Editorial
Os esforços de industrialização da África e da China
O apelo à industrialização tem sido uma palavra de ordem dos países africanos desde a conquista de sua independência. No século XX, a década de 1960 foi paradigmática das lutas de libertação nacional no continente. De Kwame Nkrumah (Gana) a Julius Nyerere (Tanzânia) e Kenneth Kaunda (Zâmbia), muitos integrantes da primeira geração africana de líderes pós-coloniais tinham um forte apreço pelo papel que a industrialização desempenharia na emancipação total do continente. Eles compreendiam a dependência econômica da África como fruto dos pecados originais do imperialismo e do colonialismo, que condenaram o continente à posição de eternos provedores de matérias-primas baratas para os países ricos, em troca de produtos industrializados caros. O rompimento com essa lógica colonial e imperial, ou seja, romper o jugo da dependência, exigiria uma reorientação estrutural das economias africanas, passando da produção de matérias-primas à produção industrial. Além disso, a industrialização era vista como o meio que conduziria a um alto nível de emprego e a salários decentes para a grande maioria da população, cujas vidas foram desestruturadas pelo colonialismo e o imperialismo.
Com esse objetivo em mente, os países africanos elaboraram planos locais e regionais, colocando a industrialização no centro do desenvolvimento. Em 1980, por exemplo, a Organização de Unidade Africana (precursora da União Africana) desenvolveu um marco estratégico chamado “Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África”, no qual foi atribuído um papel destacado à indústria. O Plano de Ação de Lagos incentivou os Estados africanos a “em seus planos de desenvolvimento, conferir um papel principal à industrialização, tendo em vista seus impactos no atendimento das necessidades básicas da população e assegurando a integração da economia e a modernização da sociedade”.1
Nesse sentido, o Plano de Ação de Lagos declarou de maneira enfática: “para que a África alcance uma parcela maior na produção industrial mundial, assim como para atingir rapidamente um nível elevado de autossuficiência coletiva, os Estados Membros [da Organização de Unidade Africana] proclamam o período de 1980 a 1990 como a Década do Desenvolvimento Industrial da África”.2 Infelizmente, apesar de todo esse fervor, o continente africano como um todo não foi industrializado em nenhuma forma substantiva ao longo dos últimos 60 anos. Em muitos países do continente, o nível industrial continua o mesmo da época da independência política nos anos 1960. Na verdade, muitos passaram pela desindustrialização. Ou seja, a participação da indústria na produção econômica é, hoje, inferior à do período da independência.
Essa incapacidade de industrialização teve implicações consideráveis para a vida econômica do continente africano e de seu povo. Por exemplo, os salários reais, que são geralmente sustentados pela produção industrial, diminuíram e hoje são mais baixos do que eram na década de 1970.3 Ademais, nas últimas três décadas, o número de pessoas vivendo em situação de pobreza diminuiu em todas as regiões do mundo, menos na África, onde está acontecendo exatamente o oposto. Em 1990, na África, cerca de 300 milhões de pessoas viviam na pobreza. Até 2020, esse número cresceu para 400 milhões e é provável que cresça ainda mais na década atual.4 Finalmente, em comparação com o período da independência, o continente africano é, hoje, mais dependente do resto do mundo, especialmente do Ocidente, como mercado para suas commodities primárias.
Enquanto nas últimas seis décadas a industrialização foi difícil para o continente africano, a China registrou, durante o mesmo período, conquistas inigualáveis nessa área. Desde as reformas preconizadas por Deng Xiaoping (邓小平), no final dos anos 1970, o crescimento da base industrial da China tem sido constante o que, por sua vez, possibilitou um dos processos de redução da pobreza mais rápidos de toda a história humana.5 Em 1981, cerca de 90% da população chinesa vivia em situação de pobreza. Em 2018, a taxa de pobreza da China havia diminuído para menos de 1%.6
Somado a isso, o crescimento da produção industrial do país tem viabilizado sua ascensão como um ator econômico e político relevante no cenário mundial, com uma capacidade inquestionável de determinar seu destino.
Considerando o sucesso da China na industrialização e as dificuldades da África, chama a atenção a escassez de trabalhos acadêmicos comparativos que busquem extrair as lições da China para a industrialização da África. Menos ainda são os trabalhos que analisam se a China pode ser uma aliada eficaz na até então mal sucedida busca da África por industrialização.
