificamente setores da sociedade como professores, estudantes, cientistas, industriais, comerciantes, mas também trabalhadores, camponeses e indígenas.

[4] O browderismo foi uma corrente ideológica marxista de curta duração que sustentava a necessidade de que os partidos comunistas fizessem alianças e criassem frentes interclassistas com governos e setores de centro e direita em nome de enfrentar a ameaça do fascismo. Seu nome deriva do secretário geral (1930-1945) e presidente (1932-1945) do Partido Comunista dos Estados Unidos, Earl Browder e teve influência sobretudo na América Latina. Nela Martínez escreveu posteriormente um artigo a respeito: “Pedro Saad e o browderismo”, em Mañana, Época III, n. 225, 11 jan. 1968, p. 16. (citado en Ycaza, 1991).

[5] Discurso ao receber este reconhecimento, concedido pelo Congresso Nacional (atual Assembleia Nacional) do Equador, que leva o nome da primeira mulher a votar no país, no ano de 1924 Dra Matilde Hidalgo, além de pioneira na luta pelo sufrágio feminino no país, conquistado em 1929, foi a primeira médica e a primeira mulher candidata a (e eleita) vereadora.