O presente número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横) procura suprir essa lacuna. Os dois artigos publicados foram escritos por ilustres pesquisadores chineses do desenvolvimento econômico comparado. O primeiro artigo, escrito pela professora da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai, Zhou Jinyan (周瑾艳), tem como título O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?. Como o título sugere, o artigo busca descrever e analisar a experiência histórica da África com a industrialização, considerando o papel que a China pode ter nos esforços para o desenvolvimento do continente. O artigo começa com o reconhecimento dos fatos apresentados anteriormente, sobretudo de que a África tem um passado desastroso com relação à industrialização. Em vez de colocar a culpa nos ombros dos africanos, como especialmente os analistas ocidentais costumam fazer, a professora Zhou vê esse histórico de baixo desempenho industrial como resultado, em grande medida, do “fracasso do receituário ocidental de desenvolvimento”. Ela enfatiza, por exemplo, que “a ajuda ocidental promoveu a dependência econômica da África, enquanto a hegemonia política, econômica e ideológica do Ocidente reduziu a autonomia e o espaço político do continente. Dos programas neoliberais de ajuste estrutural às estratégias de reformas orientadas a aprimorar o ambiente de investimento e negócios, o receituário ocidental não apoiou o desenvolvimento africano”. Em sintonia com alguns de meus próprios trabalhos, a professora Zhou critica o domínio total de intelectuais e especialistas ocidentais no processo de formulação de políticas públicas na África.7
A última sessão do artigo da professora Zhou analisa três caminhos pelos quais a China pode contribuir para o desenvolvimento industrial da África. Primeiro, ela argumenta que o impulso extraordinário da China para a construção de infraestrutura em todo o continente africano, ao longo das últimas três décadas, contribui para as aspirações do continente em torno da industrialização. A construção de portos modernos, rodovias e centrais elétricas podem reduzir os custos de produção e, assim, promover a industrialização. Em segundo lugar, a China pode apoiar a industrialização por meio de seu ideário de desenvolvimento, ao promover um modelo alternativo e liderado pelo Estado, em oposição ao modelo liderado pelo setor privado e centrado no mercado, como reza a cartilha do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Finalmente, a China pode contribuir para a industrialização africana por meio do fortalecimento da autonomia da África na arena geopolítica global, ao prover uma via alternativa para a interação do continente com o resto do mundo, junto com princípios de respeito e reforço mútuos.
O segundo artigo, intitulado A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana, foi escrito pelo professor Tang Xiaoyang (唐晓阳), da Universidade Tsinghua. O autor busca compreender o impacto que a Nova Rota da Seda (NRS) da China teve nas possibilidades de industrialização da África. O professor Tang inicia seu artigo afirmando que, “na África, o maior desafio para a industrialização é a dificuldade de integração de diversas partes da produção em um sistema”. Em outras palavras, seguindo Adam Smith, a industrialização da África fracassou, em parte, pela ausência de uma divisão do trabalho em seu setor industrial. Visto dessa forma, entidades no setor industrial do continente operam de modo segmentado e isolado, com poucas conexões entre si. O professor Tang argumenta, ainda, que a ausência da divisão do trabalho é, em si, resultado da falta de uma infraestrutura de larga escala no continente, que poderia viabilizar as conexões intra e inter setoriais. A Nova Rota da Seda pretende aliviar esses limites por meio da promoção da “conectividade de infraestrutura”. Assim, o professor Tang é enfático ao considerar a NRS como uma estratégia pró-industrialização da África.
De maneira geral, o foco da presente edição da Wenhua Zongheng na industrialização da África é uma contribuição bem vinda em nossos debates sobre as perspectivas de desenvolvimento emancipatório na África. Como os artigos demonstram, a África tem muito a aprender com a experiência chinesa de industrialização. Além disso, a China tem muito a contribuir para o progresso das aspirações do continente por uma industrialização que seja justa, humana e camarada.
Notas
1 Organização da Unidade Africana. Lagos Plan of Action for the Economic Development of Africa, 1980–2000 [Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África]. Addis Ababa: Organização da Unidade Africana, 1980, p.15. Disponível em: https://www.nepad.org/publication/lagos-plan-of-action.
2 Organização da Unidade Africana. Plano de Ação de Lagos, p.15.
3 Dani Rodrik. “An African Growth Miracle?” [Um milagre africano do crescimento?]. Journal of African Economies v. 27, n. 1, 2018.
4 As estatísticas sobre a pobreza na África são da Plataforma sobre Pobreza e Desigualdade do Banco Mundial, disponível em: https://pip.worldbank.org/home.
5 Ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, Estudos sobre o socialismo em construção no. 1, julho 2021, https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/estudos-1-socialismo-em-construcao/.
6Banco Mundial e Centro de Pesquisa sobre o Desenvolvimento do Conselho de Estado da República Popular da China. Four Decades of Poverty Reduction in China: Drivers, Insights for the World, and the Way Ahead [Quatro décadas de redução da pobreza na China: fatores determinantes, lições para o mundo e caminho futuro]. Washington: Banco Mundial, 2022, p.1. https://thedocs.worldbank.org/en/doc/bdadc16a4f5c1c88a839c0f905cde802-0070012022/original/Poverty-Synthesis-Report-final.pdf.
7Ver Grieve Chelwa. “Does Economics Have an ‘Africa Problem’?” [A teoria econômica tem um “problema africano”?], Economy and Society 50, n. 1, 2021.
Bibliografia
Chelwa, Grieve. “Does Economics Have an “Africa Problem”?” [A teoria econômica tem um “problema africano”?] , Economy and Society 50, n. 1, 2021.
Banco Mundial e Centro de Pesquisa sobre o Desenvolvimento do Conselho de Estado da República Popular da China. Four Decades of Poverty Reduction in China: Drivers, Insights for the World, and the Way Ahead [Quatro décadas de redução da pobreza na China: fatores determinantes, lições para o mundo e caminho futuro]. Washington: Banco Mundial, 2022, p.1. https://thedocs.worldbank.org/en/doc/bdadc16a4f5c1c88a839c0f905cde802-0070012022/original/Poverty-Synthesis-Report-final.pdf.
Organização da Unidade Africana. Lagos Plan of Action for the Economic Development of Africa, 1980–2000 [Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África]. Addis Ababa: Organização da Unidade Africana, 1980. Disponível em: https://www.nepad.org/publication/lagos-plan-of-action
Rodrik, Dani. “An African Growth Miracle?” [Um milagre africano do crescimento?]. Journal of African Economies v. 27, n. 1, 2018.